Topo

Esse conteúdo é antigo

Vacina Sputnik: entenda polêmica do vírus replicante que opõe Anvisa e Rússia

Anvisa vetou importação da vacina russa alegando problemas de segurança, eficácia e qualidade - GETTY IMAGES
Anvisa vetou importação da vacina russa alegando problemas de segurança, eficácia e qualidade Imagem: GETTY IMAGES

Rafael Barifouse - Da BBC News Brasil em São Paulo

29/04/2021 19h36

A agência brasileira negou o pedido de importação do imunizante alegando problemas de segurança, entre eles a presença de vírus capazes de se multiplicar na sua composição. Instituto russo nega e diz que vai processar a Anvisa por difamação.

O embate entre Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e o Instituto Gamaleya, responsável pela Sputnik V, travado desde que a agência brasileira vetou a importação da vacina russa, subiu de tom nesta quinta-feira (29/04).

O Gamaleya, que é ligado ao governo russo, disse que pretende processar a Anvisa por difamação. Por sua vez, a Anvisa respondeu apresentando documentos, gravações de reuniões e um dossiê para defender sua decisão de não aceitar o pedido de importação emergencial da Sputnik V.

No centro da polêmica, está a presença ou não de vírus capazes de se replicar na vacina russa. Os responsáveis pela Sputnik V negam que ela tenha isso, mas foi este foi um dos principais motivos de a Anvisa negar a importação, porque isso poderia trazer riscos à saúde.

"Vacina tem que ser segura. Vacina tem que proteger, não pode causar nenhum dano", disse o gerente-geral de medicamentos e produtos biológicos da agência, Gustavo Mendes, em uma coletiva de imprensa convocada para refutar o que o Gamaleya havia dito mais cedo.

Logo pela manhã, por meio da conta oficial da Sputnik V no Twitter, o Gamaleya afirmou que a Anvisa havia feito "declarações incorretas e enganosas sem ter testado a vacina" e havia ignorado um ofício em que era informado que não havia vírus replicantes na vacina. "Nossa equipe jurídica entrará em contato", disse na mensagem.

O instituto já havia declarado que a decisão da Anvisa havia sido política e não técnica ? o que a agência brasileira nega reiteradamente.

O Gamaleya diz que o veto à Sputnik seria fruto da pressão dos Estados Unidos, ainda no governo de Donald Trump, para que o Brasil não comprasse a vacina russa. Essa informação consta em um documento do próprio governo americano.

Uma prova disso, disse o instituto, seria a admissão da agência brasileira, em uma entrevista de Gustavo Mendes, de que a Anvisa teria rejeitado a importação da Sputnik V com base na presença de adenovírus replicantes sem ter testado o imunizante.

"Não recebemos amostras da vacina para teste. Então, isso precisa ficar claro, não fizemos teste para adenovírus replicante", afirmou o gerente-geral da Anvisa à rádio CBN.

O próprio técnico da agência veio à público novamente nesta quinta-feira, desta vez para esclarecer que, mesmo não tendo realizado os testes, a informação da presença de adenovírus replicantes constava da própria documentação enviada pelo Gamaleya.

Mas o que são esses vírus e por que isso é preocupante?

Qual é o problema?

Primeiro, é preciso explicar como a Sputnik V funciona. Ela usa uma tecnologia conhecida como vetor viral não replicante (guarde esse termo). A técnica já é pesquisada há décadas pela indústria farmacêutica e é a mesma da vacina de Oxford/AstraZeneca, aplicada atualmente no Brasil e em outras partes do mundo.

Esse tipo de vacina usa outros vírus inofensivos para simular no organismo a presença de uma ameaça mais perigosa e que se deseja combater para gerar uma resposta imune.

No caso da vacina russa, ela é feita com adenovírus que causam resfriados em humanos. Eles foram modificados para não serem capazes de se replicar depois que entram nas células humanas - daí o "não replicante" no nome da tecnologia usada nela.

