Por que governo francês está responsabilizando as redes sociais em caso de professor decapitado
O assassinato na França do professor Samuel Paty, decapitado por um radical islâmico em 16 de outubro, relançou no país debates sobre a responsabilidade das redes sociais na publicação de conteúdos de ódio e sobre os limites da liberdade de expressão na internet.
Após o ataque que chocou o país, o governo francês quer reforçar a repressão aos discursos desse tipo nas plataformas digitais.
Paty, 47 anos, professor de história e geografia em um colégio em Conflans-Sainte-Honorine, nos arredores de Paris, foi decapitado por ter mostrado duas caricaturas do profeta Maomé em uma aula sobre a liberdade de expressão.
O tema é atual, já que ocorre na França o julgamento de supostos cúmplices do atentado, em 2015, contra o jornal satírico Charlie Hebdo, que havia publicado as caricaturas.
O governo francês aponta diretamente a responsabilidade das redes sociais no assassinato do professor. Nos dias que precederam o atentado, ele havia sido alvo de uma onda de insultos nas plataformas online, principalmente no Facebook.
O estopim foi um vídeo viral em que o pai de uma aluna muçulmana acusa Paty de mostrar "imagens pornográficas" na aula e pede, em meio a xingamentos, a demissão do professor.
O nome de Paty e o endereço do colégio onde ele lecionava foram divulgados nas redes. Ele foi assassinado a poucos metros do estabelecimento de ensino por Abdouallakh Anzorov, um refugiado de 18 anos de origem chechena.
"As coisas começaram nas redes sociais e terminaram nas redes sociais", diz o porta-voz do governo, Gabriel Attal, se referindo ao fato de que o autor do ataque publicou no Twitter imagens do corpo do professor decapitado para reivindicar seu ato.
"As redes sociais têm uma responsabilidade e devemos enquadrá-las melhor", ressaltou o porta-voz do governo. Segundo ele, "os que participaram do linchamento público desse professor são, de alguma maneira, responsáveis do que ocorreu."
"Não podemos mais assistir passivamente à explosão de ódio nas redes sociais", declarou o primeiro-ministro francês, Jean Castex.
Ele anunciou que o governo prevê classificar como delito a divulgação na internet informações pessoais que coloquem a vida de alguém em perigo.
Denúncias contra conta do assassino no Twitter
A plataforma Pharos, criada pelo governo em 2016 para denunciar conteúdos ilegais (pedofilia, incitação ao ódio racial, apologia do terrorismo, por exemplo) terá sua equipe reforçada rapidamente, segundo o premiê.
A Pharos, no entanto, um serviço do Estado francês, havia recebido em julho várias denúncias relacionadas à conta Twitter do assassino do professor, mas não solicitou seu fechamento, alegando que não havia suspeita sobre um possível ataque.
O ministro da Justiça, Eric Dupont-Moretti, prevê uma reforma da lei de liberdade de expressão, de 1881, que protege a liberdade da imprensa e a responsabiliza penalmente em caso de insultos, difamação ou incitação ao ódio e à violência.
Como esses processos costumam ser longos, a ideia, defendida por procuradores franceses, é criar mecanismos que permitam uma ação rápida da Justiça em casos de discursos de ódio que podem resultar em tragédias, como já foi feito em relação à apologia ao terrorismo.
É justamente o caso dos autores de 80 mensagens de apoio ao assassino do professor nas redes sociais, que foram identificados pela plataforma Pharos. Essas pessoas estão sendo monitoradas pela polícia e poderão ser julgadas por apologia ao terrorismo.
"Acho que as redes sociais ainda não atingiram o estágio de levar a sério o que está acontecendo em termos de discurso de ódio online", afirma a ministra francesa da Cidadania, Marlène Schiappa, que se reuniu na semana passada com os representantes franceses das principais plataformas, como Facebook, Google e YouTube, Twitter, Tiktok e Snapchat.
Ela também afirma que as redes têm de assumir sua responsabilidade para eliminar os conteúdos de ódio.
"A ideologia islamista, que inspirou o assassinato de Samuel Paty, se propaga muito nas redes sociais", afirma Schiappa.
Para o ministro do Interior, Gérald Darmanin, as mídias sociais "têm uma responsabilidade enorme na mutação do terrorismo e na radicalização".
"Estamos sempre reforçando nossas regras em relação aos conteúdos de ódio e investimos de forma maciça para reforçar nossas equipes e desenvolver tecnologias para erradicar o ódio em nossas plataformas e construir uma internet mais segura", afirmou o escritório do Facebook na França em um comunicado.
Outras plataformas também afirmam ter feito investimentos pesados e ter obtido avanços na detecção e moderação de conteúdos de ódio e de desinformação que coloquem a vida das pessoas em risco.
O parlamento francês chegou a aprovar, em maio, a lei Avia, para lutar contra os discursos de ódio online, mas as principais medidas do texto foram rejeitadas pelo Conselho Constitucional sob a alegação de que poderiam ferir a liberdade de expressão.
