Em livro, Obama relata reza ao pé do Cristo e rumores de propina bilionária no governo Lula
Foi por meio de um telefone celular de um assessor, em Brasília, que o então presidente dos Estados Unidos, Barack Obama lançou, em 2011, a primeira ofensiva militar de seu governo, contra o regime do coronel Muamar Khadafi, na Líbia. "Você está autorizado", disse Obama ao então chefe do Estado-Maior, o almirante Mike Mullen, pelo telefone, em uma sala no Palácio do Planalto — ato que detonaria seis meses de ataques dos EUA que levariam à queda e à morte de Khadafi.
A cena é ilustrativa de como o Brasil surge em "Uma Terra Prometida", primeiro volume de suas memórias presidenciais, lançado mundialmente hoje. Nas 764 páginas da publicação, o país aparece ora como um cenário, ora como um ator coadjuvante nas negociações internacionais pelas quais Obama conduz o leitor, em uma obra na qual também revela intimidades de sua vida em família.
Obama descreve Lula como "cativante" e ambíguo em seus escrúpulos políticos, relata como via a articulação internacional do Brasil com países como a China — e como essa cooperação ameaçou os planos americanos em temas como as mudanças climáticas — e conta da satisfação de pai de ter levado as filhas a uma visita ao Cristo Redentor no Rio de Janeiro, enquanto parece questionar sua própria importância, como o primeiro presidente negro dos EUA, para algumas centenas de brasileiros negros e pobres que o viram acenar brevemente em uma visita à favela de Cidade de Deus.
O livro é lançado a pouco mais de dois meses da posse do democrata Joe Biden como o novo presidente americano, em sucessão ao republicano Donald Trump. Biden foi vice de Obama durante seus dois mandatos, e foi destacado pelo então presidente como seu principal emissário na América Latina. Fiel aliado a Trump, o governo brasileiro de Jair Bolsonaro ainda não parabenizou Biden pela vitória nas eleições há duas semanas.
Ataque à Líbia ordenado de sala do Planalto
E apesar da propalada proximidade entre Trump e Bolsonaro, Obama foi o último presidente americano a visitar o Brasil, entre 19 e 20 de março de 2011, no primeiro ano do governo de Dilma Rousseff. O país foi a primeira parada de uma viagem de quatro dias por três países latinos, que tinha o objetivo de "melhorar a imagem dos Estados Unidos na América Latina". Aproveitando uma curta janela de férias escolares de suas duas filhas, Sasha e Malia, o presidente americano veio ao país acompanhado por ambas, pela mulher (a primeira-dama Michelle) e pela sogra (Marian Robinson).
"Aquela era minha primeira visita à América do Sul como presidente e meu primeiro encontro com a presidente recém-eleita, Dilma Rousseff. Economista e ex-chefe de gabinete de seu carismático antecessor, Lula da Silva, Rousseff estava interessada, entre outras coisas, em incrementar as relações comerciais com os Estados Unidos", afirma Obama, no livro lançado no Brasil pela editora Companhia das Letras.
A situação da Líbia, no entanto, tirou em parte o foco de Obama na viagem. "Ela (Dilma) e seus ministros receberam calorosamente nossa delegação quando chegamos ao palácio presidencial, uma estrutura leve e modernista com colunas em forma de asas e enormes paredes de vidro. Durante várias horas conversamos sobre os meios de promover maior cooperação bilateral em matéria de energia, comércio e mudanças climáticas. Mas, com as crescentes especulações em todo o mundo sobre quando e como teriam início os ataques contra a Líbia, ficou difícil ignorar a tensão. Pedi desculpas a Rousseff pelo eventual incômodo que a situação estava causando", relembra Obama. Segundo ele, Dilma teria respondido em português: "Vamos dar um jeito. Espero que esse seja o menor dos seus problemas".
"O fato de que o Brasil na maioria das ocasiões tentava evitar tomar partido nas disputas internacionais — e se abstivera no voto do Conselho de Segurança sobre a intervenção na Líbia — só piorava as coisas", analisa Obama, sobre a situação de ordenar um ataque a um país estrangeiro sem estar nos EUA naquele momento.
Sob a gestão de Bolsonaro, o Brasil rompeu com sua tradição diplomática de não-intervenção em assuntos domésticos alheios e se alinhou aos americanos em suas investidas militares. O maior e mais recente exemplo disso foi o controverso ataque americano no Iraque que resultou na morte do general iraniano Qasen Soleimani, em janeiro desse ano. "Nós não aceitamos o terrorismo. Não interessa o lugar do mundo em que ele venha a acontecer", afirmou Bolsonaro, que não é citado por Obama no livro, até porque o democrata deixou a Casa Branca dois anos antes que o atual presidente brasileiro chegasse ao Planalto.
