Covid-19: relaxar medidas aumenta risco de terceira onda mais letal, apontam pesquisadores
Mesmo no mês mais mortal da pandemia no país, governos estaduais e municipais já começaram a aliviar as políticas restritivas. Entenda o risco que isso representa.
Entre o final de março e o início de abril de 2021, o Brasil registrou as piores médias móveis de casos e mortes por covid-19 desde que a pandemia começou.
Na última quinta-feira (29/04), o país inclusive ultrapassou a marca das 400 mil mortes por covid-19.
Mas, passado o pico, as curvas epidêmicas entraram numa tendência descendente ainda tímida, mas que já serviu de pretexto para que prefeitos e governadores aliviassem algumas das medidas mais restritivas adotadas anteriormente, que mantiveram estabelecimentos comerciais e escolas fechados por algumas semanas.
O Estado de São Paulo, por exemplo, decidiu fazer uma transição para a fase vermelha, que permite a abertura de restaurantes, salões de beleza, academias e atividades religiosas, de acordo com algumas limitações de horário e de ritmo de funcionamento.
Em outros locais, a volta às aulas já está programada para acontecer em breve.
A justificativa dos gestores públicos está na queda, ainda bastante inicial, das taxas de novos infectados, de ocupação de leitos de enfermaria e UTI e de mortes pela doença.
Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, porém, classificam esses movimentos como precipitados e preocupantes: o aumento repentino na circulação de pessoas pode desperdiçar os poucos avanços conquistados e gerar uma terceira onda ainda mais problemática.
"Estamos diante de uma situação bem séria, com os números da pandemia estabilizados num patamar muito alto. Se nos descuidarmos justamente agora, corremos um grande risco", alerta o cientista de dados Isaac Schrarstzhaupt, da Rede Análise Covid-19.
"Parece que começamos a viver um cenário parecido ao que ocorreu após a primeira onda, com um platô elevado de casos e mortes. As decisões das próximas semanas serão cruciais para entendermos o que vai acontecer daqui em diante", concorda o físico Silvio Ferreira, professor da Universidade Federal de Viçosa.
Para entendermos os próximos passos, é preciso antes saber como chegamos até aqui.
Avalanche nacional
A existência de uma, duas ou três ondas da pandemia no país é tema de intenso debate entre os especialistas da área.
Diante da controvérsia, nesta reportagem vamos adotar os termos "primeira", "segunda" e "terceira onda" para fins didáticos e para facilitar a compreensão geral do momento que estamos.
Para o epidemiologista Jesem Orellana, da FioCruz Amazônia, o Brasil está numa constante escalada da covid-19, uma vez que os casos e as mortes nunca ficaram em patamares realmente baixos.
"O Brasil nunca saiu da primeira onda. Vivemos um aumento entre abril e junho de 2020, seguido pelo platô de mortalidade mais longo do planeta, com uma média de mil óbitos diários pelos três meses seguintes", explica.
Esse comportamento foge totalmente do que aconteceu em outros lugares do mundo, onde as curvas têm picos e vales muito bem definidos.
É fácil entender essa diferença quando analisamos os registros de mortes por milhão de habitantes do Brasil e do Reino Unido, como você confere na imagem a seguir.
Enquanto por lá é possível identificar duas ondas muito claras, com picos em abril de 2020 e depois em janeiro de 2021, por aqui, as médias permanecem relativamente iguais ao longo dos meses, com uma subida impressionante a partir de fevereiro de 2021.
O que aconteceu no Brasil durante boa parte do segundo semestre de 2020 foi uma dessincronização da pandemia em várias partes do país.
Em outras palavras, enquanto a situação era grave em São Paulo, o estado do Pará vivia um momento mais confortável na notificação de novos casos e mortes por covid-19.
Passadas algumas semanas, esse status se invertia.
"O descompasso também pode ser observado na comparação entre regiões metropolitanas e o interior do país: os momentos da pandemia eram distintos e variavam de tempos em tempos", observa Ferreira, que coordena um projeto de modelagem epidêmica da covid-19 mantido pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
Tudo junto e misturado
Mas a virada de 2020 para 2021 engatou uma série de acontecimentos que fez a pandemia se sincronizar em todo o país.
