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O movimento que defende indenização a descendentes de escravos pelo mundo

Movimento Black Lives Matter reacendeu discussões sobre indenizações a descendentes de escravos - Getty Images
Movimento Black Lives Matter reacendeu discussões sobre indenizações a descendentes de escravos Imagem: Getty Images

Fernando Duarte

Do Serviço Mundial da BBC

15/12/2020 11h17

Maya Moretta conhecia o elo da Universidade Georgetown, nos Estados Unidos, com a escravidão quando se matriculou no curso de Estudos Negros da prestigiosa instituição acadêmica americana.

Mas a estudante de 21 anos se surpreendeu com o que descobriu sobre esse passado ao pesquisar nos arquivos da universidade.

"O que me chocou foram os documentos (mostrando que) pessoas escravizadas eram tratadas como mero objetos. Por exemplo, estudantes traziam seus próprios escravos para trabalhar na universidade como forma de pagar menos nas anuidades", diz ela à BBC.

"Foi um momento que abriu meus olhos. Senti que algo precisaria ser feito para corrigir o legado de toda essa injustiça."

Desde então, Maya está ativamente engajada nos debates sobre a reparação da escravidão - um conceito político de justiça que defende a necessidade de promover reparações econômicas para injustiças ocorridas no passado.

É um conceito altamente polarizador, como a própria Maya descobriu quando começou a fazer campanha para que Georgetown respondesse por seu passado escravagista, especificamente pela venda de um grupo de 272 pessoas escravizadas pela instituição em 1838, para equilibrar suas contas.

Entre os traficados pelos padres jesuítas que na época possuíam a universidade estava um bebê de dois meses, segundo os arquivos.

"Alguns dos meus colegas eram contra qualquer tipo de ação, apesar de haver descendentes de escravos da posse de Georgetown atualmente estudando ali", diz ela.

Um desses descendentes é Shepard Thomas, que, junto a sua irmã Elizabeth, entrou em Georgetown em 2017 como parte de um programa preferencial de inscrições para pessoas relacionadas ao grupo conhecido como "GU 272".

"O tópico da justiça reparatória é algo com que me importo muito, principalmente porque estou diretamente lutando por ele", afirma Thomas à BBC.

"Pessoas de todas as raças estão começando a perceber a injustiça enfrentada diariamente pelos afro-americanos, então acho que agora é a hora de transformar essa discussão em ação."

O debate sobre reparações não é nada novo, mas foi retomado pelos protestos do movimento Black Lives Matter nos EUA e em outros países - principalmente depois que dezenas de monumentos e estátuas associadas a antigos donos de escravos foram derrubadas ou destruídas.

Empresas e instituições vieram a público pedir desculpas por envolvimentos passados com o comércio escravista.

Entre eles estão, no Reino Unido, a Igreja Anglicana e o Lloyd's, instituição financeira de 300 anos que fazia o seguro de donos de escravos contra perdas de escravos e de navios do tráfico.

Até a ONU entrou no debate, e a alta comissária de Direitos Humanos, Michelle Bachelet, que é também ex-presidente do Chile, pediu que antigas potências coloniais "façam reparações por séculos de violência e discriminação".

Qual a proposta do movimento de justiça reparatória?

As reparações são parte do manifesto publicado em 2016 pelo Black Lives Matter e parte de uma lista de demandas de ativistas e organizações ao redor do mundo.

O principal argumento é de que os descendentes de pessoas escravizadas deveriam receber compensação financeira pelos danos que se estenderam por gerações cujas vidas foram diretamente afetadas pelo trabalho forçado.

Ativistas têm focado nas vítimas do comércio escravista transatlântico às Américas de cerca de 11 milhões de homens, mulheres e crianças africanos entre os séculos 16 e 19.

O debate é mais forte nos EUA, onde o tema de reparações é discutido no Congresso desde 1865 até 2019 - e onde houve casos isolados de compensação a descendentes.

Mas outros países também tomaram medidas em relação ao legado da escravidão na sociedade. O caso mais notável é o da Comunidade Caribenha (Caricom), bloco de 15 países que criou uma comissão em 2013 para "estabelecer parâmetros legais, morais e éticos para o pagamento de indenizações".

"Quando o Haiti se tornou independente da França, em 1804, depois de uma bem-sucedida rebelião de escravos, foi forçado a pagar o equivalente hoje a US$ 21 bilhões para garantir que as tropas de Napoleão não voltassem, provocando uma guerra", diz à BBC o escritor haitiano Dimitri Leger.

