Mudança em lei deu carta branca para policiais agredirem na periferia, diz advogado
"Eu não consigo respirar."
Há uma semana, um motoboy negro gritava por socorro ao ser imobilizado por uma policial militar durante uma abordagem na avenida Rebouças, área nobre de São Paulo. Ele foi contido por outros PMs e disse ter recebido choques ao ser levado de camburão.
Dois dias antes, o Fantástico, da TV Globo, exibiu imagens de uma mulher de 51 anos sendo imobilizada por um policial ajoelhado no pescoço dela.
O governador de São Paulo, João Doria, disse que as cenas de agressão "causam repulsa". Os dois policiais foram afastados e o caso está sendo investigado.
Em Carapicuíba, na Grande São Paulo, um jovem desmaiou duas vezes ao ser estrangulado por PMs durante uma abordagem. Em outro caso em João Ramalho, no interior paulista, um jovem foi estrangulado e retirado de sua casa por policiais após resistir a uma abordagem.
O advogado membro do Grupo Tortura Nunca Mais e conselheiro do Conselho Estadual de Direitos Humanos (Condepe), Ariel de Castro Alves, disse em entrevista à BBC News Brasil que uma mudança na lei que trata de abuso de autoridade deu "carta branca" para policiais agredirem pessoas.
"Pela interpretação do texto, se a pessoa agredida não for detenta ou presa, o policial não pode responder pela agressão", afirmou.
Por outro lado, ele diz que essa violência também tem relação com problemas na formação dos policiais, preconceito com a população negra e pobre, além de incentivos em discursos de governadores.
Neste domingo, um policial militar foi preso após dar dois tiros nas costas de um suspeito de roubar uma moto em São Miguel Paulista, na zona leste de São Paulo. Um dos disparos foi feito quando o rapaz descia do veículo.
"Os policiais não vão a ocupações para conhecer a situação das pessoas. Não vão a praças para conhecer a população de rua, as crianças e adolescentes nessas situação. E sempre aprendem com a mesma visão corporativista dos formadores."
Abaixo, a entrevista completa com o advogado.
BBC News Brasil - Hoje, a violência policial aumentou ou os casos se tornaram mais comuns por conta do acesso da população a celulares e à capacidade de gravar e divulgar esses crimes?
Ariel de Castro Alves - Aumentou e as comunidades estão mais atentas a esses casos. E a única forma das pessoas que moram na periferia se defenderem da violência policial tem sido por meio de celulares e filmagens. A população está cansada dessa violência. Ela gera descrédito nos policiais e instituições. A população poderia denunciar ações do tráfico e outros crimes.
Mas a partir do momento em que a polícia comete abusos, discrimina e atua de forma racista, isso gera descrédito. Uma desmoralização dos policiais e a própria população contribui menos para esclarecimento de crimes.
Isso é um problema grave de segurança, mas ao mesmo tempo a população da periferia já está cansada de abordagens violentas. As abordagens deveriam ser para fazer a identificação, mas muitas vezes ocorrem abusos. Abordam sem suspeita, sem indício.
A abordagem na maior parte das vezes é por serem jovens, negros e que moram na periferia. Obrigam a pessoa a deitar no chão, se virar de costas, colocar as mãos para trás e esticar as pernas. Isso gera um constrangimento, uma humilhação para uma pessoa que está indo trabalhar, saindo para o lazer. Muitas vezes os policiais chegam agredindo, dando rasteira.
A população da periferia está cansada dessas situações. E não podem contar muito com os órgãos. Na pandemia, é mais difícil ir até Ouvidoria, Corregedoria. A única forma de se protegerem desses abusos de maior intensidade é filmando.
A polícia nunca esteve tão encorajada para cometer abusos como atualmente. Nunca se sentiram tão à vontade tanto pelo Parlamento, omissão de órgãos de controle, Judiciário, Ouvidoria e Corregedoria. Tem um cenário muito favorável para os policiais. Ocorreu uma ideologização das tropas como nos protestos a favor do Governo Federal.
BBC News Brasil - Mas por que isso aconteceu?
