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Explosão no Líbano: a luta religiosa pelo poder que se reabre após tragédia

Manifestações de rua acentuaram pressão contra governo do Líbano - EPA
Manifestações de rua acentuaram pressão contra governo do Líbano Imagem: EPA

11/08/2020 11h11

"Os mecanismos de corrupção são maiores do que o Estado", afirmou o primeiro-ministro do Líbano, Hassan Diab, ao anunciar a demissão de todo seu gabinete, incluindo ele, em meio à onda de manifestações no país. A indignação popular, acentuada pelas crises econômica e de coronavírus, ganhou força com a megaexplosão que destruiu quase metade da capital, Beirute.

O acidente, ocorrido em 4 de agosto no porto de Beirute, deixou ao menos 160 mortos, 6.000 mil feridos e grande parte da cidade sob escombros.

Diab havia formado governo em dezembro de 2019 como resposta a uma série de protestos iniciados em outubro daquele ano contra o sistema sectário de distribuição de poder que tem regido o país há décadas e que outorga cotas a distintas comunidades religiosas do país.

Em seu discurso de demissão, o primeiro-ministro atribuiu a responsabilidade pela tragédia de Beirute à "classe política corrupta" e assegurou que seu governo fez "todo o possível para salvar o país", mas se deparou com um "grande obstáculo" no caminho pela mudança.

Presidente do Líbano - Reuters - Reuters
Presidente do Líbano recebe carta de demissão do primeiro-ministro do país (à direita)
Imagem: Reuters

A renúncia de Diab foi aceita pelo presidente, Michel Aoun, mas este pediu que o governo mantenha suas atribuições enquanto não surgir uma nova formação.

Mas por causa do controverso e complexo sistema de distribuição de poder no Líbano, esse vácuo pode se estender por bastante tempo.

Cotas por religiões

"A política no Líbano opera lentamente. Levou dois anos e meio para que o país elegesse seu atual presidente, nove anos para realizar eleições parlamentares e 12 anos para aprovar o Orçamento."

O resumo acima pertence a uma análise publicada pela revista The Economist em dezembro de 2018, e ilustra bem a dificuldade para forjar consenso político no país.

A raiz das dificuldades reside no sistema de repartição de poder que se originou durante o período colonial da França, que estabeleceu que postos do Parlamento se distribuiriam de forma proporcional entre 18 comunidades religiosas diferentes que convivem no país.

Hezbollah - Getty Images - Getty Images
Hezbollah, que conta com força militar, é um dos grupos mais poderosos do Líbano
Imagem: Getty Images

Essa divisão também afeta cargos no governo e empregos estatais, que são distribuídos de acordo com critérios sectários.

Segundo os Acordos de Taif, firmados em 1989 como um passo para encerrar a Guerra Civil que viveu o Líbano entre 1975 e 1990, os assentos no Parlamento se repartem de forma igualitária entre grupos cristãos e muçulmanos. Essa divisão substituiu uma fórmula anterior na qual cristãos contavam com uma maior representação.

Da mesma maneira, existe um acordo não escrito segundo o qual o presidente deve ser sempre um cristão maronita; o primeiro-ministro, um muçulmano sunita; e o presidente do Parlamento, um muçulmano xiita.

Assim, cada vez que é formado um governo, o chefe de Estado, em consulta com o presidente do Poder Legislativo e com forças parlamentares, convida um muçulmano sunita para formar governo. Em seguida, os diferentes ministérios são distribuídos a fim de refletir o balanço de poder entre os diferentes grupos religiosos.

Poder fragmentado e ineficaz

Embora tenha sido originalmente concebido para garantir a representação das 18 comunidades religiosas que vivem no país, o sistema sectário tem sido fonte de inúmeras crises políticas, a maior das quais se materializou na Guerra Civil.

Segundo os críticos do modelo, esse sistema tem impedido que um Estado central efetivo se estabeleça no país, uma vez que os líderes dos diferentes grupos sectários atuam mais de acordo com suas agendas parciais e seus próprios interesses.

Sunitas, xiitas, drusos e cristãos — os principais grupos que dominaram o Líbano — estabeleceram suas próprias esferas de influência dentro do Estado e as usam para seus próprios fins.

O grupo mais poderoso é o Hezbollah, movimento xiita apoiado pelo Irã, classificado pelos Estados Unidos como organização terrorista e cujo braço armado também está sob sanções da União Europeia.

No país, as decisões do Executivo devem ser aprovadas por uma maioria de dois terços dos ministros. No entanto, graças a um acordo firmado em 2008, o Hezbollah e seus aliados têm garantido parte dos postos do gabinete, o que lhes dá direito a voto.

Esse complexo sistema de divisão de poder demanda colocar em acordo esses grupos sectários convencendo-os a deixar as diferenças de lado (ou abrir mão de suas próprias demandas).

Dessa forma é possível entender por que é tão difícil formar um governo efetivo no Líbano e também por que o governo interino de Diab pode se estender por bastante tempo, apesar das manifestações nas ruas e da gigantesca tarefa de reconstruir a capital do país enquanto combate a grave crise econômica nacional.