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Madame Satã, o transformista visto como herói da contracultura e vilão pelo governo Bolsonaro

Manchete sobre a participação de João Francisco numa fuga penitenciária em 1955 - BIBLIOTECA NACIONAL
Manchete sobre a participação de João Francisco numa fuga penitenciária em 1955 Imagem: BIBLIOTECA NACIONAL

Daniel Salomão Roque - De São Paulo para a BBC News Brasil

De São Paulo para a BBC News Brasil

26/06/2021 19h50

Figura emblemática da boemia carioca na primeira metade do século 20, João Francisco dos Santos fascinou a esquerda brasileira no auge da ditadura militar e hoje, mesmo morto, desperta ira de bolsonaristas nas redes sociais.

Ao abaixar a cabeça, João Francisco dos Santos, então com 28 anos, viu duas poças se avolumarem no chão de seu quarto ? de um lado, as gotas de sangue pingando através de um rasgo em sua sobrancelha direita; do outro, as lágrimas que lhe escorriam pelos cantos dos olhos. Não demorou muito para que ambos os fluidos se misturassem numa poça maior.

"A minha pessoa estava feliz demais naquela noite. Eu devia ter desconfiado", recordaria quatro décadas depois, em depoimento ao escritor Sylvan Paezzo (1938-2000). "Já tinha apanhado tanto da danada da vida, que pensei ter chegado a minha boa hora. Aquela demagogia de que não há mal que sempre dure e que depois da tempestade vem a bonança."

Corria o ano de 1928, e João Francisco acreditava ter realizado o sonho da ascensão social por meio da arte. Em troca de 15 mil réis semanais, vinha se apresentando como travesti num teatro da Praça Tiradentes, centro do Rio de Janeiro. A insegurança com seus dotes performáticos havia desaparecido há poucas horas, quando o mestre de cerimônias o anunciara como "a sensacional e maravilhosa Mulata do Balacochê". Ostentando uma saia vermelha e tranças nos cabelos, havia sambado, cantado e recebido aplausos.

Voltara para casa a pé, à uma da manhã, certo de que o contratariam para novas peças. Ainda não havia jantado, e por isso resolveu fazer escala num botequim vazio, ao lado do sobrado onde morava, na Lapa, epicentro da vida noturna carioca. Queria comer um bife.

"Viado safado, viado vagabundo", ouviu de um policial em frente ao estabelecimento. Argumentou que vinha do trabalho. "Seu trabalho é roubar os outros e dar a bunda", respondeu o guarda, batendo-lhe no rosto com um cassetete.

João Francisco debandou em silêncio. No quarto, refletiu sobre o incidente. A ferida havia estancado. Já não chorava mais.

Levantou-se, introduziu um revólver no bolso e deu as caras no botequim outra vez. Apertou o gatilho. Agora, quem sangrava era o policial, caído na sarjeta em plena Rua do Lavradio.

Pelo assassinato, João Francisco foi condenado a dezesseis anos de cárcere. Cumpriu apenas dois. Não foi seu primeiro embate contra as autoridades, nem seria o último. Dos seus 76 anos de vida, 27 transcorreram em instituições prisionais.

As acusações de sua ficha criminal somavam três homicídios, treze agressões, quatro resistências à prisão, três desacatos, duas receptações de mercadoria roubada, dois furtos, um ultraje público ao pudor e um porte ilegal de arma. Foi absolvido em mais da metade desses processos. Morreu no dia 12 de abril de 1976, vítima de um câncer no pulmão.

João Francisco é mais conhecido como Madame Satã ? ícone LGBT, figura emblemática de uma boemia já extinta e um nome recentemente excluído da lista de personalidades negras da Fundação Palmares.

Uma portaria e 72 tuítes

A coleção de verbetes, disponível há mais de uma década no site da entidade, tornou-se objeto de disputa política no final de 2020.