"As eleições municipais, realizadas em novembro, influenciaram na retomada da primeira onda. A partir dali, houve um crescimento importante que não parou de evoluir", avalia Orellana.
Após o pleito que definiu os novos chefes das prefeituras, vieram as aglomerações motivadas por Natal, Ano Novo, realização do Enem, Carnaval e retomada das aulas presenciais - apesar de todos os alertas emitidos por cientistas, instituições de pesquisa e imprensa.
Essa sequência de eventos aumentou a circulação de pessoas pelas ruas que, por sua vez, permitiu uma maior transmissão do coronavírus.
Daí para a frente, o efeito dominó já estava em rápida progressão: maior número de infectados, aumento dos casos graves, demanda altíssima por cuidados médicos e internação, falta de leitos, equipamentos e remédios, colapso do sistema de saúde, subida vertiginosa nos óbitos...
Esse ciclo se iniciou em janeiro de 2021, na cidade de Manaus, e logo se alastrou para todas as outras regiões do país a partir de fevereiro.
Um cenário desses já é péssimo quando ele ocorre em cidades e estados de forma isolada e assíncrona.
Agora, quando tudo explode de uma vez só em várias regiões do país, o nível de descontrole atinge proporções catastróficas, como a que vivemos entre março e abril de 2021.
"Nós já tínhamos uma fogueira acesa. Mas fomos lá e jogamos um tonel de gasolina em cima dela", compara Schrarstzhaupt.
Para o matemático Eliandro Cirilo, do Laboratório de Análise e Simulação Matemática da Universidade Estadual de Londrina, é preciso acrescentar mais dois ingredientes nesta equação.
"As pessoas estão exauridas e estressadas com tantos meses de restrição. Em termos práticos, isso se traduz num aumento natural na interação entre elas e, por consequência, numa subida da circulação do vírus", diz.
Em segundo lugar, o especialista lembra que, desde o final de 2020, estamos lidando com variantes mais infecciosas do coronavírus, que estão relacionadas a uma maior rapidez de espalhamento da doença pela comunidade.
"Quando somamos esses dois fatores extras, nós temos o potencial de vivenciar uma terceira onda igual ou maior ao que vivemos até o presente", antevê.
O que vem pela frente?
Agora que já entendemos como chegamos até aqui, chegou o momento de olhar para o futuro e tentar antecipar um pouco como a pandemia deve se comportar nas próximas semanas.
E os especialistas consultados pela BBC News Brasil não estão nada esperançosos, a despeito da diminuição recente nos casos e nas mortes por covid-19.
"Essa queda é esperada e não representa nenhuma vitória sanitária, até porque não estamos tomando medidas de controle efetivas na esfera nacional. Eu estou muito preocupado, inclusive, com a interpretação equivocada do atual momento por nossas autoridades", confessa Orellana.
Os analistas compreendem que as curvas tendem a se estabilizar num patamar muito alto, numa repetição do que vivemos entre setembro e outubro de 2020.
Para piorar, a maior circulação de pessoas deve ser turbinada pela proximidade do Dia das Mães, que será comemorado no dia 9 de maio.
Apesar de todas as contra-indicações das autoridades sanitárias e de saúde pública, não é exagero imaginar que muitos sairão às ruas para fazer compras e se reunirão com seus familiares para comemorar a data.
"E não podemos nos esquecer também da chegada de temperaturas mais frias, em que temos a tendência de ficarmos mais perto uns dos outros em locais fechados, o que ajuda a amplificar a transmissão do coronavírus", acrescenta Schrarstzhaupt.
Portanto, com tantas armadilhas pela frente, ainda é cedo para descartar a possibilidade de um repique na segunda onda, ou um aumento substancial na gravidade da pandemia a partir do final de maio e início de junho, que possa configurar uma eventual terceira onda.
E a vacinação?
Diferentemente do que aconteceu no ano passado, 2021 traz uma novidade que pode influenciar no andamento da pandemia: a campanha de imunização.