Obama também não menciona a crise enfrentada com Dilma, dois anos após sua visita em Brasília, quando o ex-agente da Agência de Segurança Nacional americana (NSA, na sigla em inglês) Edward Snowden veio a público denunciar um esquema de espionagem americano contra líderes de Estado que incluía a mandatária brasileira e sua equipe. Na ocasião, Dilma que tinha um jantar marcado com Obama na Casa Branca, desmarcou sua visita aos EUA. E recebeu pessoalmente um pedido de desculpas em Brasília do então vice Biden. O imbróglio deve ficar para o segundo volume das memórias, ainda sem data para publicação.
'Escrúpulos de um chefão de Tammany Hall'
A presença do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no livro é bem mais marcante que a de Dilma. Publicamente, Obama sempre tentou demonstrar apreço pelo brasileiro. Em 2009, em Londres, durante um almoço entre líderes do G-20 (grupo de países desenvolvidos e em desenvolvimento), Obama afirmou que Lula era "o cara" e que o então presidente brasileiro era o "político mais popular do mundo". Lula estava em seu sétimo ano na presidência e sua taxa de popularidade estava acima dos 80%. "É porque ele é boa pinta", ainda brincou o presidente americano, no mesmo evento.
Nas páginas de "Uma Terra Prometida", a descrição do mandatário brasileiro surge de maneira mais nuançada. Ao falar sobre a então consistente articulação dos BRICS, bloco composto por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, uma das apostas da gestão petista em política externa, Obama afirma que Lula "tinha visitado o Salão Oval em março, causando boa impressão".
A descrição do americano segue: "Ex-líder sindical grisalho e cativante, com uma passagem pela prisão por protestar contra o governo militar, e eleito em 2002, tinha iniciado uma série de reformas pragmáticas que fizeram as taxas de crescimento do Brasil dispararem, ampliando sua classe média e assegurando moradia e educação para milhões de cidadãos mais pobres. Constava também que tinha os escrúpulos de um chefão do Tammany Hall, e circulavam boatos de clientelismo governamental, negócios por baixo do pano e propinas na casa dos bilhões".
Tammany Hall era o nome dado à maquina política democrata que dominou a cidade de Nova York por 200 anos, até meados do século passado, e cuja atuação virou sinônimo de corrupção, mas também de benevolência a imigrantes. Em outro trecho do livro, ao falar sobre o líder russo, Vladimir Putin, Obama recorre mais uma vez à imagem dos políticos da Tammany Hall, a quem descreve da seguinte maneira: "homens durões, calejados, frios, que se restringiam ao que sabiam, nunca iam além de suas experiências estreitas e consideravam os apadrinhamentos, as propinas, as extorsões, as fraudes e os ocasionais atos de violência ferramentas legítimas do ofício".
Obama não explica a que se refere quando fala em "propinas na casa dos bilhões", mas quando ele e Lula se conheceram o presidente brasileiro havia sobrevivido ao primeiro grande escândalo de corrupção a atingir seu governo: o caso mensalão, que estourou em 2005. As cifras envolvidas no esquema de compra de apoio parlamentar no Congresso eram muito mais modestas do que aquelas que surgiriam após as investigações da Operação Lava Jato, em 2014, quando Lula já havia deixado o poder. Obama sairia da Casa Branca menos de dois anos mais tarde.
Conflitos com o Brasil no meio ambiente
O aquecimento global e a preservação ambiental devem se tornar temas a contrapor Brasil e EUA em 2021, quando a nova gestão democrata começar. Ainda durante a campanha, Biden mencionou mais de uma vez o desejo de liderar a formação de um fundo de US$ 20 bilhões para ajudar o Brasil a conservar a floresta Amazônica e chegou a mencionar "consequências econômicas" ao país, caso a devastação vista nos últimos dois anos não fosse interrompida. A declaração foi interpretada como uma ameaça por Bolsonaro, que afirmou que a soberania nacional "não está à venda" e, recentemente, sem mencionar o nome de Biden, disse que, diante de barreiras econômicas, "quando acaba a saliva, tem que haver pólvora".
Embora em tom mais cordial, Brasil e EUA estiveram em lados opostos em relação ao meio ambiente durante o governo Obama. Em 2009, às vésperas da rodada de negociação climática em Copenhague que deveria atualizar o Protocolo de Kyoto, o presidente americano dizia sofrer pressão dos europeus para avançar nos cortes de emissões de gás carbônico por um lado, enquanto via crescer resistências domésticas contra esse tipo de política, vista como prejudicial para a economia americana, atingida por uma dura recessão em 2008. Essas tensões eram o embrião para as ideias político-econômicas que seriam abraçadas por Trump anos mais tarde, catapultado à Casa Branca por sua defesa de medidas protecionistas e negacionistas ao aquecimento global.