Desde o dia 10 de novembro, uma portaria assinada por Sérgio Camargo, atual presidente da Fundação, tem justificado o cancelamento de homenagens pretéritas, embora se apresente como um norte para celebrações futuras ? elas devem ser póstumas, alinhadas aos "princípios defendidos pelo Estado" e destinadas a indivíduos de "relevante contribuição histórica no âmbito de sua área de conhecimento ou atuação".

No dia 2 de dezembro, Camargo anunciou oficialmente a exclusão de 27 personalidades ainda vivas, entre as quais a escritora Conceição Evaristo, a filósofa Sueli Carneiro, o artista plástico Emanoel de Araújo, a atriz Zezé Motta, o pugilista Servílio de Oliveira e diversos nomes da música brasileira, como Elza Soares, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Leci Brandão, Sandra de Sá e Martinho da Vila. Pelas redes sociais, alegou que certos nomes poderiam voltar à lista depois de mortos, "caso merecessem".

No dia 16, o critério da relevância histórica enviesou outros dois cancelamentos ? Maria Aragão (1910-1991), médica maranhense torturada pela ditadura militar, e Luiza Bairros (1953-2016), ministra da Igualdade Racial no governo Dilma. "Mera militância partidária não basta. É preciso mérito e relevância", declarou Camargo após a divulgação da medida.

O presidente da Fundação Palmares, autointitulado "negro de direita, antivitimista, inimigo do politicamente correto, livre", defende a portaria como um instrumento de "moralização" da entidade. Em sua conta pessoal no Twitter, veicula ataques aos excluídos, a quem se refere como "oportunistas", "aproveitadores", "políticos inúteis", "pretos por conveniência" e "nomes adicionados pela esquerda ao longo de décadas pelos critérios da sabujice, lealdade ideológica e promoção pessoal".

Madame Satã, suprimido da lista antes mesmo que a portaria entrasse em vigor, é a personalidade mais citada nas postagens. Em 1º de outubro, ao anunciar sua exclusão, Camargo escreveu: "A Fundação não presta homenagem a bandidos. Defende a Cultura".

Desde então, menções ao transformista têm dominado seu perfil na rede social. "De Madame Satã a George Floyd, se o preto era um bandido, não importa como morreu, ele é imprestável como exemplo de vida, referência moral, modelo a ser alcançado", postou no dia 20 de abril de 2021. Camargo também descreve João Francisco como "psicopata", "infame", "abjeto", "repulsivo", "criminoso", "escória", "bosta" e "lixo humano". O termo mais rotineiro, entretanto, é "triplo homicida", repetido 37 vezes. Ao todo, foram pelo menos 72 tuítes sobre o tema até o dia 6 de junho deste ano.

Em 15 de março, uma liminar assinada pelo juiz Diego Câmara, da 17ª Vara Federal Cível (DF), determinou que os nomes excluídos retornassem à lista ? a portaria, segundo o magistrado, carece de "motivação idônea e prévia". Dois dias depois, Camargo se manifestou nas redes sociais: "Madame Satã, triplo homicida amado pela esquerda, volta a ameaçar a Fundação Cultural Palmares e os negros honrados do Brasil".

Para o arquiteto baiano Zulu Araújo, que presidiu a entidade entre 2007 e 2010, os ataques a João Francisco dos Santos decorrem de três características básicas: "Ele era negro, nordestino e homossexual. São traços que afrontam o conservadorismo do nosso país", afirma à BBC News Brasil.

James Green, ativista LGBT, professor de História da América Latina na Brown University (EUA) e autor do livro Além do carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do século XX (Editora Unesp), acredita que esses mesmos atributos o tenham transformado em ícone.

"O Brasil tem poucas referências históricas de gays assumidos", explica à reportagem. "Madame Satã é um dos únicos que conhecemos. Ele é uma figura importante para quem deseja resgatar o passado da homossexualidade no país. E o fato de ser negro, dos setores mais oprimidos, realça ainda mais o seu caráter simbólico."

