Bolsonaro assumiria risco político enorme se demitisse Mandetta, dizem analistas
Tensão entre o presidente o ministro da Saúde demonstra que protagonismo e boa aprovação do ministro da Saúde em momento de crise é visto como ameaça por presidente por causa de seu estilo 'paranoico', dizem os analistas
A tensão entre o presidente Jair Bolsonaro e o ministro da Saúde Luis Henrique Mandetta tem escalado, com indícios cada vez maiores de uma possível demissão.
Mandetta vem discordando publicamente do presidente ao apoiar o isolamento social como forma de evitar a disseminação do coronavírus, medida com a qual o presidente não concorda. Bolsonaro chegou a dizer nos últimos dias que os dois "andaram se bicando".
Hoje, dois auxiliares do presidente disseram ao jornal O Globo que Bolsonaro demitiria Mandetta ainda naquele dia, mas a demissão não se concretizou. Ainda na segunda, o ministro da saúde disse a integrantes do Ministério Público em uma reunião que "não sabe até quando ficará no cargo", segundo o mesmo jornal.
Em entrevista coletiva ainda nesta segunda, Mandetta anunciou que fica no cargo após reunião com o Planalto, mas disse que tinha gente "esvaziando as gavetas" no ministério por não saber se ele continuaria ou não."Ficou todo mundo com a cabeça meio avoada, se eu iria permanecer, se eu iria sair. Agradeço muito os que vieram em solidariedade. 'Se você sair eu saio junto'. Gente aqui dentro limpando gaveta. Pegando as coisas. Até as minhas gavetas. Nós vamos continuar, porque continuando a gente vai enfrentar o nosso inimigo. O nosso inimigo tem nome e sobrenome, é o Covid-19", disse Mandetta. "Médico não abandona paciente, eu não vou abandonar. Agora, as condições de trabalho dos médicos precisam ser para todos. Eu vou tentar trazer as melhores condições para vocês na ponta. E a única coisa que eu estou pedindo é que nós tenhamos o melhor ambiente para trabalhar aqui no Ministério da Saúde", disse ele.
Situação é semelhante ao desgaste entre o presidente e ministros anteriores, como o ex-ministro da educação Ricardo Vélez Rodríguez. No início do ano passado, Bolsonaro foi ao Twitter dizer que não demitiria o Rodriguez, diferentemente do que diziam diversos jornais na época. Em abril o ministro foi demitido.
"Se a gente considerar o que já aconteceu em momentos anteriores, o Planalto vaza que o ministro vai cair, espera sair na imprensa e depois chama de fake news. É uma estratégia de produzir desgaste da imprensa", afirma o cientista político Cláudio Couto, especialista em gestão pública da FGV-SP.
Cientistas políticos ouvidos pela BBC dizem que Bolsonaro assumiria um risco político enorme se demitisse um ministro tão bem avaliado em um momento de crise — 76% dos brasileiros apoiam a atuação do ministério da Saúde diante da epidemia, segundo pesquisa Datafolha divulgada nesta segunda-feira.
Se de fato a crise da covid-19 se agravar, como indicam todas os dados e informações científicas disponíveis, o impacto negativo de um possível demissão de Mandetta seria muito forte para o governo.
"Ele estaria colocando uma desconfiança de que o ministro poderia assumir o protagonismo e de que isso seria negativo para ele acima da estratégia política de manutenção do seu governo e até de aprovação popular", afirma a cientista política Flávia Biroli, professora da UNB (Universidade de Brasília).
Para o cientista político Rafael Cortez, da Tendências Consultoria, ao contrarir a recomendação do seu ministro da Saúde em favor do isolamento social, Bolsonaro repete com o coronavírus uma estratégia que já usou antes de negar a gravidade do problema.
"Ele fez isso na questão ambiental, com as queimadas na Amazônia. No entanto, em relação à covid-19, o custo político dessa atitude é no curto prazo, porque as pessoas vão sentir os efeitos do problema. Na questão ambiental os custos para a maioria das pessoas não são visíveis no curto prazo."
Além disso, diz Cortez, a tensão entre o presidente e o ministro é mais um sinal de que Bolsonaro tem ficado isolado de perdido relevância. "É uma tentativa de restaurar alguma autoridade", diz ele.
'Visão conspiratória'
Para Biroli, da UNB, a postura hostil e contrária de Bolsonaro a um ministro tão bem avaliado demonstra uma 'visão conspiratória' por parte do presidente, cuja popularidade é centrada em sua figura individual.
