Topo

Esse conteúdo é antigo

Pena de morte: por que o estado que mais executou prisioneiros na história dos EUA decidiu acabar com punição capital

Virgínia adotava o método de injeção letal em condenados a morte em câmaras como essa do Texas - Getty Images
Virgínia adotava o método de injeção letal em condenados a morte em câmaras como essa do Texas Imagem: Getty Images

Alessandra Corrêa

De Washington (EUA) para a BBC News Brasil

06/02/2021 09h20

O primeiro condenado à morte no que hoje são os Estados Unidos foi executado na Virgínia. Em 1608, os colonos de Jamestown, primeiro assentamento inglês de caráter permanente na América do Norte, executaram por fuzilamento o capitão George Kendall, acusado de espionar para a Espanha.

Nos mais de quatro séculos desde então, calcula-se que 1.390 pessoas tenham sido executadas na Virgínia, mais do que em qualquer outro Estado americano, segundo dados do Death Penalty Information Center (Centro de Informações sobre a Pena de Morte, ou DPIC, na sigla em inglês).

Na chamada "era moderna" da pena de morte nos EUA, a partir de 1976, quando a prática foi restabelecida depois de ter sido proibida em 1972, o Estado executou 113 pessoas, ficando atrás apenas do Texas.

Mas agora, depois de 413 anos, a Virgínia deverá se tornar o 23º estado do país — e o primeiro do Sul — a abolir a prática, em uma decisão considerada histórica e com potencial de influenciar outros governos da região a seguirem o mesmo caminho.

Ontem, a Câmara estadual aprovou por 57 votos contra 41 um projeto de lei para acabar com a pena de morte. Proposta semelhante já havia sido aprovada dois dias antes pelo Senado estadual. O governador Ralph Northam, do Partido Democrata, já anunciou que pretende sancionar a lei, o que deve ocorrer até abril.

"(A decisão) da Virgínia, o Estado com o maior número de execuções na história americana, de abolir a pena de morte envia uma mensagem clara sobre as tendências de opinião pública e apoio governamental à pena capital neste momento", diz à BBC News Brasil a diretora sênior de pesquisas e projetos especiais do DPIC, Ngozi Ndulue.

"É muito significativo que o estado mais prolífico em execuções tenha decidido que a pena de morte é desnecessária e que punições alternativas são preferíveis", afirma.

Controle democrata

A decisão marca uma mudança de postura na Virgínia, onde o Partido Democrata, que controla o governo do estado, assumiu também o comando da Câmara e do Senado estadual no ano passado.

Até poucos anos atrás, o legislativo do estado, então sob comando do Partido Republicano, vinha se esforçando para garantir a continuação das execuções, ameaçadas pela escassez das drogas necessárias para a injeção letal.

Entre as medidas propostas na época estavam buscar fornecedores farmacêuticos alternativos, cuja identidade seria mantida em segredo, e até adotar a cadeira elétrica como método principal de execução.

Desde que conquistaram a maioria, os democratas vêm aprovando no estado uma série de medidas consideradas progressistas em temas como aborto e posse de armas.

Na votação no Senado estadual nesta semana, 17 dos 18 republicanos votaram contra a abolição da pena de morte, e um se absteve. Mas a proposta passou com o voto de todos os 21 democratas. Na Câmara, o projeto teve apoio de dois republicanos.

Mas a decisão também reflete uma mudança no sentimento público, tanto no estado quanto no país, onde pesquisas de opinião indicam que o apoio à pena de morte vem caindo. Ngozi salienta que a questão gera interesse bipartidário e diz que há muitos republicanos ao redor do país que apoiam a abolição da prática.

Em 2019, uma pesquisa Gallup revelou que 60% dos americanos preferem a prisão perpétua em vez da pena capital como forma de punição para assassinatos. Foi a primeira vez desde que essa pergunta começou a ser feita nas pesquisas, em 1985, que a maioria dos entrevistados disse preferir punição alternativa à morte.

Custos e injustiça

São vários os motivos para a queda no apoio à pena de morte. Alguns apontam para os custos altíssimos para manter prisioneiros no corredor da morte, muitas vezes durante várias décadas entre a condenação e a execução, em processos judiciais caros e demorados.

Há também a preocupação de que inocentes sejam injustamente executados. Desde 1973, mais de 170 condenados à morte acabaram inocentados antes de a sentença ser levada adiante, revelando problemas no processo. Suspeita-se que muitos outros possam ter sido executados antes que sua inocência tenha sido provada.

Além disso, há evidências de que a pena de morte nos Estados Unidos é aplicada desproporcionalmente contra réus de minorias raciais.

Segundo o DPIC, desde 1976 foram executados 296 negros acusados de matar vítimas brancas. No mesmo período, apenas 21 brancos foram executados pela morte de vítimas negras.

Durante o debate no Senado, o autor do projeto de lei, senador estadual democrata Scott Surovell, citou estimativas segundo as quais uma em cada dez pessoas sentenciadas à morte no país foram condenadas injustamente e também chamou a atenção para as disparidades raciais na pena de morte.

Entre os argumentos dos republicanos que se opuseram à proposta estava o de que alguns crimes são tão "selvagens" que merecem a pena de morte, e que condenações injustas ou disparidades raciais são problemas que ficaram no passado.

Histórico

Desde sua primeira execução, em 1608, a Virgínia se destacou pelo número de sentenciados à morte. Na época em que ainda era colônia, pequenas infrações, como matar galinhas, podiam resultar em pena capital.