Desafiando historiadores

João Francisco dos Santos nasceu em 25 de fevereiro de 1900, no município pernambucano de Glória do Goitá, a 65 quilômetros de Recife. Quase todas as informações disponíveis sobre sua infância e juventude vêm das entrevistas que concedeu na velhice.

"Esse é um grande desafio para historiadores", observa Green. "Os dados são muito escassos. Não há uma documentação mais cuidadosa sobre as classes populares brasileiras. Sabemos, por exemplo, que ao longo do século 20 milhares de homossexuais foram presos sob acusação de vadiagem ou atentado ao pudor. No entanto, encontramos poucos registros oficiais, pois a maioria dessas prisões ocorreu ilegalmente. Há uma grande invisibilidade."

Sabe-se que o pai de João Francisco era filho bastardo de um senhor de engenho com uma escravizada. A mãe, em suas palavras, era "uma cabocla muito bonita e muito analfabeta". Aos oito anos, foi entregue por ela a um fazendeiro. "Não sei bem o que senti naquela hora desgraçada", lembraria já no fim da vida. "Doía como se eu morresse toda hora de uma doença dolorida. E pensava que tinha sido trocado por uma eguinha castanho-clara que respondia pelo nome de Amorosa. Então doía muito mais."

Por seis meses, seria mantido em condições análogas à escravidão. Seduzido por promessas de estudo, fugiu para o Rio de Janeiro com a proprietária de um hotel, mas uma nova rotina de trabalho forçado era tudo o que lhe aguardava na então capital federal. Cinco anos depois, libertou-se da patroa para viver de furtos pelas ruas da Lapa.

Na vida adulta, vieram os trabalhos informais ? vendedor ambulante, leão de chácara, garçom de bordel e cozinheiro de pensionato. Nesse último ofício conheceu Sarah Nobre, atriz emergente que apreciava suas imitações de Carmen Miranda e Josephine Baker. Foi por indicação dela que conseguiu a vaga de travesti no teatro da Praça Tiradentes, dias antes de apanhar do guarda e matá-lo em represália.

Um morcego que chupa o sangue do gado

A despeito das agressões, João Francisco encarava a homossexualidade de forma singela: "Ser bicha era uma coisa que não tinha nada demais", costumava dizer. "Eu era porque queria, mas não deixava de ser homem por causa disso."

Acima de tudo, apreciava o Carnaval.

"Se você fosse um cara hétero, casado, e quisesse experimentar roupa de mulher, estaria tudo ok naquele momento", explica Green. "Faz parte da inversão carnavalesca, ninguém te chamaria de 'viado' por causa disso. E os homossexuais encaravam essa brecha como uma libertação."

Nas primeiras décadas do século 20, a homossexualidade masculina já gozava de relativa tolerância em ambientes profissionais dominados por mulheres, como cabarés, cozinhas e salões de beleza. A maioria dos gays brasileiros, entretanto, não desfrutava dessa liberdade ? eram funcionários públicos, trabalhadores braçais e empregados dos mais diversos ramos.

"O Carnaval era muito importante para a sanidade mental dessas pessoas", sustenta Green. "Naquele momento, elas não precisavam esconder seus indicativos de homossexualidade. Pelo menos por alguns dias no ano, elas podiam contar com algum respiro, com uma válvula de escape."

Durante a festa de 1938, João Francisco aderiu ao concurso de fantasias promovido pelo Teatro República, na Avenida Gomes Freire. Uma velha reminiscência o havia encorajado a seguir em frente: "Lembrei que na minha infância tinha conhecido um morcego que chupava o sangue do gado. Achei que, além de original, podia ficar muito divino. Reuni meus pequenos recursos financeiros e iniciei eu mesmo a confecção. Meu dinheiro só dava para botar lantejoulas nos chifres e na máscara. O corpo da minha fantasia eu fiz com fitas douradas de caixão de defunto. Um luxo."