As vacinas disponíveis no país, como a CoronaVac (Sinovac/Instituto Butantan) e a AZD1222 (AstraZeneca/Universidade de Oxford/FioCruz) se mostraram capazes de evitar casos graves e hospitalizações por covid-19.
E isso, em longo prazo, pode representar um alívio dos grandes para o sistema de saúde: menos pessoas vulneráveis ao agravamento da infecção é sinônimo de uma menor demanda por atendimento hospitalar.
Essa queda na procura por pronto-socorro significa menos pressão para os profissionais de saúde e uma condição mais adequada para realizar o tratamento e o acompanhamento dos novos pacientes que necessitarem de atenção especializada.
Mas é preciso muita cautela para que uma esperança não se transforme em ameaça: o progresso da imunização deve ser visto com muita cautela e sem falsas expectativas.
No momento, pouco mais de 7% dos brasileiros completaram o esquema vacinal, o que representa uma pequena parcela diante do total de habitantes.
Além disso, esse avanço não pode ser encarado como um salvo-conduto para aliviar as medidas.
"Até o Chile, que tinha um dos melhores ritmos de vacinação do mundo e relaxou um pouco, teve um surto preocupante nos últimos meses, pois a porcentagem de imunizados ainda era muito baixa em relação ao número total de sua população", lembra Schrarstzhaupt.
Ações necessárias
Até o momento, abril de 2021 foi o pior mês em números de casos e mortes desde que a covid-19 desembarcou no Brasil.
Diante disso, epidemiologistas e cientistas de dados consideram que é cedo demais para reabrir as atividades.
"Parece que o Brasil está sempre no limite. Mesmo que a taxa de internações por covid-19 tenha caído um pouco, isso ainda não nos dá muita margem de ação", avalia Ferreira.
"Como o crescimento de casos obedece uma lógica exponencial, é fácil perder o controle em questão de poucas semanas", completa.
Schrarstzhaupt entende que o Brasil perdeu várias oportunidades para conter a crise de saúde pública nos últimos meses.
"Deveríamos ter bloqueado nossas fronteiras, como Taiwan e Vietnã fizeram. Se essa ação fracassasse, poderíamos ter praticado um lockdown rápido, para conter o surto no início e não comprometer a economia, a exemplo de Austrália e Nova Zelândia. Se isso não resolvesse e os casos estourassem, daria para pensar num fechamento mais longo, como aconteceu no Reino Unido", exemplifica.
"Essas ações seriam muito mais efetivas e baratas do que investir num monte de leitos de UTI, que nos custam uma fortuna", completa.
Dentro desse pacote de ações, programas amplos de testagem, isolamento de casos positivos e rastreamento de contatos seriam essenciais, bem como uma vigilância genômica para flagrar o surgimento de novas variantes em sua origem, antes que elas se espalhassem.
"Junto com isso, precisaríamos de um Estado empenhado em proporcionar alívio financeiro às famílias em situação de vulnerabilidade e aos pequenos comerciantes e empresários de pequeno ou médio porte", pontua Orellana.
"Mas, com a atual política conduzida no Brasil, pensar que teremos essas ações é uma utopia e não há maneira de vislumbrar dias melhores", lamenta o epidemiologista.
Do ponto de vista individual, é primordial que todos tomem as medidas necessárias para proteger a si e a todos ao redor, que passam invariavelmente por sair de casa o mínimo possível.
Caso seja necessário ir à rua, todas as recomendações de prevenção continuam a valer: use máscaras (de preferência, PFF2 ou N95), mantenha distanciamento físico de pelo menos 1,5 metro de outras pessoas, lave sempre as mãos e dê preferência a locais abertos, bem arejados e com boa circulação de ar.
E quando chegar a sua vez, vá até o posto de saúde para receber a vacina.
"Nós, como população, temos que enxergar a gravidade do momento e não vamos conseguir resolvê-lo sem a contribuição de todos", apela Cirilo.
E, segundo os especialistas, por mais que os números elevados da pandemia se repitam dia após dia, é preciso entender que isso não é normal, tampouco aceitável.
"Não é admissível naturalizarmos a morte e o sofrimento", completa Orellana.
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