Durante 300 anos, as execuções no Estado eram por enforcamento. Em 1908, passaram a ser por eletrocussão. Atualmente, o método mais usado é a injeção letal, mas os condenados também têm a opção de escolher a cadeira elétrica.

Muitos especialistas citam a conexão histórica entre a pena de morte na Virgínia e o passado de escravidão e segregação da população negra no Estado. Durante a Guerra Civil (1861-1865), a Virgínia era sede da capital dos Estados Confederados, Richmond.

Alguns anos depois da guerra, assim como outros estados do Sul, a Virgínia adotou rígidas leis de segregação racial durante várias décadas. Na época também eram comuns linchamentos de pessoas negras, principalmente nos estados que haviam perdido a guerra.

Segundo a Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor (NAACP, na sigla em inglês), uma das principais organizações de direitos civis dos Estados Unidos, entre entre 1882 e 1968 foram registrados 4.743 linchamentos no país, dos quais 3.446 tiveram como vítimas pessoas negras.

Disparidades raciais

As disparidades raciais são visíveis ao longo da história da pena capital na Virgínia. No passado, era comum que a decisão de impor a pena de morte fosse influenciada pela raça do réu e pela raça da vítima.

Segundo o DPIC, 79 brancos e 296 negros foram executados na Virgínia entre 1900 e 1999. No período de 1900 a 1969, nenhum réu branco foi executado por crimes que não resultassem em morte da vítima. No mesmo período, 73 homens negros foram executados por crimes como estupro ou roubo.

Um relatório elaborado em 2000 pela Comissão Legislativa Conjunta de Revisão e Auditoria da Virgínia revelou que, quando a vítima era branca, o acusado tinha três vezes mais chance de ser sentenciado à morte do que quando a vítima era negra.

"A injustiça racial teve um papel central na implementação da pena de morte na Virgínia durante centenas de anos", afirma Ndulue.

"Por isso a abolição agora é tão importante, tanto em um nível prático quanto em um nível simbólico", ressalta, lembrando que a decisão pode enviar uma mensagem aos outros ex-estados confederados.

Inocentes condenados

Um dos casos mais famosos de injustiça na aplicação da pena de morte na Virgínia é o de Earl Washington, um homem negro com deficiência intelectual grave que foi acusado do estupro e morte de uma mulher em 1982 e sentenciado à morte em 1984.

Advogados conseguiram suspender sua execução poucos dias antes da data marcada, em 1985. Investigações posteriores revelaram que a deficiência de Washington fez com que ele confessasse o crime, do qual era inocente, ao ser coagido pela polícia.

Essa conclusão foi confirmada por testes de DNA, que inocentaram Washington. Somente em 2000 ele foi libertado da prisão.

Apesar de Washington ser o único prisioneiro no corredor da morte da Virgínia a ter sido libertado após provas de sua inocência, há vários outros casos notórios de injustiça e disparidades raciais ao longo da história da prática no Estado.

"Sabemos que (Washington) é apenas a ponta do iceberg", salienta Ndulue.

Um desses casos ficou conhecido como "Os 7 de Martinsville", em referência a sete homens negros executados no Estado em 1951 após terem sido acusados de participar do estupro de uma mulher branca.

Na época em que foram presos, eles foram coagidos a confessar o crime, sem a presença de advogados, sob a ameaça de que seriam entregues a uma multidão para serem linchados. Apesar de não haver qualquer evidência que os ligasse ao crime, foram condenados rapidamente, por um júri composto somente por homens brancos.

Queda gradual

Nos últimos anos, a aplicação da pena de morte vem caindo. A sentença não é imposta na Virgínia desde 2011, e as últimas execuções no Estado ocorreram em 2017. No mês passado, o prisioneiro Corey Johnson foi executado na Virgínia, mas sua pena foi levada adiante pelo governo federal, não pelo Estado.

Nos Estados Unidos, execuções federais são reservadas a determinados tipos de crime, que são julgados em tribunais federais. Elas são independentes das execuções estaduais, aplicadas em crimes julgados por tribunais estaduais nos estados que permitem a prática.

No ano passado, o então presidente Donald Trump decidiu acelerar as execuções federais, que não ocorriam desde 2003. Na reta final de seu governo, 13 presos foram executados pelo governo federal. O novo presidente americano, Joe Biden, foi eleito prometendo acabar com a pena de morte federal.

Apesar dos esforços do governo Trump, o ano passado registrou não apenas o menor número de novas sentenças de morte na era moderna da pena capital, mas também o menor número de execuções em três décadas. Somente sete pessoas foram executadas pelos estados em 2020.

A queda foi impulsionada pela pandemia de covid-19, mas especialistas ressaltam que, mesmo antes do coronavírus, o número de sentenças de morte e execuções já vinha caindo gradualmente. A prática já foi abolida em 22 outros estados além da Virgínia. Em outros 12 estados, nenhuma execução foi levada adiante em pelo menos 10 anos.

O corredor da morte na Virgínia tem atualmente apenas dois condenados aguardando execução. Anthony Juniper foi sentenciado em 2005 pelo assassinato de quatro pessoas, e Thomas A. Porter recebeu sua sentença em 2007, pela morte de um policial. Com a abolição da pena de morte no Estado, ambos serão poupados, ficando em prisão perpétua.