Os foliões que assistiam ao desfile notaram certa semelhança entre aquelas vestimentas de morcego e o figurino exibido pela atriz Kay Johnson em Madam Satan, uma comédia musical norte-americana dirigida por Cecil B. DeMille em 1930. A premissa do filme não poderia ser mais distante da existência de João Francisco ? uma socialite branca descobre a infidelidade do marido e decide reconquistá-lo num baile de máscaras a bordo de um zepelim, fazendo-se passar por uma loura devassa enviada diretamente do inferno.

"Naquele tempo, os jovens de trejeitos afeminados extravasavam sua marginalização e falta de referências através de fantasias escapistas, sonhando com um mundo mais amigável", observa Green. "Acredito que o cinema tenha cumprido esse papel, sobretudo nos anos da Grande Depressão. Para as massas pobres que assistiam aos filmes, Hollywood representava um lugar de beleza, glamour e divertimento. Era um escape, uma fuga de uma realidade muito difícil."

Talvez por isso, o apelido tenha pegado ? até o último dia de sua vida, João Francisco atenderia por Madame Satã.

Dissidências boêmias

O transformista foi descrito nos seguintes termos por um comissário que o prendera: "É pederasta passivo. Usa as sobrancelhas raspadas e adota atitudes femininas, alterando até a própria voz. Entretanto, é um indivíduo perigosíssimo, pois não costuma respeitar nem as próprias autoridades policiais. Fuma, joga e é dado ao vício da embriaguez. É visto sempre entre pessoas do mais baixo nível social."

Alçado ao posto de figura folclórica, Madame Satã se equilibrava entre a repressão e o crescente prestígio na vida noturna. "Eu não tinha medo", dizia. "Minha bolacha de esquerda era respeitada. Acertava sempre no ouvido do inimigo, e o sujeito demorava a voltar."

Tal violência, segundo Zulu Araújo, dirigia-se a alvos específicos ? os poderosos, nunca as minorias: "Madame Satã arrebentou militares que o humilhavam e delegados que o perseguiam. Patrulhas inteiras, que iam à Lapa agredir prostitutas e boêmios, eram derrotadas por ele. E para isso ele se serviu da sabedoria, da malandragem e da capoeira, ferramentas que a cultura negra lhe propiciou."

Em depoimentos, o transformista apontava sua orientação sexual como raiz de todos os cercos que havia sofrido. "Eles não se conformavam com a minha valentia. Mas o que eu devia fazer?", questionava-se. "Tornar-me um covarde? Deixar que fizessem comigo o que faziam com outras bichas? Não, eu não podia me conformar com a situação vexatória que era aquela."

Com a boemia, mantinha uma relação ambivalente. "Esse universo de malandragem, prostituição e samba, tudo junto e misturado no centro da cidade, acolhia muitas dissidências nos anos 30 e 40", explica Green. "Ao mesmo tempo, sempre foi um espaço bastante machista."

Madame Satã se gabava de ter estado em serenatas com Francisco Alves ? na época, o cantor mais popular do rádio brasileiro. Era próximo a músicos como Cartola, Nelson Cavaquinho, Vicente Celestino, Heitor dos Prazeres e Aracy de Almeida, a quem elogiava como "grande jogadora de sinuca". Noel Rosa teria se inspirado nele ao escrever Mulato Bamba, uma de suas canções mais conhecidas. Por outro lado, o transformista esmurrou Geraldo Pereira, em represália a supostas provocações homofóbicas ? o compositor morreu no dia seguinte, 8 de maio de 1955, de uma hemorragia intestinal não relacionada ao incidente.

"Madame Satã conquistou espaço ao utilizar seus dotes corporais como mecanismos de defesa", analisa Green. "Nesse sentido, lembra a pessoa trans que é trabalhadora do sexo. A travesti precisa brigar, manipular giletes, responder de forma violenta. Num mundo onde ela pode ser muito facilmente assassinada, isso tudo é uma questão de sobrevivência."

