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O que está por trás das imagens da vala comum em Nova York

Imagens de drones mostram corpos sendo enterrados em Hart Island, em Nova York, onde o departamento de correções está lidando com mais enterros em geral, em meio ao surto de doença por coronavírus - LUCAS JACKSON/REUTERS
Imagens de drones mostram corpos sendo enterrados em Hart Island, em Nova York, onde o departamento de correções está lidando com mais enterros em geral, em meio ao surto de doença por coronavírus Imagem: LUCAS JACKSON/REUTERS

10/04/2020 17h51

Nova York tem 170 mil casos, cerca de 10% de todos os casos registrados no mundo até agora, 1,6 milhão. A cifra supera os casos registrados na Espanha (153 mil) e na Itália (143 mil), mas o número de mortes é menor.

A percepção do tamanho da tragédia do coronavírus na cidade de Nova York ganhou novos contornos depois que vieram à tona imagens de pessoas com trajes especiais enterrando caixões em valas comuns nesta sexta-feira (10).

Um drone registrou a operação em Hart Island, região usada há mais de 150 anos por autoridades para enterros daqueles sem parentes próximos ou de famílias sem condições financeiras para arcar com os custos.

Cerca de 25 pessoas costumam ser enterradas por semana na ilha, de acordo com a agência de notícias Associated Press.

Mas, em meio à pandemia da covid-19, os enterros no local passaram a acontecer cinco vezes por semana, com cerca de 24 deles por dia, diz o porta-voz do Departamento Penintenciário Jason Kersten.

Detentos de Rikers Island, o maior complexo penintenciário da cidade, costumam realizar os enterros em Hart Island. Mas o aumento da carga de trabalho fez com que funcionários terceirizados precisassem ser contratados.

Na semana passada, o prefeito de Nova York, Bill de Blasio, afirmou que "enterros temporários" podem ser necessários até o fim da crise.

O Estado de Nova York agora tem mais casos registrados de coronavírus que qualquer outro país do mundo, exceto os próprios Estados Unidos.

Nesta sexta-feira (10/04), Nova York tinha cerca de 170 mil casos. Isso representa quase 10% de todos os casos registrados no mundo até agora, cerca 1,65 milhão. Os Estados Unidos lideram com 484 mil.

A cifra supera os casos registrados na Espanha (157 mil) e na Itália (143 mil). Mas o número de mortes é menor: 7.844 em Nova York, ante 15.970 em território espanhol e 18.849 em território italiano.

É importante deixar claro que cada localidade realiza um volume diferente de testes, o que interfere no total de casos identificados. Além disso, os dados divulgados não seguem a mesma metodologia e os números absolutos acima também não levam em conta os tamanhos das populações.

A população da Itália (60 milhões) é o triplo da do Estado de Nova York (19,5 milhões) e quase 25% maior que a da Espanha (47 milhões).

'Explosão silenciosa'

Por outro lado, o governador Andrew Cuomo divulgou que o número de pacientes com covid-19 internados em hospitais caiu pelo segundo dia seguido, para 200. Ainda é cedo, no entanto, para afirmar que há uma tendência consolidada.

Cuomo afirmou que os dados apontam que a estratégia de distanciamento social está funcionando. Segundo ele, a pandemia "é uma explosão silenciosa que se espalha por nossa sociedade com a mesma aleatoriedade e maldade que vimos no 11 de Setembro".

O governo federal dos Estados Unidos também divulgou dados mais positivos. Anthony Fauci, médico da força-tarefa criada pela Casa Branca contra o coronavírus, afirmou que as projeções indicam que cerca de 60 mil americanos devem morrer em decorrência da covid-19.

No fim do mês passado, Fauci estimava essa cifra entre 100 mil e 200 mil mortes. A projeção de 60 mil mortes está no mesmo patamar do total estimado de mortes de gripe nos EUA entre outubro de 2019 e março de 2020, segundo dados oficiais.

Mas o vice-presidente americano, Mike Pence, lembrou que o coronavírus é quase três vezes mais contagioso que o vírus influenza, causador da gripe sazonal.

Inicialmente, a Casa Branca estimou que 2,2 milhões de americanos morreriam por covid-19 se nenhuma medida fosse adotada, a exemplo das quarentenas em massa.

As determinações para não sair de casa, exceto em casos essenciais, levaram ao fechamento de diversas empresas em 42 Estados americanos, levando a uma desaceleração drástica da atividade econômica no país.