"Meu país só pagou essa dívida com sua antiga colônia em 1947, a um custo enorme. Se eu não esperasse que a França compense por isso, não estaria honrando o sacrifício dos meus ancestrais."

No Brasil, que recebeu mais de 4 milhões de pessoas escravizadas ao longo de quatro séculos, foi criada pela Ordem dos Advogados do Brasil em 2016 a Comissão Nacional da Verdade da Escravidão Negra para "discutir formas de reparação".

Países africanos também fazem pedidos por compensação, e uma comissão estimou que, até 1999, o continente teria de receber a soma astronômica de US$ 777 trilhões de seus ex-colonizadores europeus.

Legado

Os impactos nefastos da prática perduraram.

Nos EUA, a abolição da escravidão, em 1865, foi seguida inicialmente da promessa de "40 acres de terra e uma mula" para cada trabalhador emancipado.

Mas o que eles receberam, na verdade, foi a segregação institucionalizada na forma das famosas leis Jim Crow - legislações locais e estaduais que negaram direitos básicos a negros em grandes partes do país até 1965.

Um dos argumentos pela reparação é de que o impacto do racismo e da segregação se traduziu em disparidades persistentes (desde acesso à casa própria até à educação superior) e na desigualdade econômica, o que precisaria ser reequilibrado.

Lares brancos americanos, por exemplo, têm renda média dez vezes maior do que os lares negros, segundo dados oficiais compilados pelo centro de pesquisas Pew.

"Prosperidade não é algo que as pessoas criam apenas por conta própria, é acumulada durante gerações", escreveu a jornalista e ativista Nikole Hannah-Jones no The New York Times em 26 de junho.

"Se as vidas negras realmente importam nos EUA, este país deve ir além de slogans e simbolismo. É hora de o país pagar sua dívida."

Calculando (e pagando) a conta

Um dos aspectos mais discutidos dessas reparações é de quanto e quem deve pagar.

Há clamores para que empresas, instituições e famílias que tiveram posse de escravos paguem compensações, mas a maioria das propostas atribui a responsabilidade ao governo.

"O Estado ainda é culpável, porque criou um ambiente no qual indivíduos, instituições e corporações participaram da escravidão e do colonialismo", argumenta Verena Shepherd, professora da Universidade das Índias Ocidentais e vice-presidente da Comissão de Reparações da Caricom, no Caribe.

"Então a estratégia principal é negociar com antigas nações colonizadoras (...) para um pacote indenizatório, que foi negado após a emancipação dos escravos."

Mas como precificar o impacto de longo prazo da escravidão? Estimativas altas - como a dos US$ 777 trilhões demandados em 1999 na África - coexistem com demandas mais modestas.

William Darity, professor de Economia da Universidade de Duke (EUA), é um dos mais renomados acadêmicos a estudar reparações. Ele estima que ao redor de 30 milhões de americanos têm ancestrais escravos rastreáveis e defende que cada um receba US$ 250 mil (R$ 1,3 milhão na cotação atual).

Mas até mesmo essa demanda mais modesta totaliza uma conta de US$ 10 trilhões, mais do dobro do orçamento americano para 2020.

Outros cálculos defendem uma reparação individual de US$ 16,2 mil (R$ 84 mil).

E o que esses cálculos levam em conta? Darity baseou suas estimativas na infame promessa de 40 acres e uma mula para cada escravo liberto - mais especificamente, em quanto isso valia em dinheiro, mais juros e inflação ao longo das décadas.

Outros estudos tentam calcular quanto os escravos deveriam ter recebido por seu trabalho.

É claro que essa matemática é sempre complexa - e muitas vezes contestada.

O debate

Defensores das reparações esperam que a comoção em torno da desigualdade racial e da violência policial contra negros, particularmente a morte de George Floyd em 25 de maio, dê força à causa.

Uma pesquisa de opinião feita um ano atrás pelo instituto Gallup aponta que 67% dos americanos eram contra a ideia de que o governo deve pagar indenizações a descendentes de escravos. Embora seja uma porcentagem alta, ela era bem maior (81%) em 2002.

Entre a população negra tampouco há consenso, já que 25% eram contra as indenizações.

