Topo

Esse conteúdo é antigo

A guerra familiar que levou a principal assessora de Trump a se demitir

Kellyanne Conway, de 51 anos, pediu demissão do governo Trump - Reuters via BBC
Kellyanne Conway, de 51 anos, pediu demissão do governo Trump Imagem: Reuters via BBC

Mariana Sanches

Da BBC News Brasil em Washington

24/08/2020 19h04

Na semana da convenção republicana, que vai oficializá-lo como o candidato do partido à reeleição, o presidente Donald Trump sofreu mais um golpe em sua campanha.

Atrás nas pesquisas nacionais de intenção de voto, Trump acaba de perder uma de suas mais longevas e fiéis assessoras, Kellyanne Conway, de 51 anos, tragada por um drama familiar que simboliza a atual polarização dos americanos.

Ontem, apenas três dias antes de fazer um discurso na convenção republicana e a pouco mais de dois meses do dia da eleição, Kellyanne entregou sua carta de demissão ao chefe.

A assessora vivia há dois anos sob pressão dentro de sua própria casa. Em artigo na última semana ao Washington Post, seu marido George Conway, de 54 anos, disse que Trump merecia a "infâmia".

Mas a gota d'água foi o pedido de emancipação da filha adolescente do casal, Claudia, de 15 anos, que neste domingo afirmou via redes sociais que o emprego de sua mãe na Casa Branca "arruinou" a vida dela.

Casados, mas inimigos políticos

O casal Kellyanne e George Conway é republicano de longa data e apoiou Trump com fervor em 2016. Mais que isso. Kellyanne, apresentada a Trump por George, foi gerente da campanha bem-sucedida do republicano há quatro anos.

Poucas horas após o anúncio da vitória de Trump, enquanto o presidente eleito se preparava para fazer seu discurso vencedor, George chorava de felicidade e orgulho da mulher, com quem tem quatro filhos. Eles se mudaram para uma mansão na capital americana, Washington D.C., e pareciam destinados a dias de poder e alegria em família.

"Agora choro por outros motivos", afirmou George ao Washington Post há 10 dias, expondo a deterioração da vida conjugal pelas desavenças políticas.

Advogado, seu nome chegou a ser cogitado para o posto de assistente da Procuradoria-Geral americana, ainda nos meses iniciais do governo, mas o próprio George pediu para que o excluíssem da possibilidade.

Enquanto sua mulher se tornava cada vez mais uma peça fundamental na estratégia de Trump na Casa Branca, a partir de 2018 George rompeu com a gestão e passou a qualificar publicamente os atos do atual presidente como "inconstitucionais" e "absurdos".

Foi além. Esse ano, criou um grupo de conservadores anti-trumpistas, batizado de Lincoln Project, que tem ganhado proeminência e anunciou apoio ao democrata Joe Biden nas eleições em novembro. Duros golpes na campanha que sua mulher tentava fazer vitoriosa.

Enquanto isso, há alguns meses a filha Claudia passou a relatar o grau de toxicidade das relações domésticas na família Conway via Twitter. E a atacar os posicionamentos políticos da mãe (e em menor grau, também do pai) publicamente. Sua conta tornou-se extremamente popular, com 435 mil seguidores.

'A vida não é justa'

Em 31 de julho, por exemplo, Kellyanne escreveu uma mensagem lamentando a morte do líder conservador e empresário Herman Cain, vítima de covid-19.

Republicano e apoiador de Trump, Cain chegou a ir em junho ao comício de Trump em um ginásio em Tulsa (Oklahoma). À época, em aprovação à decisão de Trump de não obrigar o uso de máscaras, ele disse: "As pessoas estão cheias disso".

Semanas mais tarde se tornaria uma das mais de 170 mil vidas perdidas para a pandemia nos Estados Unidos. Em resposta à mensagem fúnebre de Kellyanne, Claudia respondeu: "Aim, é triste, mas o governo para o qual você trabalha não é cúmplice nessa morte?"

Nos posts, Claudia afirmou que sua mãe ignorava o sofrimento dos filhos, preocupada apenas com fama e dinheiro. "Você sabe que a vida não é justa quando acorda e vê sua mãe falando ao lado de um estuprador e homofóbico", afirmou Cláudia em outro post sobre uma reunião de Kellyanne e Trump.

