Origem do coronavírus: como versão sobre laboratório passou de 'teoria da conspiração' a alvo de investigação dos EUA
Durante meses, a ideia de que o novo coronavírus pudesse ter surgido em um laboratório na China era vista apenas como uma teoria da conspiração. Mas agora essa possibilidade começou a ser levada a sério pelos Estados Unidos.
Na quarta-feira (26/05), o presidente dos EUA, Joe Biden, ordenou que os serviços de inteligência redobrassem os esforços para investigar as origens da pandemia covid-19.
E essa ordem inclui a investigação sobre a teoria de que o coronavírus teve origem em um laboratório na cidade de Wuhan, algo que um relatório de março da Organização Mundial da Saúde (OMS) havia concluido ser "extremamente improvável".
Biden revelou que deu a ordem após receber um relatório inconclusivo que havia solicitado após assumir o cargo. No documento, procurava-se investigar se o vírus surgiu do contato humano com um animal infectado ou de um acidente de laboratório.
O presidente argumentou que a maior parte da comunidade de inteligência convergiu em torno desses dois cenários, mas não há informações suficientes para avaliar se um é mais provável do que o outro.
Além disso, ele anunciou que Washington trabalhará com parceiros em todo o mundo para pressionar a China a participar de uma "investigação internacional abrangente, transparente e baseada em evidências".
Suas reivindicações aumentaram a ira de Pequim.
O porta-voz do Ministério das Relações Exteriores, Zhao Lijian, acusou Washington de não estar interessado nos fatos e na verdade, e nem em um estudo científico sério sobre as origens do coronavírus.
"O objetivo deles é usar a pandemia para buscar estigmatização, manipulação política e redirecionar a culpa. Eles estão sendo desrespeitosos com a ciência, irresponsáveis — com a vida das pessoas e contraproducentes para os esforços conjuntos para combater o vírus", disse ele.
Mas o que se sabe sobre essa teoria que situa a origem do coronavírus em um laboratório de Wuhan?
Da teoria da conspiração a hipótese
A covid-19 foi detectada pela primeira vez em Wuhan no final de 2019. Desde então, mais de 168 milhões de casos foram confirmados e cerca de 3,5 milhões de mortes foram registradas em todo o mundo.
As especulações sobre a possibilidade de o vírus ter surgido no Instituto de Virologia de Wuhan, um dos principais laboratórios de pesquisa da China, começaram no ano passado e foram disseminadas pelo ex-presidente Donald Trump.
Em abril de 2020, relatórios do Departamento de Estado dos EUA vieram à tona, mostrando que os funcionários da embaixada estavam preocupados com biossegurança em Wuhan, o que parecia alimentar essa hipótese.
A China rejeitou este tipo de alegação, embora durante muitos meses não tenha sido possível realizar uma investigação internacional no local.
Isso só foi possível no início deste ano, quando uma equipe de pesquisadores enviada pela OMS preparou um relatório em conjunto com cientistas chineses. Sem chegar a uma conclusão definitiva sobre a origem do vírus, o documento apontou que era "extremamente improvável" que o vírus tivesse surgido de um laboratório.
No entanto, alguns especialistas mostraram-se céticos em relação a este relatório, devido ao atraso da investigação e às limitações impostas por Pequim para a sua elaboração.
Um porta-voz da OMS reiterou à BBC na quinta-feira que mais estudos são necessários "em uma variedade de áreas, incluindo detecção precoce de casos e surtos, o papel potencial dos mercados de animais, transmissão através da cadeia alimentar e a hipótese de incidente em laboratório".
Entre a ciência e o contexto político
Análise de John Sudworth, correspondente da BBC na China
Os leitores que se acostumaram a ler reportagens que classificavam a teoria do vazamento de laboratório como apenas uma conspiração podem ficar um pouco confusos ao encontrá-la de volta, repentinamente, na primeira página do noticiário, apresentada agora como uma possibilidade completamente plausível.
A verdade é que sempre houve evidências circunstanciais para apoiar as duas teorias concorrentes. Uma origem zoonótica, na qual o vírus passa naturalmente do morcego para o homem, é sustentada pelo fato de que os coronavírus já cruzaram a barreira das espécies exatamente dessa maneira antes.
Existem também muitos precedentes nos quais pesquisadores de laboratório são acidentalmente infectados com o vírus em que estão trabalhando. O surto de Wuhan ocorreu praticamente em frente às portas do maior laboratório mundial de coleta, estudo e experimento com coronavírus de morcegos.
O que mudou não foram as evidências (até agora não há nenhuma prova de nenhum dos cenários) mas sim a política.
A teoria do vazamento de laboratório, nascida em um ambiente envenenado por desinformação, foi minada não tanto pelas negativas da China, mas pelo fato de que estava sendo defendida por Trump.
A imprensa de todo o mundo deu as costas a ele. Minhas próprias tentativas de considerar seriamente a teoria de vazamentos de laboratório em maio do ano passado foram recebidas com longas e tensas discussões editoriais antes de finalmente serem publicadas.
A narrativa predominante também gira em torno da ciência. Apesar das vozes dominantes de alguns virologistas proeminentes que insistem que apenas uma origem zoonótica precisa ser investigada, certo grupo de cientistas continuou a argumentar que ambos os cenários deveriam permanecer na mesa.
Pode ser tarde demais, é claro. Onde quer que o debate vá agora, é altamente improvável que a China permita outra investigação em seu território.
O que motiva essa mudança?
Recentemente, diversos fatores se combinaram para a reabertura desse debate.
Em 14 de maio, um grupo de 18 cientistas de universidades importantes como Harvard, Yale, Stanford e Cambridge publicou uma carta na revista Science em que questionava os resultados da missão conjunta da OMS e da China; e pediu uma "investigação adequada" sobre a origem do vírus.
No último domingo (23/05), o jornal americano The Wall Street Journal publicou informações com base em relatórios atribuídos a fontes de inteligência, segundo os quais três pesquisadores do Instituto de Virologia de Wuhan foram internados em um hospital em novembro de 2019. Isso aconteceu várias semanas antes de a China reconhecer o primeiro caso da nova doença no país.
O laboratório está localizado a poucos quilômetros do mercado úmido de Huanan, o primeiro foco de infecções.
Os defensores dessa teoria afirmam que o vírus poderia ter escapado do laboratório e se espalhado para o mercado.
O principal conselheiro médico da Casa Branca, Anthony Fauci, que no passado havia dito acreditar que o vírus havia saltado de animais para humanos, admitiu na segunda-feira (24/05) que não tem mais certeza de que o novo coronavírus teria surgido na natureza.
"Não estou convencido disso. Acho que devemos continuar investigando o que aconteceu na China", disse Fauci.
O Wall Street Journal contribuiu esta semana com outro elemento que liga o laboratório de Wuhan à possível origem do coronavírus.
De acordo com o jornal, em 2012, seis trabalhadores adoeceram enquanto limpavam fezes de morcego de uma mina na província de Yunnan. Três deles morreram.
Em seguida, especialistas do Instituto de Virologia de Wuhan foram enviados para investigar o local, onde coletaram amostras de morcegos da mina e acabaram identificando vários novos tipos de coronavírus.
Embora esses elementos não sejam suficientes para demonstrar que o novo coronavírus teve origem em um laboratório na China, por enquanto têm sido o suficiente para o Facebook anunciar que deixará de deletar as mensagens publicadas em seu aplicativo que afirmam que a pandemia foi obra do homem e não natureza.
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