"Um político que assume uma visão de governo coletivo veria o bom desempenho dos seus técnicos como algo que conta positivamente pro seu governo", afirma Biroli. "Mas esse governo que se recusa a posicionar o Estado em uma perspectiva de responsabilidade coletiva, de um grupo de pessoas que coordena e oferece suporte."
"Não é natural um presidente querer minar seus ministros mais populares, a não ser que ele tenha uma leitura paranóica do mundo", afirma o cientista político Cláudio Couto, especialista em gestão pública da FGV-SP.
Segundo Couto, Bolsonaro sabe que se demitisse Mandetta poderia gerar um grande prejuízo político para ele. "Mas ele parece não suportar qualquer um que tenha mais destaque do que ele. Isso já aconteceu como o Moro, só que não houve demissão porque o próprio Moro submergiu. E já aconteceu com o Mourão, mas nesse caso ele arrefeceu porque não pode demitir o vice-presidente", diz Couto.
"Uma demissão teria um custo político ainda maior que os desentendimentos entre o governo e o ministério que estão acontecendo agora", diz Couto.
"Um governo normal surfaria na popularidade do seu ministro, pensaria em um sucessão no futuro, mas o Bolsonarismo não opera dessa forma", afirma.
Rompimento com o "sistema"
Quando foi eleito, Bolsonaro cresceu em popularidade e se vendeu justamente criando uma imagem de que não é um "governante normal", de que ele é uma figura fora do sistema político, fora do mainstream, explica Cortez. "A sustentação da popularidade do governo é muito ancorada em uma imagem pessoal de fora do sistema."
"Mas é justamente isso que o coloca em uma posição complicada diante do coronavírus, porque essa é uma crise que é resolvida pelas instituições. Ela é resolvida pela SUS, pela atuação dos grandes nomes da medicina, pela presença forte do Estado e de uma série de instituições e organizações políticas e sociais que representam o sistema, o mainstream", afirma.
Para Biroli, Mandetta assumiu justamente esse papel de "responsabilidade coletiva do Estado".
"Mandetta que assumiu a perspectiva de responsabilidade em termos práticos mas em termos simbólicos, dando seu rosto, defendendo o SUS. E ele tem articulado internamente, inclusive com os militares e com o congresso, mas também conversado com governadores."
A a atuação do ministro está muito bem avaliada pela população porque a demanda do Estado no momento é justamente essa: coordenar e oferecer suporte, diz ela.
Segundo o Datafolha, a atuação da pasta coordenada por Mandetta é aprovada por 76% da população. Esse número sobe para 82% entre os que votaram em Bolsonaro.
Segundo Cortez, ao contrariar Mandetta e reforçar seu discurso negacionista, Bolsonaro reforça seu projeto político original e ajuda a manter o eleitor mais ideológico para quem ele representa a ruptura com o sistema.
"Um ponto fundamental é que troca no ministério seria coerente com a estratégia (de combate ao coronavírus) que ele deseja implementar. O problema é que o custo do erro se essa a postura do presidente se provar errada será rapidamente sentido pela população", afirma Cortez.
O cientista político Sérgio Praça, professor da FGV (Fundação Getúlio Vargas), afirma que o presidente está apostando que realmente que o coronavírus vai afetar a população brasileira menos do que a americana, diz Praça. "Mas é uma aposta muito arriscada, com altíssimo grau de incerteza."
Perda de apoio em vários setores
As pessoas que Bolsonaro pretende atingir com o discurso de evitar o isolamento para "salvar a economia" são as vulneráveis economicamente, mas ele pode perder apoio inclusive nesse setor, dizem os analistas.
"Para as pessoas mais vulneráveis, que estão realmente com medo do desemprego, o provável agravamento da crise de saúde pública terá um efeito muito grande", diz Cortez. "E as pesquisas mostram que elas estão com mais medo da covid-19 do que da crise econômica."
Tirando alguns empresários do núcleo ideológico de apoio a Bolsonaro, a tensão com Mandetta e a postura geral de Bolsonaro diante da covid-19 tem um efeito negativo até mesmo entre setores econômicos que antes o apoiavam, diz Cortez.
"A perda de credibilidade já ocorreu, a reprovação dos agentes econômicos já vinha aparecendo mesmo antes da covid-19. A pressão que ele faz sobre o Mandetta só agrava a perda de apoio nessa direção", afirma o analista.
Segundo o instituto Datafolha, 51% acredita que Bolsonaro "mais atrapalha do que ajuda diante da crise" e 57% acreditam que a população não deve seguir suas recomendações.