A adolescente também disse que politicamente discorda em tudo do pai, mas que ambos têm "bom senso em relação ao presidente". E retuitou um post que sugeria que ela fosse adotada pela congressista progressista e democrata Alexandria Ocasio-Cortez, a quem Trump qualifica como extrema-esquerda.

Por fim, Claudia passou a fazer sucesso com seus desabafos e opiniões políticas em vídeos no TikTok, aplicativo chinês que Trump tenta banir dos Estados Unidos.

Um país dividido

O atual retrato de família Conway, rasgado em diversos pedaços, ilustra a polarização política que tomou conta da sociedade americana. A distância entre os universos políticos tem se aprofundado, de acordo com institutos de pesquisa.

Um levantamento do Pew Research divulgado nesta segunda, 24, mostrou que, enquanto na média a aprovação do presidente Trump está em 38%, 87% dos americanos que se dizem republicanos o aprovam, contra apenas 6% dos eleitores democratas.

E o fenômeno não acontece apenas em relação ao presidente. Há uma semana, o mesmo instituto perguntou a opinião dos americanos sobre a criação de uma renda básica universal para adultos: enquanto 66% dos democratas se disseram favoráveis, 78% dos republicanos foram contrários.

E há duas semanas, o Pew Research quis saber a que os pesquisados atribuíam o aumento de casos de covid-19 no país, que já passou dos cinco milhões de diagnósticos. Enquanto 80% dos democratas afirmaram que a pandemia cresce porque a epidemia está fora de controle, 62% dos republicanos atribuíram o fenômeno ao grande número de testes feitos, um argumento que tem sido repetido à exaustão pelo presidente Trump.

Aliás, enquanto 85% dos democratas veem a situação como um alto risco de saúde pública, apenas 46% dos republicanos dizem o mesmo.

Autor do livro Why we are polarized (Porque estamos polarizados, em tradução livre) sobre o fenômeno, o jornalista Ezra Klein, fundador do site Vox, afirma que os Estados Unidos chegaram tardiamente - e com força - a uma tendência que já aparecia no século 20 em outras democracias ocidentais.

Ao longo de décadas, os dois principais partidos americanos - republicano e democrata - tendiam ao centro no espectro político, se alternando no poder e colaborando um com a gestão do outro. A diferença entre correligionários das duas agremiações poderia ser considerada quase residual.

Nos últimos 50 anos, no entanto, Klein afirma que os americanos foram se entrincheirando cada vez mais em clivagens culturais, raciais, geográficas, religiosas, ideológicas. Como resultado, "todos estão constantemente zangados e agitados, e a política se torna algo que só aqueles com estômago forte podem tolerar", afirmou Klein, em entrevista à revista americana Wired.

Segundo ele, como o presidente tem relativamente pouco poder diante do Congresso, para governar é preciso construir acordos bipartidários. Com a polarização, as disputas políticas se tornaram cada vez mais escarnecidas e cada vez menos resolutivas.

"Aumentamos a intensidade de nossas lutas políticas, ao mesmo tempo em que tornamos quase impossível para um lado ou outro vencer, pelo menos em termos de formulação de políticas. Isso deixa o público preso em um sistema onde todos estão lutando, mas seus problemas não estão sendo resolvidos", conclui Klein.

Menos de uma semana após discursar como o candidato democrata, Joe Biden pode ter no caso da assessora de Trump e sua família uma espécie de prova de seu argumento de campanha.

Pouco entusiasmante para o eleitorado no geral, ele se apresentou como um candidato capaz de unificar os americanos novamente. Para tanto, se apresentou como o nome de uma coalizão que incluía não apenas os centristas e os esquerdistas do partido democrata, mas até mesmo republicanos insatisfeitos com Trump.

Em sua carta de demissão, no entanto, Kellyanne procurou evitar servir de combustível político. "Eu deixarei a Casa Branca no fim deste mês. George também está fazendo mudanças (para diminuir o trabalho). Discordamos em muito, mas estamos unidos no que mais importa: as crianças", afirmou ela. E concluiu: "Esta é minha escolha e minha voz. Por ora, e pelos meus queridos filhos, será menos drama, mais mama".