Os cientistas inseriram nesses adenovírus as instruções genéticas para a produção de uma proteína característica do novo coronavírus, a espícula. Uma vez injetados no organismo, eles entram nas células e fazem com que elas passem a produzir e exibir essa proteína em sua superfície.

Isso alerta o sistema imunológico, que aciona células de defesa e, desta forma, aprende a combater o Sars-CoV-2, o que protegerá uma pessoa se ela for infectada pelo vírus.

O problema, segundo a Anvisa, é que os adenovírus usados na vacina podem se replicar e isso pode fazer mal à saúde de quem for imunizado com ela.

Ao justificar o veto à importação, Gustavo Mendes explicou que, durante o processo de cultivo desses vírus em laboratório, eles recuperaram essa capacidade de multiplicação.

"Isso não foi justificado nem é aceito quando comparamos com as recomendações internacionais nem com outras vacinas de adenovírus", disse o gerente-geral na última segunda-feira.

Nesta quinta-feira, ele reforçou: "O esperado é a ausência de vírus replicantes".

Uma vez aplicados com a vacina, esses vírus podem se multiplicar e se acumular em partes do corpo. A Anvisa argumenta que deveria ter sido conduzido um estudo sobre o potencial impacto disso, o que não foi feito.

Mas o Gamaleya afirma que só há adenovírus não replicantes na vacina e que eles são inofensivos.

Documentos, gravações e dossiê

Em reação a isso, a Anvisa apresentou cópias de documentos que teriam sido apresentados pelo próprio Gamaleya para análise da agência e que é neles próprios que consta que foi detectada a presença de adenovírus replicantes na vacina.

A agência disse que o Gamaleya apresentou no relatório o que considera um limite aceitável para a presença destes vírus replicantes.

De acordo com Gustavo Mendes, os padrões internacionais foram investigados para verificar se havia algum paralelo para a aceitação de vírus replicantes e o maior limite encontrado foi em normas do FDA, o equivalente à Anvisa nos Estados Unidos.

"A especificação definida (pelo Gamaleya) é 300 vezes maior do que o limite regulatório do guia do FDA e trata especificamente de terapias gênicas e não para vacinas", disse Gustavo Mendes.

De qualquer forma, isso não importa, segundo a Anvisa, porque não deveria ter vírus replicantes na vacina. "O limite é zero", disse o diretor-geral da agência, Antônio Barra, a jornalistas.

A Anvisa explicou nesta quinta-feira que uma reunião foi convocada com o Gamaleya para discutir esse ponto e exibiu uma gravação de trechos desta reunião ? a lei determina que todas as reuniões da Anvisa sejam gravadas, esclareceu Mendes.

No encontro, técnicos da agência questionam por que, ao detectar a presença dos adenovírus replicantes, os cientistas russos não deram passo atrás no desenvolvimento na vacina para corrigir esse problema e por que não avaliaram o risco da presença disso no imunizante.

"Qual é a justificativa que vocês têm para prosseguir com o desenvolvimento dessa vacina, que será usada em pessoas saudáveis?", questiona uma técnica da Anvisa presente na reunião.

Após um trecho da resposta dos cientistas russos, foi mostrado parte do áudio da fala de uma tradutora que explica que os representantes do Gamaleya reconhecem que os técnicos da Anvisa "poderiam ter razão".

Os cientistas afirmaram, no entanto, que dado um passo atrás no desenvolvimento da vacina e usar outra substância em sua fabricação "teria tomado muito tempo".

A Anvisa diz ter pedido esclarecimentos para estes e outros pontos depois da reunião, mas que não recebeu as respostas até o momento. E colocou à disposição um dossiê de 600 páginas com os documentos e dados sobre esse assunto.

Questionado por que exibiu a gravação da reunião, algo inédito na conduta da agência até agora, Antônio Barra disse que isso foi motivado pelas acusações feitas pelo Gamaleya.

Barra afirmou que "a Anvisa é uma agência de Estado" e que ela foi acusada pelo Gamaleya "de veicular mentira, de gerar fake news, de agir sobre a pressão de potências internacionais".

"O país foi achincalhado", justificou o diretor-presidente da Anvisa.