No entanto, ele mantém 54% de aprovação entre as pessoas que votaram nele.
"Bolsonaro mantém apoio porque fez uma campanha focada em valores morais e religiosos, e isso é um fator que se mantém, principalmente entre os evangélicos", afirma, Couto, da FGV.
"Além disso, você tem todo um segmento do eleitorado que não quer dar o braço a torcer de que fez uma má escolha em um cenário polarizado, então muita gente ainda mantém a esperança de que o governo vá acertar", diz. Cerca de 17% dos eleitores de Bolsonaro disseram ter se arrependido de votar nele em abril.
Além disso, dizem os analistas, por enquanto, apesar das divergências, a atuação de Mandetta ainda é vista como parte do governo — o que mudaria em caso de uma demissão.
Entre as mensagens de apoio a Bolsonaro que circulam nas redes sociais, muitas elogiam o trabalho do ministro da saúde e afirmam que o presidente "escolheu uma excelente equipe".
Entre os eleitores de Bolsonaro, a atuação de Mandetta tem 82% de aprovação, bem maior que os 56% de aprovação do presidente.
Ao mesmo tempo, a oposição também elogia o ministro da Saúde. O deputado Federal Marcelo Freixo (PSOL) esteve entre os diversos políticos de oposição que participaram de uma campanha #FicaMandetta no Twitter na segunda.
"Por ser visto como um contraponto ao presidente e por sua postura a favor do isolamento social, esse elogio do Mandetta entre a oposição enfraquece muito Bolsonaro", afirma Couto.
"É um momento em que todo mundo espera que o governo seja funcional, que resolva o problema", afirma Biroli.
"Bolsonaro se utiliza de redes de extrema-direita e procura, diante de algo complexo, dar respostas simples e se conectar com setores que estão desesperados, se apoia na insegurança imediata das pessoas", diz Flávia Biroli, da UNB.
"Ele ainda tem suporte popular, a questão é até onde vai esse suporte quando a maioria da população não concorda com as medidas que ele está tomando e quando estamos diante de um cenário grave que pode se tornar ainda mais trágico", afirma.
A tensão com o ministro e a postura combativa de Bolsonaro são muito negativas, diz Cortez, porque "no momento há uma demanda por moderação, consenso, paz e principalmente cooperação para resolver a crise".
"Todos os termos que as pessoas têm usado vão no sentido de compor de somar. E isso bate de frente da essência do Bolsonaro, que nasce do rompimento, da ruptura com o mainstream", afirma.
Os casos
O primeiro registro do coronavírus no Brasil foi em 24 de fevereiro. Um empresário de 61 anos, que mora em São Paulo (SP), foi infectado após retornar de uma viagem, entre 9 e 21 de fevereiro, à região italiana da Lombardia, a mais afetada do país europeu que tem mais casos fora da China.
De acordo com o Ministério da Saúde, o empresário de 61 anos tinha sintomas como febre, tosse seca, dor de garganta e coriza. Parentes dele passaram a ser monitorados. Dias depois, exames apontaram que uma pessoa ligada ao paciente também estava com o novo coronavírus e transmitiu o vírus para uma terceira pessoa. Todos permaneceram em quarentena em suas casas, pelo período de, ao menos, 14 dias.
Após o primeiro caso, outros diversos registros passaram a ser feitos no Brasil. Muitos vieram de países com inúmeros casos do novo coronavírus, mas depois foram registrados casos de transmissão local e, por fim, comunitária.
Duas semanas depois, foi anunciado que o empresário de 61 anos está curado da doença provocada pelo novo coronavírus.
A primeira morte no Brasil, de um idoso de 62 anos, foi confirmada em 17 de março. Ele morava em São Paulo (SP).
Cuidados
A principal recomendação de profissionais de saúde que acompanham o surto é simples, porém bastante eficiente: lavar as mãos com sabão após usar o banheiro, sempre que chegar em casa ou antes de manipular alimentos.
O ideal é esfregar as mãos por algo entre 15 e 20 segundos para garantir que os vírus e bactérias serão eliminados.
Se estiver em um ambiente público, por exemplo, ou com grande aglomeração, não toque a boca, o nariz ou olhos sem antes ter antes lavado as mãos ou pelo limpá-las com álcool. O vírus é transmitido por via aérea, mas também pelo contato.
Também é importante manter o ambiente limpo, higienizando com soluções desinfetantes as superfícies como, por exemplo, móveis e telefones celulares.
Para limpar o celular, pode-se usar uma solução com mais ou menos metade de água e metade de álcool, além de um pano limpo.
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