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A volta do coronavírus a Singapura, país que era 'exemplo' no combate à doença

As autoridades de saúde temem que o número de novos casos de covid-19 explodam - EPA
As autoridades de saúde temem que o número de novos casos de covid-19 explodam Imagem: EPA

Anna Jones - BBC News

12/04/2020 19h18Atualizada em 12/04/2020 23h44

O pequeno e rico país da Ásia tinha uma estratégia para conter o avanço da covid-19 que foi reconhecida como exemplo mundial, mas erros no caminho mudaram as coisas.

Singapura estava dando uma aula de mestrado ao mundo sobre como lidar com o surto de covid-19, a doença causada pelo coronavírus.

Antes que a doença tivesse um nome, o país já tinha restrições rígidas de viagem e uma operação eficiente de rastreamento de contatos, que continha a propagação do vírus.

Mas nos últimos dias, o número de casos confirmados disparou. Na quinta-feira (9), o dia com maior número de infecções até o momento, foram 287 novos pacientes, em comparação com 142 no dia anterior.

A maioria das infecções vieram de acomodações para trabalhadores migrantes densamente povoadas.

Então, depois de evitá-la por meses, Singapura agora está em quarentena parcial, com escolas e empresas não essenciais fechadas, e uma ordem para que as pessoas fiquem em casa.

Especialistas dizem que uma das nações mais ricas do mundo, que parecia estar fazendo tudo certo, tem lições importantes para os países mais pobres.

E ainda há tempo para colocá-las em prática.

O que Singapura estava fazendo de correto?

Singapura teve seu primeiro caso do novo coronavírus muito cedo. Foi um turista chinês que chegou de Wuhan no dia 23 de janeiro, no mesmo dia em que o epicentro do vírus naquela época foi colocado em quarentena total.

Quando a doença causada pelo vírus recebeu seu nome oficial, covid-19, ela já estava se espalhando pela população de Singapura. Mas uma resposta bem ensaiada estava em andamento.

Além de controles sanitários nos aeroportos, o governo realizou testes exaustivos em cada caso suspeito, localizou qualquer pessoa que tivesse entrado em contato com um caso confirmado e confinou esses contatos em suas casas.

O diretor da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, disse que o país estabeleceu "um bom exemplo de abordagem".

Durante semanas, Singapura conseguiu manter seus números baixos e rastreáveis, com apenas pequenos grupos facilmente contidos, sem restrições reais à vida cotidiana.

Mas o professor Dale Fisher, presidente da Rede Global de Alerta e Resposta a Surtos da OMS e professor da Universidade Nacional de Singapura, disse à BBC que sempre que ouvia pessoas dizerem que a Singapura estava bem, ele respondia: "Até agora".

"É uma doença realmente difícil de conter", diz ele.

Quando que as coisas começaram a piorar?

O sistema funcionou até meados de março, diz o professor Yik-Ying Teo, professor da Escola de Saúde Pública Saw Swee Hock, em Singapura.

Foi então que, à medida que a gravidade da situação se mostrou evidente em todo o mundo, os países começaram a instar seus cidadãos a retornarem ao país.

Milhares voltaram para Singapura de lugares onde governos não haviam sido tão proativos, incluindo mais de 500 pessoas que inadvertidamente trouxeram o vírus com eles.

Até então, os retornados eram obrigados a ficar em casa por duas semanas.

Mas o governo disse que outras pessoas no país poderiam continuar com suas vidas desde que ninguém apresentasse nenhum sintoma.

Embora novos casos estivessem em ascensão, em meados de março já havia dezenas por dia. A maioria foi importada ou vinculada a casos importados, mas pela primeira vez nem todos os casos domésticos foram facilmente rastreáveis.

O professor Teo diz que agora é fácil dizer que foi um erro não limitar as interações de quem retornava. Mas a realidade, ele ressalta, é que "agora sabemos muito mais sobre a doença em comparação ao que se sabia em março".

"Agora sabemos que a propagação assintomática é inteiramente possível: isso acontece e pode ser o principal fator de transmissão da covid-19", diz Teo.

Precisamente porque Singapura manteve registros tão detalhados de todos os casos, o país foi capaz de aprender com a propagação interna.

"As medidas evoluíram com a compreensão de onde os casos vêm", diz Teo.

Isso significa que os países devem ser cautelosos ao confiar demais nas informações que temos hoje, explica ele.

Por exemplo, acreditar que as pessoas que se recuperaram estão imunes a futuras infecções, quando você ainda não tem certeza de que é esse o caso.

O que Singapura nos diz sobre os lugares onde o vírus se propaga?

O problema da importação agora está sendo solucionado com todos os recém-chegados enviados diretamente para a quarentena.

Com um pequeno número de pessoas entrando agora, o número de casos importados foi reduzido para números de um dígito nos últimos dias.

E, na noite de terça-feira, Singapura aprovou uma nova lei que, embora não use o termo, é efetivamente uma quarentena nacional parcial.

Todos estão proibidos de deixar suas casas, exceto para atividades e exercícios essenciais, e há multas de até US$ 7 mil (R$ 35 mil) ou seis meses na prisão.

Teo diz que isso será eficaz e enfatiza que, embora ainda possa haver um aumento no número a curto prazo, "é um reflexo do que aconteceu nos últimos sete dias; não significa que as medidas tomadas não estão funcionando".

Mas o alarmante aumento exponencial na semana passada ocorreu na população de trabalhadores migrantes de Singapura: centenas de milhares de homens de países mais pobres empregados nos setores de construção, transporte e manutenção.