"O problema era que o Protocolo de Kyoto interpretara as 'responsabilidades diferenciadas' de tal forma que potências emergentes como a China, a Índia e o Brasil não teriam obrigações vinculantes de reduzir suas emissões. Isso podia ser compreensível quando o protocolo fora redigido, doze anos antes, quando a economia mundial ainda não havia sido totalmente transformada pela globalização. Mas em meio a uma recessão brutal, com os americanos já sofrendo com a transferência constante dos empregos para fora do país, um tratado que impusesse restrições ambientais a fábricas locais sem solicitar uma ação similar das que operavam em Xangai ou em Bangalore simplesmente não teria apoio", afirmou Obama, que conta ter se empenhado pessoalmente para fazer avançar uma proposta que ficasse a meio caminho das restrições desejadas pelos europeus e da ausência de metas defendida pelos BRICS. A China havia ultrapassado os americanos em emissões de CO2 em 2005.
Segundo Obama, ele chegou a invadir uma reunião entre o mandatário chinês e os líderes de Brasil, Índia e África do Sul para forçar um entendimento "Me virei para Hillary. 'Quando foi a última vez que você entrou de penetra numa festa?' Ela riu. 'Já faz algum tempo', respondeu, parecendo a garota muito certinha que resolve aprontar alguma. No final de um corredor comprido, encontramos o que procurávamos: uma sala com paredes envidraçadas, onde cabia apenas uma mesa de reuniões, em torno da qual estavam o premiê Wen (Jiabao), o primeiro-ministro (indiano Manmoham) Singh e os presidente Lula e (Jacob) Zuma, junto com alguns de seus ministros", escreve Obama.
Para o ex-presidente americano, a negociação de Copenhague, considerada frustrante por vários analistas, lançou as bases para que os países celebrassem, sete anos mais tarde, o Acordo de Paris, com metas mais ambiciosas para a diminuição do aquecimento terrestre.
A questão racial e a prece diante do Cristo
É de sua passagem pela favela da Cidade de Deus, na visita ao Brasil em 2011, que Obama tira uma das reflexões mais relevantes para o cenário doméstico americano atual.
Em 2020, o país foi tomado pelos maiores protestos por justiça racial registrados desde o movimento pelos direitos civis na década de 1960. O estopim do movimento foi a morte de George Floyd, um homem negro e desarmado que perdeu a vida asfixiado por um policial branco que se ajoelhou em seu pescoço durante uma abordagem policial. "Eu compreendia também que a presença no Brasil era importante, em especial para os brasileiros de ascendência africana, que representavam pouco mais da metade da população do país e, como os negros nos Estados Unidos, sofriam o mesmo tipo de pobreza e de racismo profundamente enraizado — ainda que com frequência negado", afirma Obama.
Em 2011, ele conta ter sido impedido pelo Serviço Secreto americano de caminhar pelas ruas da Cidade de Deus, mas afirma que convenceu os agentes de segurança a permitir que ele cumprimentasse a multidão que se formara do lado de fora do programa social que ele fora visitar. "De pé no meio de uma rua estreita, acenei para os rostos negros, pardos e bronzeados; os residentes, muitos deles crianças, se amontoavam nos telhados e nas pequenas varandas, ou se apertavam contra as barricadas da polícia", relembra.
Na sequência, Obama diz ter ouvido de uma assessora que sua presença teria mudado a vida daquelas pessoas. "Eu me perguntava se aquilo era verdade. Era isso o que eu dizia a mim mesmo ao iniciar minha jornada política, e usei como parte da justificativa que dei a Michelle para concorrer à presidência — que a eleição e a liderança de um presidente negro faria mudar a autoimagem e a visão de mundo de crianças e jovens de todos os lugares. E, no entanto, eu sabia que o eventual impacto que minha rápida presença pudesse exercer sobre aquelas crianças nas favelas (...) em nada compensaria a pobreza asfixiante que enfrentavam todos os dias (...) Para mim, o impacto que eu exercera até então na vida das crianças pobres e de suas famílias havia sido insignificante — mesmo em meu próprio país", diz.
As reflexões filosóficas de um líder político mundial se misturam às angústias típicas de um pai atarefado, que vê os filhos crescerem à certa distância. Obama relata que, no Brasil, sentiu aumentar "minha sensação — já bem frequente nos últimos tempos — de que minhas filhas vinham crescendo mais rápido do que eu esperava".
Sobrevoando a cidade do Rio, Obama interrompe o folhear de revistas das filhas, que ouviam música em seus ipods, para mostrar o Cristo Redentor pela janela do helicóptero. Ele planejara levá-las a uma visita ao monumento, quase cancelada pela névoa no Corcovado. Obama tem a impressão de que as filhas parecem indiferentes ao passeio, mas subitamente as condições climáticas melhoram e ele ganha esse momento em família.
"Enquanto galgávamos uma série de degraus, com os pescoços esticados para trás na tentativa de apreciar a vista, senti a mão de Sasha agarrar meu braço. Malia passou o braço em volta da minha cintura. 'Temos que rezar ou alguma coisa assim?', perguntou Sasha."
"Por que não?", respondi. Então nos juntamos, as cabeças curvadas em silêncio, e eu soube que ao menos uma de minhas preces naquela noite havia sido atendida".
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