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A família que não tem impressões digitais

"Não está em minhas mãos, é algo que herdei", diz Amal Sarker (dir.) - BBC
"Não está em minhas mãos, é algo que herdei", diz Amal Sarker (dir.) Imagem: BBC

Mir Sabbir

Da BBC

26/12/2020 13h22

Apu Sarker me mostra a palma da mão aberta durante uma videoconferência de sua casa em Bangladesh. No começo nada parecia estranho para mim, mas quando olhei mais de perto, percebi como as superfícies de seus dedos eram lisas.

Apu, de 22 anos, mora com sua família em um vilarejo no distrito de Rajshahi, no norte do país. Até recentemente, ele trabalhava como assistente médico. Seu pai e avô eram agricultores.

Os homens da família Apu parecem compartilhar uma rara mutação genética que afeta apenas um punhado de pessoas no mundo - eles não têm impressões digitais.

Na época do avô de Apu, não ter impressões digitais não era grande coisa. "Nunca pensei nisso como um problema", disse Apu.

Mas, depois de décadas, aqueles pequenos sulcos que giram nas pontas dos nossos dedos - chamados dermatóglifos - se tornaram os dados biométricos mais coletados do mundo.

Eles são usados para tudo, desde viagens em aeroportos até desbloquear nossos smartphones.

Em 2008, quando Apu era criança, Bangladesh introduziu um documento de identidade nacional para todos os adultos e o banco de dados exigia uma impressão digital.

Funcionários confusos não sabiam se deviam emitir um cartão para o pai de Apu, Amal Sarker. Finalmente, ele recebeu um cartão com o selo "SEM IMPRESSÃO DIGITAL".

Em 2010, as impressões digitais tornaram-se obrigatórias para passaportes e permissões para dirigir.

Após várias tentativas, Amal conseguiu obter um passaporte mostrando um atestado de uma junta médica. Ele nunca o usou, em parte porque teme que haja problemas no aeroporto. E embora andar de motocicleta seja essencial para seu trabalho como fazendeiro, ele nunca obteve permissão para dirigir.

"Paguei a taxa, passei no exame, mas não me deram a licença porque não puderam colher minha impressão digital", explica.

Amal carrega consigo o recibo do pagamento da licença, mas isso nem sempre o ajuda quando ele é parado. Já foi multado duas vezes. Em ambas as ocasiões, explicou aos policiais sobre sua doença, conta, e mostrou-lhes as pontas dos dedos para que vissem. A multa não foi perdoada.

"É sempre uma experiência constrangedora para mim", diz Amal.

Em 2016, o governo tornou obrigatória a comparação da impressão digital com o banco de dados nacional para a compra de um cartão SIM para celular.

"Eles pareciam confusos quando fui comprar um SIM, o software do sistema deles travava toda vez que colocava meu dedo no sensor", lembra Apu, com um sorriso irônico.

A compra foi rejeitada. Todos os homens de sua família precisam usar cartões SIM com o nome de sua mãe.

A rara doença que afeta a família Sarker é chamada de adermatoglifia.

Tornou-se amplamente conhecida em 2007, quando Peter Itin, um dermatologista suíço, foi contatado por uma mulher de seu país que estava com problemas para entrar nos Estados Unidos.

Seu rosto combinava com a foto em seu passaporte, mas os agentes de imigração não conseguiram registrar suas impressões digitais.

Isso porque ela não tinha impressões digitais.

Ao examiná-la, o professor Itin descobriu que a mulher e oito membros de sua família sofriam de uma condição rara, com pontas dos dedos achatadas e um número reduzido de glândulas sudoríparas nas mãos.

Trabalhando com outro dermatologista, Eli Sprecher, e o estudante de graduação Jann Nousbeck, o professor Itin examinou o DNA de 16 membros da família ? sete com impressões digitais e nove sem.

"Os casos isolados são muito raros e apenas algumas famílias foram documentadas", diz Itin à BBC.

Em 2011, a equipe se concentrou em um gene, SMARCAD1, que sofreu mutação em todos os nove membros sem impressões digitais da família e puderam identificá-lo como a causa da rara doença. Praticamente nada se sabia sobre esse gene. A mutação não pareceu causar outros efeitos negativos além de alterações nas mãos.

A mutação pesquisada por todos aqueles anos afetou um gene "que ninguém conhecia", diz o professor Sprecher. É por isso que demorou anos para encontrá-lo.

Uma vez descoberta, a doença foi chamada de adermatoglifia, mas o professor Itin a apelidou de "doença do atraso na imigração" ? em homenagem a seu primeiro paciente que teve problemas para entrar nos Estados Unidos ? e o nome pegou.

A doença que atrasa a imigração pode afetar várias gerações de uma família. O tio de Apu Saker, Gopesh, que mora em Dinajpur, a cerca de 350 km de Dhaka, teve que esperar dois anos antes de obter o passaporte.

"Tive de viajar a Dhaka (capital de Bangladesh) quatro ou cinco vezes nos últimos dois anos para convencer as autoridades de que sofria da mutação", diz Gopesh.

Quando seu trabalho começou a usar um sistema de comparecimento por impressão digital, Gopesh teve que convencer seus chefes a deixá-lo usar o sistema antigo - assinando uma folha de presença todos os dias.

Um dermatologista em Bangladesh diagnosticou a doença da família como ceratodermia palmoplantar congênita, que o professor Itin acredita ter evoluído para adermatoglifia secundária, uma versão da doença que também pode causar ressecamento da pele e redução do suor nas palmas das mãos e solas dos pés.

Os Sarkers relataram todos esses sintomas.

Mais testes precisariam ser feitos para confirmar se a família possui alguma forma de adermatoglifia.

O professor Sprecher diz que sua equipe ficaria "muito feliz" em ajudar a família com os testes genéticos.

Os resultados desses testes podem dar aos Sarkers alguma certeza, mas eles não aliviariam o fardo de enfrentar um universo sem impressões digitais diariamente.

Os membros da família que possuem a mutação relatam contratempos.

Amal Sarker passou a maior parte de sua vida sem muitos deles, mas agora diz se sentir triste por seus filhos.

"Não está nas minhas mãos, é algo que herdei", diz.

"Mas a maneira como meus filhos e eu estamos nos metendo em todos os tipos de problemas é muito doloroso para mim."

Amal e Apu acabam de receber um novo tipo de documento de identidade nacional emitida pelo governo de Bangladesh, após apresentarem um atestado médico. O cartão usa outros dados biométricos - uma varredura da retina e reconhecimento facial.

Mas eles ainda não conseguem comprar um cartão SIM ou obter uma permissão para dirigir. A emissão de um passaporte é um processo longo e árduo.

"Estou cansado de explicar minha situação repetidamente. Pedi conselhos a muitas pessoas, mas ninguém pode me dar uma resposta definitiva", lamenta Apu. "Alguém sugeriu que eu fosse à Justiça. Se todas as outras opções falharem, é o que terei de fazer."

Apu espera conseguir um passaporte, diz. Ele adoraria viajar para fora de Bangladesh.