Novos dados divulgados nesta quinta-feira (9) apontaram que mais 6 milhões ficaram desempregadas. Em três semanas, o total chega a 17 milhões de desempregados.

Disparidade racial

Há também um recorte racial no impacto da doença. Na cidade de Chicago, no Estado de Illinois, 70% das pessoas que morreram de covid-19 eram negras, sendo que elas representam 30% da população de 2,7 milhões de habitantes.

A cidade passou a adotar toque de recolher e suspendeu a venda de bebidas alcoólicas à noite para reforçar o distanciamento social, que tem sido amplamente desrespeitado ali.

Dados de outros Estados americanos, como Louisiana, Mississippi, Michigan, Wisconsin e Nova York, refletem a mesma disparidade racial nas infecções e mortes por coronavírus.

O presidenciável democrata Joe Biden cobrou a divulgação de mais dados estatísticos sobre o perfil racial das vítimas. Para ele, a pandemia joga luz sobre a desigualdade e o impacto do racismo estrutural.

Impacto nos abortos

A pandemia levou também diversos Estados americanos a banirem ou limitarem a realização de abortos, desencadeando disputas judiciais em torno do tema.

No Texas, a Justiça derrubou, em parte, a medida que limitava a realização do aborto, adotada sob o argumento de que "procedimentos de saúde desnecessários" ocupariam recursos médicos valiosos que deveriam estar voltados para a covid-19.

Mas o juiz Lee Yaekel, indicado pelo ex-presidente e ex-governador republicano George W. Bush, afirmou que esse banimento representava "no mínimo, um ônus indevido ao direito da mulher à possibilidade de um aborto".

Outros Estados, como Alabama, Iowa, Ohio e Oklahoma, também adotaram medidas similiares contra abortos.

A chamada guerra cultural continua forte nos EUA, apesar da pandemia. Há disputas judiciais também pela abertura de lojas de armas e de igrejas, apesar das determinações que proíbem serviços considerados não essenciais e aglomerações.

Como os EUA chegaram a esse número de casos?

No fim de janeiro, Trump incumbiu o vice-presidente Mike Pence de liderar uma força-tarefa para combater a epidemia e, em 2 de fevereiro, o governo tomou sua primeira medida mais dura, ao decretar a proibição de entrada nos Estados Unidos de estrangeiros que haviam visitado a China nos 14 dias anteriores.

Uma decisão que, segundo o presidente americano, possibilitou salvar inúmeras vidas e que os especialistas, embora concordem com ela, ressalvam que não foi acompanhada de outras medidas para preparar o país para a pandemia.

"Demorou muito tempo para as autoridades perceberem que esse era um problema sério", diz Jeremy Youde, especialista global em políticas de saúde e reitor da Escola de Humanidades da Universidade de Minnesota, em Duluth.

Além disso, as declarações de Trump durante essa pandemia geraram confusão devido a seu hábito de minimizar o risco para o país e o fato de, em inúmeras ocasiões, contradizer as informações passadas por outros integrantes de sua equipe ou pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

Além da falta de liderança clara no combate americano à pandemia, uma das grandes falhas dos EUA nesta crise foi o "fracasso" em detectar novos casos no país.

"Grande parte da culpa pela situação se deve ao atraso dos testes nos Estados Unidos. Ficamos vendo a pandemia se desenrolar sem capacidade de testar e identificar casos. E isso resultou na propagação maciça de covid-19 nos EUA", diz Thomas Tsai, cirurgião e pesquisador de políticas de saúde da Universidade Harvard (EUA).

Acesso limitado a testes ou mesmo testes defeituosos estão entre os problemas citados por especialistas, que atrasaram a resposta da primeira potência mundial ao avanço da doença.

Paralelamente aos problemas com os testes e ao gerenciamento da crise pela Casa Branca, vários governadores de Estados dos EUA começaram a tomar rédeas da situação.

Além disso, outra dificuldade é que os EUA não têm um balanço de infectados e mortos a nível nacional, apontam especialistas. Essa estatística é divulgada por cada Estado individualmente.

Aproximadamente, três em cada quatro americanos foram colocados sob alguma forma de confinamento, cerca de 245 milhões de pessoas em uma população de cerca de 327 milhões, e quase dois terços dos Estados emitiram diretrizes nesse sentido a nível estadual.