Ariel - Ocorreu uma perda de controle generalizada por parte dos Estados. É como se as polícias tivessem mais ligadas afetivamente e politicamente ao governo federal, que é militarizado, e com um presidente com histórico de desrespeito aos direitos fundamentais.
Por outro lado, tivemos governadores que estimularam a violência policial. O (João) Doria disse que a polícia estava autorizada a matar suspeitos. Condecorou policiais envolvidos em 11 mortes em Guararema e disse que contrataria os melhores advogados para policiais que responderem processos por ações violentas.
O excludente de ilicitude para policiais que cometem abusos foi apresentado pelo então ministro Sergio Moro e pelo governo Bolsonaro, mas reprovado pelo Congresso. O texto prevê que situações de medo, surpresa, violenta emoção e iminência de conflito armado como situações de legítima defesa que atenuam ou excluem de penas, aumentando as hipóteses de excludentes de ilicitude. É uma licença para torturas, agressões e assassinatos. O Congresso rechaçou essa parte do pacote anticrime.
Nem 10% dos crimes cometidos por policiais são punidos. É mais fácil um policial ser punido por estar com a farda amassada ou coturno sem engraxar do que por cometer alguma violência.
Essa questão das polícias estarem mais alinhadas ao governo federal tem a ver com a Constituição de 1988, que prevê que a PM é uma reserva do Exército. A desmilitarização é retirar isso da Constituição para que elas sejam civis, como em outros países.
Elas vão ter hierarquia, regras, como qualquer instituição. Policiais muitas vezes são treinados como se estivessem numa guerra e os adversários, os inimigos, têm o estereótipo do jovem negro de periferia. Eles inclusive cantam refrões nesse sentido nos treinamentos. Até usam como alvos (de treinamento) jovens negros e como cenário, as favelas.
O próprio governador do Rio também estimulou a violência policial. Falou em mirar na cabecinha, atirar do helicóptero. Esses estímulos estão produzindo essa escalada de violência. Os governos de esquerda também não fogem desses estereótipos. No Ceará, na Bahia, no Sul.
É algo enraizado em diferentes governos, geralmente na Polícia Militar. São raros casos na Polícia Civil. Aparentemente, nos últimos anos eles se adaptaram aos poucos à Constituição Federal e foram superando isso. Ainda cometem corrupção, extorsões, mas casos que envolvem torturas para confissões, que eram muito comuns, hoje são bem menos.
BBC News Brasil - Qual foi efetivamente a mudança na lei de abuso de autoridade?
Ariel - A grande questão é que essa lei (4898/1965) era do período da ditadura e foi completamente revogada. O próprio site do Planalto mostra isso, pois quando ela está riscada é porque foi revogada. Ela previa penas relativamente baixas e isso era até um problema.
Foi revogado o artigo que coloca como abuso qualquer atentado contra a integridade física. Qualquer tipo de agressão era abuso de autoridade. A nova lei acabou pontuando questões e essa parte ficou de fora.
O artigo que mais se aproxima desse tema é o Artigo 13. Mas esse é sobre constranger o preso ou detento. Pela interpretação do texto, se a pessoa agredida não for detenta ou presa, o policial não pode responder pela agressão. Se a pessoa já recebeu voz de prisão e apanhou, ele vai dizer que não deu voz de prisão e bateu. E os colegas vão dizer a mesma coisa. Então não configura abuso de autoridade.
E como fica o caso do motoboy? Até o momento em que ele foi agredido, ele não era detento ou preso. Mas depois ele se tornou porque foi levado na viatura por resistência. Disse que sofreu choque durante o transporte no veículo, além de outras agressões e ameaças. Só que a lei só se aplica o que ele sofreu na viatura porque ele ainda não era preso antes disso.
Chamamos essa situação de fato atípico, pois não está prevista em lei.
A lei fala de situações vexatórias, como abordar alguém sem haver uma suspeita, algemá-la, deixá-la de cueca. São situações vexatórias, mas não falam de violência ou agressão. Não tem o que previa a lei anterior.
Essa nova lei prevê uma pena de 1 a 4 anos de detenção, mais alta que o abuso de autoridade anterior que era até seis meses. O policial também poderia ser demitido, afastado, o que essa nova lei também tem.