As dificuldades vivenciadas pelo transformista, acrescenta Araújo, eram as mesmas de qualquer negro brasileiro no século 21, opina o pesquisador: "Isso ocorre ainda hoje nas favelas de todo o país. A PM invade, achaca, espanca e mata. É sócia do narcotráfico e envia seus batalhões para violentar preferencialmente pretos e pobres."

'Bicha viril'

No início dos anos 1970, a verticalização engolia as esquinas da Lapa. O bairro se transformara num gigantesco canteiro de obras, com empreendimentos erguidos sobre as ruínas do patrimônio arquitetônico e ruas alargadas para suportar um fluxo cada vez mais intenso de automóveis.

A exemplo de outros personagens que um dia povoaram a região, Madame Satã parecia fadado ao esquecimento. Desde 1965, vivia por livre e espontânea vontade no complexo penitenciário da Ilha Grande, a 150 quilômetros da capital fluminense. Já havia cumprido sua pena, mas tentava se distanciar de agitações e correrias.

Nos bairros ricos da zona sul, um grupo de jovens boêmios seguia pela direção oposta ? eram os redatores do Pasquim, tabloide alternativo criado em 1969 sob forte inspiração de publicações estrangeiras, como a norte-americana The Realist e a francesa Hara-Kiri.

Suas páginas abordavam temas caros à contracultura mundial, refletidos sob uma perspectiva tipicamente carioca. De um lado estavam a psicodelia, o marxismo, as referências ao quadrinista Robert Crumb, ao cineasta Jean-Luc Godard e ao filósofo Herbert Marcuse; do outro, o samba, o Cinema Novo, as bebedeiras em Ipanema, os cartuns de Ziraldo, Jaguar e Henfil. As digressões intelectuais eram permeadas por um humor malicioso e fotografias de beldades seminuas, que garantiam ao veículo uma tiragem de 250 mil exemplares semanais.

"O Pasquim foi o resultado de uma combinação interessante", analisa Green. "Eram de esquerda, influenciados pelo Partido Comunista, e portanto tinham ideias progressistas, uma preocupação com as raízes do povo brasileiro. Porém, sempre foram conservadores nos costumes."

O tabloide, surgido logo após o AI-5, despontava na imprensa como uma das principais vozes de oposição à ditadura militar. "Mas seu conselho editorial era formado por homens heterossexuais que reproduziam o machismo da classe média carioca", aponta o historiador. "Eles objetificavam as mulheres, reforçando o tempo todo sua beleza e função sexual. Obviamente, eram muito críticos à homossexualidade e à militância feminista."

Num intervalo de uma semana, em abril de 1971, esse contraste se manifestou de forma mais estridente do que nunca.

A edição do dia 22 continha uma entrevista com Betty Friedan, autora de A mística feminina, best-seller que impulsionara a segunda onda do feminismo nos EUA. Um editorial acusava Friedan de socar a mesa da redação, dizer palavrões, pregar "ódio sexual", defender o aborto, mostrar-se "intolerante a ideias contrárias" e não possuir senso de humor. A ativista, assinalava O Pasquim, era "tão inteligente que nem parecia mulher".

Na edição do dia 29, o tabloide trouxe um novo entrevistado ? o idoso, pacato e esquecido Madame Satã. Millôr Fernandes, um dos entrevistadores, lhe disse: "Você sabe que nós aqui fazemos um jornal que é marginal. De modo que o fato de você ter uma vida um pouco à margem da sociedade só faz com que nós tenhamos uma grande emoção em falar com você". Paulo Francis o elogiou: "Você é muito mais autêntico e muito mais sofisticado do que o (escritor, homossexual e ex-detento francês) Jean Genet".