Na prática, o conselho avaliou que era impossível impor às plataformas selecionar o que é lícito ou não e que havia o risco de acabar suprimindo todos os conteúdos denunciados, incluindo os que não são ilegais. A lei entrou em vigor, mas totalmente esvaziada de seus pontos principais.
Mudanças na legislação
O assassinato de Paty reacendeu as discussões sobre uma nova "lei Avia" na França. Políticos, até mesmo da oposição, pedem um novo projeto nessa área. O governo prevê retrabalhar alguns aspectos sobre o discurso de ódio nas redes, que poderão ser incluídos no projeto de lei sobre o separatismo islâmico, que será apresentado em dezembro ao parlamento.
Há discussões na França, inclusive jurídicas, sobre o que as redes sociais poderiam ter feito no caso do professor e com base em quais critérios vídeos e outras publicações podem ser suprimidos.
O vídeo do pai da aluna de Samuel Paty, que criou a polêmica na internet, não continha incitação explícita ao ódio ou à violência.
Seus comentários foram injúrias, afirmam juristas na área. O pai chamou o professor de "bandido" e disse para as pessoas escreverem para o diretor do colégio e pedir a demissão "desse doente."
O militante islamista Abdelhakim Sefrioui, fichado por radicalização, também publicou um vídeo no YouTube denunciando o professor, mas sem fazer ameaças.
Os dois foram indiciados por cumplicidade de assassinato relacionado à ação terrorista. Eles são acusados de tornar o professor um alvo ao divulgar seu nome nas redes sociais, fazendo uma "reinterpretação" dos fatos, segundo o procurador antiterrorista Jean-François Ricard.
Para Alexandre Lazarègue, especialista em direito digital, as plataformas são vistas como um simples canal de difusão e para que sua responsabilidade fosse envolvida, elas teriam que ser consideradas como diretoras de publicação.
Diretriz europeia
Para alguns especialistas, nenhuma solução para os discursos de ódio poderá ser encontrada se as plataformas de internet não assumirem uma certa responsabilidade legal pelos conteúdos que elas divulgam, semelhante à responsabilidade editorial em vigor para a imprensa tradicional.
A aposta é que a futura diretiva europeia para os serviços digitais (Digital Services Act - DSA) que está sendo elaborada pela Comissão Europeia permita avançar nessa direção. O texto, que irá revisar a responsabilidade das plataformas online, deve ser apresentado em 2 de dezembro.
"Em muitos casos, o espaço digital é uma zona de não direito", disse o comissário europeu de mercado interno, Thierry Breton, em entrevista ao Le Monde.
"Vivemos ainda sob o regime da diretriz de e-comércio de 2000. Naquela época, só existiam Microsoft e Apple. O mundo mudou e se tornou crucial regular o espaço digital", afirma Breton.
Segundo ele, o fio condutor dessa diretriz será que o que é permitido ou proibido fora da internet também deve ser online.
"Os conteúdos de ódio, a amplificação da violência verbal e física, a desinformação têm de ser identificados como tais e tratados em função disso", diz Breton, ressaltando que isso não irá reduzir a liberdade de expressão.
Se uma plataforma não retirar um conteúdo ilegal, ela será sancionada financeiramente, acrescenta o comissário europeu.
A iniciativa europeia para tentar conter discursos de ódio na internet em meio a debates sobre a liberdade de expressão e responsabilização das redes sociais não é uma iniciativa isolada.
Ao mesmo tempo, as gigantes da web são cada vez mais pressionadas por políticos e grupos de defesa de direitos civis a limitar a desinformação, teorias conspiratórias e mensagens de ódio, racismo e assédio.
No Brasil, o Supremo Tribunal Federal julga a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet. Ele prevê a necessidade de ordem judicial para apagar conteúdo ofensivo publicados por terceiros. As redes sociais não podem ser responsabilizadas se não atenderem a pedidos de remoção feitos por usuários.
Nos Estados Unidos, o Departamento de Justiça enviou ao Congresso uma proposta para reduzir a proteção jurídica das plataformas digitais, impulsionado pelo presidente Donald Trump, mas com uma visão diferente do que está sendo feito na Europa para tentar responsabilizar as redes pelas publicações.
O objetivo é revisar a chamada seção 230 da lei Communications Decency Act, de 1996, que garante imunidade às plataformas em relação ao conteúdo criado por seus usuários.
Trump, que já teve várias publicações apagadas ou com mensagens de alerta sobre conteúdo duvidoso, principalmente no Twitter, acusa as redes de praticar censura.
A proposta apresentada pelo ministério da Justiça prevê, por exemplo, que para manter a imunidade as plataformas teriam de justificar claramente porque elas decidem suprimir um conteúdo.
Isso visaria limitar a moderação feita pelas redes sociais em relação a publicações que elas consideram repreensíveis e as incitaria a se manter neutras para evitar ações na Justiça.
Nesta semana, os presidentes do Twitter, Facebook e Google deverão depor em uma reunião do Senado americano que examina a seção 230.
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