O problema é que essa lei de 5 setembro de 2019 abre uma brecha para a impunidade.
(Se o policial agredir) um repórter ou manifestante em um protesto ficará impune, assim como agressões em abordagens. As pessoas dizem que foi abuso de autoridade, mas na prática depois é possível que se concluam que não por causa dessas brechas na lei. A exceção é quando quando é identificada lesão corporal por laudo do IML.
O problema é que nem sempre as agressões causam lesões. Uma pessoa pode tomar socos, chutes e cacetadas e não ter uma lesão. Também pode comprovar tortura, que precisa ser provada por testemunhas ou laudo de corpo de delito.
Hoje tem esse limbo legal, essa brecha que antes era preenchida. Esses casos de agressão são corriqueiros em dispersões de bailes funks, de jovens na periferia, manifestações. E até em situações mais graves pode existir essa dúvida. E quando existe dúvida o direito prevê que é pró réu.
Se for entendido que não foi uma lesão porque não ficou marca e não for configurada tortura, dificilmente os policiais vão receber punição por abuso porque até no momento em que aquele PM pisou no pescoço da senhora ela não era uma presa ou detenta. Ele pode ter dado voz de prisão depois disso.
BBC News Brasil - Mas ninguém viu esse limbo?
Ariel - Ninguém levantou essa lebre. A lei foi bem comemorada pelos advogados criminalistas e até defensores de direitos humanos. Ela prevê condutas para gerar investigações a promotores e juízes, inclusive. Mas acabou de alguma forma gerando brechas e tem falhas que podem favorecer policiais militares em situações que cometem violências.
Ela tem vários pontos positivos. O erro foi revogar essa do atentado à incolumidade física. Poderia haver uma revogação parcial e manter esse Artigo 3º e aumentar o período de detenção porque de 6 dias a 6 meses é extremamente baixo.
BBC News Brasil - Houve um aumento da violência policial nesse período?
Ariel - Houve um aumento de assassinatos cometidos por policiais. Mesmo com distanciamento e diminuição dos crimes, a violência aumentou. Aumentou porque aumentaram os confrontos, segundo as autoridades de segurança. Mas as estatísticas mostram o contrário.
Os crimes diminuíram enquanto os assassinatos cometidos por policiais aumentaram. É como se os policiais tivessem aproveitado esse período para cometerem mais abusos.
A nova lei só tratou da punição dos agentes públicos quando ocorre desrespeito às prerrogativas de advogados. Mas deixou de fora, médicos, jornalistas etc. As demais situações não estão previstas na nova lei.
Os policiais podem violar direito de reunião, de cultos religiosos, liberdade de associação, liberdade de consciência e crença, locomoção, liberdade de voto, sigilo de correspondência, além da incolumidade física, já que não estão previstas punições.
Isso contraria o Artigo 5 da Constituição Federal, que garante expressamente esses direitos. A revogação desse artigo, essa alteração, pode ser considerada inconstitucional.
Acompanho casos de violência policial desde o caso da Favela Naval, em Diadema, em 1997. Uma polícia violenta e descontrolada não deve interessar à sociedade, que paga os salários dos policiais. Polícia eficiente não é aquela que abusa, tortura e mata. Mas sim a que evita e esclarece crimes.
Em 2019, as polícias americanas mataram 259 negros, já as brasileiras mataram 4.353. No total, 1.099 civis foram mortos em 2019 pelas polícias dos Estados Unidos, enquanto as polícias brasileiras mataram 5.804 pessoas. 75% dos mortos por policiais no Brasil são negros, conforme dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Em 2019, a polícia de São Paulo matou 867 pessoas, sendo 99% pobres e 65% jovens negros, conforme dados da Ouvidoria de Polícia. As autoridades do Governo de São Paulo minimizam casos de tortura policial tratando-os como meros excessos, assim como tratam assassinatos e execuções como confrontos ou resistências seguidas de morte.
A impunidade é garantida em mais 90% dos casos, já que quem investiga são os colegas dos acusados. O corporativismo e a complacência com a violência da polícia costumam prevalecer, inclusive quando os casos são levados ao Judiciário.