Singapura depende inteiramente desses trabalhadores para manter sua economia funcionando, mas são empregos em que o distanciamento social é quase impossível.

Além disso, a lei exige que os trabalhadores morem em dormitórios-instalações privadas que abrigam até 12 homens por quarto, com banheiro, cozinha e serviços compartilhados.

Parece quase inevitável que esses quartos se transformem em bolsões de contágio, e de fato aconteceu: quase 500 casos foram confirmados em vários grupos de dormitórios. Só um deles foi responsável por 15% de todos os casos no país.

O ministro de Desenvolvimento Nacional, Lawrence Wong, disse na quinta-feira que, se soubesse antes da rapidez com que o vírus poderia se espalhar, "teria feito as coisas de maneira diferente". Mas muitos trabalhadores continuaram em seus empregos, apesar de apresentarem sintomas.

O medo é que na próxima semana esses números explodam.

Teo diz que o que aconteceu nos dormitórios "é uma indicação do que acontecerá em outros países, principalmente nos países de baixa renda e com menos recursos".

"Países do sul da Ásia, sudeste da Ásia e partes da África... Existem muitas comunidades onde as condições de vida são muito semelhantes às das pessoas que vivem nos dormitórios em Singapura", diz ele.

Por isso, ele pede que todos os governos olhem para seus países com "uma lente franca e transparente" em termos do que podem fazer para "minimizar o risco de um surto incontrolável onde as pessoas moram muito próximas".

O professor Li Yang Hsu, também da Escola de Saúde Pública Saw Swee Hock, diz que há uma lição sobre igualdade social.

"O vírus tem sido muito eficiente em destacar as fraquezas de nossas sociedades, e esse é certamente o caso das comunidades de trabalhadores migrantes", explica ele.

Os dormitórios estão acima de todos os padrões internacionais de espaço por morador, diz Hsu, mas uma situação como esta "apenas mostra que [os padrões] são inadequados".

"Talvez um país de alta renda como Singapura possa fazer melhor para proteger a saúde e melhorar o bem-estar das pessoas que são tão cruciais para a nossa sociedade", diz ele.

Mais de 24 mil trabalhadores estão agora confinados em seus dormitórios, com pagamento integral e refeições garantidas.

O governo diz que também está testando "agressivamente" e começou a transferir alguns residentes sem o vírus para casas vazias ou campos do Exército para tentar reduzir a densidade.

Comparando dormitórios com navios de cruzeiro que geraram grandes surtos de infecção em todo o mundo, o grupo de defesa Transient Workers Count Too também chamou isso de "uma estratégia arriscada", alegando que a "taxa de infecção em dormitórios poderia aumentar drasticamente" e pediu medidas urgentes para proporcionar melhores acomodações.

A ministra de Recursos Humanos, Josephine Teo, prometeu elevar os padrões nos dormitórios em geral, dizendo que essa era "a coisa certa a se fazer".

Isso é prova de que o vírus não pode ser contido?

Apesar das sinalizações de que a chegada da quarentena parcial foi muito lenta, o professor Fisher diz que Singapura realmente agiu muito mais cedo do que outros países, enquanto o número de casos eram de apenas 100 por dia.

Mas, para que o confinamento seja eficaz, ele diz, três coisas devem acontecer.

Antes de tudo, que a transmissão seja detida, o que acontecerá se todos ficarem em casa.

Depois, o sistema de saúde precisa de tempo e espaço para se recuperar, para liberar leitos e para que os trabalhadores da saúde possam tirar folgas.

"Terceiro, preparar todos os sistemas: todas as instalações de isolamento, a capacidade de quarentena, as leis, o rastreamento de contatos. Se você fizer apenas o um e o dois e depois liberar [a quarentena] novamente, a história se repetirá ", avisa.

Singapura tem sorte nesse aspecto, ao contrário do Reino Unido e dos Estados Unidos, por exemplo, porque em nenhum momento seu sistema de saúde foi sobrecarregado.

Também tem um partido político completamente dominante e meios de comunicação complacentes, mas o professor Dale diz que, mesmo com "mensagens claras para uma comunidade que confia no governo", está preocupado que "o cidadão comum ainda não entenda a importância de seu papel individual".

"Eles provavelmente dizem 'sim, Singapura deveria fazer isso, mas eu vou visitar minha mãe'."

Nos primeiros dois primeiros dias das novas regras, mais de 10 mil advertências foram emitidas por violações de quarentena, como sentar-se para comer em vez de levar comida para casa ou socializar em espaços públicos.

Todos os países estão procurando sinais de esperança, mas a lição de Singapura é que não há espaço para complacência e que todos os países devem estar preparados para enfrentar uma segunda e possivelmente uma terceira ou quarta onda de infecção.

Teo diz que, se os casos relatados de coronavírus no mundo são um reflexo justo de sua verdadeira propagação, "muitos países ainda têm uma oportunidade de realmente tentar se preparar", cercando suas comunidades vulneráveis ou superlotadas e "tentando conter aqueles que têm a doença e interagem com as comunidades".

"Só posso dizer que o mundo precisa olhar para Singapura com muita clareza, principalmente na questão dos dormitórios, e começar a explorar o que está acontecendo", diz ele.

"Precisamos começar a preparar o mundo. Mesmo na Europa e nas Américas, existem comunidades onde as pessoas moram muito próximas. O que acontecerá quando a covid-19 entrar nesses lugares?"