As perguntas, que João Francisco respondia com gentileza, falavam sobre porres, brigas, perseguições, fugas, tiroteios e navalhadas. A hostilidade lançada contra Friedan se diluía em reverências ao imaginário da velha Lapa ? o transformista era enaltecido como um sobrevivente da "verdadeira contracultura brasileira", um gunfighter (pistoleiro, em inglês), um ser de "extraordinária masculinidade" e o "homossexual mais macho que já houve na história do Rio de Janeiro".

A entrevista, afirma Green, foi uma tentativa de O Pasquim inserir a si mesmo numa perspectiva histórica mais ampla.

"Eles reivindicavam uma tradição dentro da cultura brasileira. O resgate da vida noturna nos anos 1930 era uma justificativa para a boemia na década de 1970", diz. "Além disso, Madame Satã confundia os papéis tradicionais de gênero. Ele gostava de dar, mas também era um cara briguento e viril. Reforçava todos os estereótipos, mas também os subvertia. E, para O Pasquim, isso soava exótico e conveniente. Eles podiam seguir com todas aquelas matérias que inferiorizavam mulheres e bichas, e ao mesmo tempo tomar cerveja com aquele cara nos bares de Ipanema."

País de maricas

Sob influência direta do Pasquim, a figura de João Francisco se multiplicaria nos mais diversos produtos culturais. Ao longo de cinco décadas, sua história foi narrada em livros, filmes, cordéis, músicas, histórias em quadrinhos e peças de teatro ? seu apelido batizou até mesmo uma das casas noturnas mais importantes do país, o Madame Satã, reduto de punks e góticos paulistanos nos anos 1980.

Até o final de 2020, tais homenagens nunca haviam sido objeto de controvérsia. Os recentes ataques à memória do transformista, segundo Green, constituem um esforço mal sucedido da extrema direita em regressar a um passado imaginário, no qual as minorias permaneciam supostamente silenciadas.

"Estão querendo reverter um processo muito avançado", diz. "Há milhões de pessoas nas paradas gays, é impossível enfiar toda essa gente de volta no armário. O movimento LGBT gerou em todos nós um sentimento de firmeza e autoaceitação. Eles podem até destruir a Fundação Palmares e barrar ações afirmativas nas universidades, mas não irão muito longe, pois a juventude já tem outras perspectivas sobre as possibilidades do mundo."

Para Zulu Araújo, a atuação de Sérgio Camargo não representa uma grande surpresa. "Figuras como ele eram denunciadas pelos Panteras Negras (grupo ativista americano)", diz. "Na década de 1930, os integralistas já tentavam cooptar afrobrasileiros para a extrema direita. Malcolm X e diversos líderes anticoloniais africanos, como Thomas Sankara, Amílcar Cabral e Patrice Lumumba, foram assassinados por outros negros."

O espanto com os rumos da Fundação Palmares, em sua opinião, decorre de uma associação equivocada entre raça e ideologia: "Trata-se de uma ingenuidade alimentada pelo próprio movimento negro", afirma. "Dizem que a gente, só por ser preto, tem que se juntar. O problema é que os indivíduos se movem de acordo com seus convencimentos ideológicos e interesses de classe. Na luta contra o racismo, a consciência política é fundamental para que a gente não se torne vítima desse tipo de figura."

As novidades trazidas pelo atual cenário, conclui o arquiteto, se resumem a dois fatores interconectados ? uma subordinação caricata ao governo federal e a consequente exposição do problema.

"Jair Bolsonaro declarou que o Brasil está sendo maricas no enfrentamento do coronavírus", recorda. "Diante de uma fala dessas, o que nos resta? Quando o presidente da República associa até mesmo vacinas, máscaras e medidas de isolamento social a um suposto comportamento de viado, no sentido mais pejorativo que esse termo pode carregar, a fixação de seus subalternos por Madame Satã adquire significados muito óbvios. É um caso psicanalítico."


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