Houve também um aumento da violência policial na quarentena em São Paulo, com 442 mortes praticadas por policiais nos primeiros 5 meses do ano, números superiores aos anos anteriores. Uma polícia eficiente certamente não é a que mata e tortura pessoas, inclusive as suspeitas de crimes, mas sim uma polícia que previne e investiga crimes, cumprindo as leis e a Constituição Federal.
A sociedade não pode ser conivente com a violência policial. Uma polícia violenta e descontrolada pode atingir supostos criminosos, mas também podem ser vítimas pessoas inocentes, ou qualquer um de nós. O papel dos policiais é de proteger a sociedade e não o de cometer crimes contra as pessoas.
BBC News Brasil - Há um preconceito social e racial por parte das polícias?
Ariel - Eu nunca fui abordado. Branco de terno não sofre nenhum tipo de abordagem. Nem mesmo sendo estigmatizado como defensor de direitos humanos como sou.
Essa tradição de violência está arraigada. É uma grande discriminação com os mais pobres, negros e moradores de periferia. E esses policiais tem esse mesmo contexto de vida das pessoas que eles atacam. Se quer conhecer alguém, dê poder. Eles usam esse poder contra os seus pares, eles são dos mesmos bairros e mesmas regiões.
Outro problema é o governo tratar os casos como isolados ou pontuais. Meros excessos. São casos de tortura, gravíssimos, de violência policial. Isso acaba estimulando a violência policial. Eles deveriam dar o nome correto. É tortura, abuso de autoridade, e não excesso. Isso minimiza a situação e estimula a violência. Não são casos isolados.
Os que são filmados são a minoria. Até porque geralmente eles levam para locais ermos onde não é possível filmar. Ou locais entre quatro paredes. Às vezes usam até a casa da própria pessoa, como ocorreu recentemente na Favela do Moinho, ou no meio do mato.
BBC News Brasil - Nas últimas semanas, vimos casos de jovens negros e até uma senhora sendo agredida por policiais. Mas no mesmo período um PM foi xingado em um condomínio de alto padrão sem reagir. Por que isso ocorre?
Ariel - Esse caso do condomínio é muito emblemático. Lá, o policial foi humilhado e agiu de forma cordial, tentando dialogar. É muito diferente se ele tivesse na mesma situação num bairro periférico. Já teria atirado, agredido, dado rasteira.
Isso nos leva à rediscussão da desmilitarização. Acabar com essa previsão através de uma emenda constitucional. Tornar todas as polícias civis ou comunitárias. E principalmente mudar a formação policial.
Hoje existem matérias relacionadas a direitos humanos na formação das polícias. Os policiais decoram muito as legislações internacionais, contra tortura, normas às ações, não letalidade, tratados das Organizações dos Estados Americanos, leis brasileiras, Constituição, principalmente o artigo 5º e crimes em relação aos excessos. Isso eles sabem de cor. Mas quem leciona essas aulas são oficiais, policiais da própria carreira. Não são pessoas vinculadas à defesa dos direitos humanos nem vinculadas à realidade.
Os policiais não vão a ocupações para conhecer a situação das pessoas. Não vão a praças para conhecer a população de rua, as crianças e adolescentes nessas situação. E sempre aprendem com a mesma visão corporativista dos formadores.
Não existe uma contextualização. Eles deveriam ter a necessidade de ter uma formação mais vinculada ao ativismo, de movimentos sociais, de enfrentamento ao racismo e a favor dos direitos humanos. Teriam que ouvir as pessoas, associações comunitárias e entender porque as pessoas não confiam na polícia. Precisam de um treinamento mais humano e mais vinculado à prática. É um defeito não só das polícias, mas também das faculdades de direito, de jornalismo, e muitas outras.
Seria mais legal levar essas pessoas para as comunidades. Na faculdade de direito é raro os estudantes irem a comunidades periféricas para tirar dúvidas, verificar quais são as demandas. E retornar para dar orientação. Estudar uma situação de despejo. As formações são desvinculadas das práticas e da vivência de quem conhece o dia a dia. Há essa falta de sintonia.
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