"Escravidão foi um crime financeiro, já que trabalho forçado foi usado para o acúmulo de riquezas. Mas não acho que dar dinheiro seja a forma de lidar com isso", argumenta o escritor Dimitri Leger.

"Em vez disso, devemos discutir investimentos em programas de ação afirmativa no longo prazo. O mais importante é mudar a forma de pensar que justificou a escravidão e ainda justifica o racismo em países com passado escravista."

Precedentes históricos

Defensores das reparações citam precedentes históricos: desde 1952, a Alemanha pagou mais de US$ 80 bilhões a vítimas judias do regime nazista. Corporações alemãs como a VW e a Siemens também pagaram compensações a descendentes de vítimas do Holocausto.

E, em 1988, o governo americano indenizou 82 mil japoneses-americanos mantidos prisioneiros durante a Segunda Guerra Mundial.

Algumas instituições nos EUA e no Reino Unido iniciaram programas próprios para compensar algumas vítimas do período da escravidão.

Um caso famoso foi a decisão da Universidade de Georgetown de criar um fundo de US$ 400 mil por ano para os descendentes dos 272 escravos que a instituição vendeu no século 19.

No Reino Unido, a Universidade de Glasgow anunciou em 2019 que gastaria cerca de US$ 25 milhões em formas de compensar pelas doações que recebeu de proprietários de escravos nos séculos 18 e 19.

A seguradora Lloyd's também prometeu pagamentos a membros da comunidade negra britânica, iniciativa repetida pela rede de pubs e cervejaria Greene King, cujos fundadores tiveram a posse de centenas de escravos.

A Greene King é um entre muitos negócios que se beneficiaram financeiramente da decisão do governo britânico de pagar compensações a donos de escravos - em vez de às pessoas escravizadas - depois da Lei de Abolição da Escravidão de 1833.

Política semelhante vigorou na França após a abolição, em 1848.

No Brasil, donos de escravos também pressionaram o governo em busca de compensação. Em resposta, o governo eliminou os registros de transações financeiras envolvendo escravos.

Apesar do papel proeminente brasileiro no comércio mundial de escravos, o passo mais significativo nas discussões sobre reparações continua sendo a lei de 2012 que prevê cotas para estudantes negros em universidades.

Mas não é tão simples...

Um dos maiores problemas relacionados à discussão sobre indenizações diz respeito à passagem do tempo.

A maioria dos precedentes - como o pagamento às vítimas do Holocausto - ocorreram quando os sobreviventes estavam vivos e podiam ser compensados pessoalmente.

O especialista legal Luke Moffett, da Universidade Queens em Belfast, acredita que há o risco de que as indenizações oferecidas por empresas e organizações acabem virando "um exercício autocentrado de relações públicas, em vez de um esforço genuíno de reparação".

Críticos às indenizações também opinam ser injusto usar dinheiro de impostos para corrigir erros do passado.

Outros dizem que a batalha legal por compensações pode virar uma distração em relação a assuntos mais urgentes, como a brutalidade policial e o racismo institucional.

Os países se desculparam pela escravidão?

Até hoje, a maioria dos países que se beneficiaram da escravidão não emitiram pedidos formais de desculpas, e essa é uma das principais queixas da Caricom.

"O processo de cura das vítimas e descendentes exige a oferta de um pedido formal e sincero de desculpas pelos governos da Europa", diz Verene Shepherd.

"Em vez disso, alguns emitiram comunicados de arrependimento, (mostrando) que vítimas e descendentes não valem uma desculpa."

Os EUA são, até certo modo, uma exceção, já que o país emitiu desculpas por intermédio do Congresso, em 2009. No entanto, a iniciativa também deixou claro que a declaração não significaria amparo a pedidos de indenização ao Estado.

Agora, há sinais de que a maré política pode estar mudando.

Todos os aspirantes à nomeação do Partido Democrata às eleições gerais, incluindo o presidente eleito Joe Biden, mencionam a questão de reparações à escravidão em seus planos de governo. Biden chegou a dizer em campanha que apoiaria um "estudo da questão".

Em julho, membros do Parlamento Europeu decidiram majoritariamente em favor de uma resolução para que a UE reconheça o tráfico como um crime contra a humanidade e fizesse de 2 de dezembro o "Dia da Comemoração da Abolição do Tráfico de Escravos".

Para além das controvérsias, o debate parece estar ganhando um novo impulso - e é improvável que se arrefeça tão cedo.