Refugiada afegã no Brasil diz que filha está escondida em casa com medo do Taleban
Entre um brechó e uma loja de azulejos, sobrevive um restaurante de comida afegã na rua Tamandaré, bairro da Liberdade, no centro de São Paulo.
O pequeno Koh I Baba, com apenas três mesas forradas por toalhas vermelhas, pertence a um casal de refugiados que desembarcou no Brasil há oito anos para fugir da perseguição do Taleban, grupo fundamentalista islâmico que tomou o controle do país no último fim de semana.
"Meu país está há 40 anos em guerra. Eu não aguentava mais, ninguém aguenta mais. É um milagre eu e minha família estarmos vivos", diz o dono do bistrô, Sorb Kohkan, de 65 anos.
Kohkan e sua mulher, Riahana Ibrahimi, 47, pertencem à etnia hazara, um povo de origem mongol que reside principalmente na região central do Afeganistão conhecida como Hazarajat.
Segundo relatório da organização Minority Rights Group, os hazaras representam 9% da população afegã. Minoria étnica, eles são frequentemente alvo de discriminação e de processos de violência, como espancamentos, sequestros e assassinatos seletivos.
"A pobreza e a insegurança levam muitos hazaras a migrar para cidades como Cabul. No entanto, a viagem de Hazarajat para a capital se revelou perigosa. A estrada principal entre as duas áreas, apelidada de 'estrada da morte', tem sido local de sequestros e outros ataques mortais do Talebã aos hazaras nos últimos anos", aponta o relatório.
Esse cenário de violência levou Sorb Kohkan a fugir para o Brasil em busca de refúgio, há oito anos.
"Era muito perigoso viver no Afeganistão. Já fui sequestrado... Sofremos muito lá. As mulheres não podiam pintar as unhas, porque cortavam o dedo delas. Soube que o Brasil era um país democrático, que respeita os direitos humanos. Por isso tentamos o asilo", conta ele, que trabalhou em pizzarias antes de abrir seu próprio negócio na Liberdade.
Kohkan falou com a reportagem por telefone, diante do avanço do Taleban sobre várias regiões do Afeganistão, ele está exclusivamente concentrado na tarefa de ajudar parte da família a fugir do país — entre eles, sua filha, de 24 anos, que nos últimos dias tem ficado escondida com medo do Taleban.
"As mulheres da minha família trabalham como professoras, mas ficou muito perigoso para elas, porque o Taleban proíbe que meninas estudem e persegue as mulheres. Minha filha e outras parentes estão escondidas em uma casa, sem poder sair. O Taleban segue uma lei de mil anos atrás. Com eles no poder, outros grupos extremistas vão aparecer também", diz Kohkan.
Até alguns dias atrás, ele e a esposa conseguiam se comunicar com os familiares por telefone e pelo WhatsApp, mas no fim de semana os contatos ficaram mais raros, depois que o Taleban tomou a capital, Cabul.
Outro afegão no Brasil, Omar Atbayee, de 30 anos, conseguiu finalmente se comunicar com o pai, que vive em Cabul, apenas nesta segunda-feira. A família estava preocupada com os relatos e imagens de violência no país.
"Liguei várias vezes para ele, e consegui contato hoje. Está tudo bem com ele, graças a Deus. Ele me tranquilizou. Disse que o Taleban não está tão radical como antes, que dessa vez será mais tranquilo", diz Atbayee, que trabalha na área de informática em Porto Alegre.
A família de Atbayee veio para o Brasil em 2002, após cinco anos vivendo na Índia como refugiada. Ele tinha 11 anos quando chegou ao Brasil, onde vive com a mãe e duas irmãs.
"Meu pai viveu aqui por dois anos, mas não se adaptou e resolveu voltar", diz Atbayee, que nunca mais voltou ao país natal.
Refúgio
Enquanto o marido tenta retirar a filha do Afeganistão, Riahana Ibrahimi ficou no comando do pequeno restaurante Koh I Baba, na Liberdade. Mesmo falando pouco português, ela recebe pedidos pelo Whatsapp e aplicativos de entrega, prepara a comida, serve clientes e envia os pratos por meio de entregadores.
"Minha filha e minhas irmãs estão lá, morrendo de medo, sem sair de casa. Estamos muito preocupados", diz ela, que não conhece nenhum outro afegão em São Paulo. "Vivemos só entre os brasileiros", diz.
Riahana veio para o Brasil quatro anos depois do marido, em novembro de 2017, quando o Brasil aceitou seu pedido de refúgio após dois anos de espera. Segundo a família, o governo brasileiro há dois anos analisa a solicitação da filha do casal, que permanece no Afeganistão enquanto não recebe o status de refugiada.
Para o advogado Sidarta Martins, membro da Comissão dos Direitos dos Imigrantes e Refugiados da OAB São Paulo, a análise de pedidos de refúgio é excessivamente demorada no Brasil, principalmente porque o setor responsável pelas solicitações tem poucos funcionários.
"É um problema que continua há vários governos. Tem poucas pessoas trabalhando nisso, não há uma ordem cronológica na apreciação dos pedidos", explica.
"Outro problema grave é a falta de padronização dos consulados brasileiros pelo mundo. As embaixadas e os consulados têm muita autonomia. A gente escuta reclamações vindas de certos países, e não de outros, quanto ao tratamento que os consulados brasileiros dão mundo afora", diz.
Segundo Martins, o problema se agravou durante a pandemia de covid-19. "O governo brasileiro suspendeu muitas atividades relativas aos estrangeiros. Como com a carteira de motorista, todos os vistos e demais documentos que vieram a perder a validade durante a pandemia tiveram seus prazos estendidos".
Um relatório do Observatório das Migrações Internacionais (Obmigra), órgão do Ministério da Justiça, não detalha quantos afegãos entraram no país em 2020 como imigrantes ou refugiados. Também não informa quantos pedidos de refúgio foram aceitos ou recusados em 2020.
Das 29,4 mil solicitações recebidas pela Polícia Federal no ano passado, cerca de 17 mil eram de venezuelanos, 6,6 mil eram de haitianos e 1,3 mil, de cubanos. Países como China (568), Angola (359) e Bangladesh (329) completam a lista de nacionalidades com mais pedidos de refúgio.
'O Brasil é muito bom para nós'
As prateleiras do bistrô Koh I Baba, em São Paulo, estão recheadas de salgadinhos Fofura, pirulitos Pop e isqueiros da BIC.
Mas não se engane: a especialidade da casa são pratos típicos do Afeganistão, como o Korma (carne bovina marinada por 24 horas e refogada com temperos especiais, legumes e arroz aromático) e o Kabuli (arroz basmati, feito com caldo de costela, uvas passas, cenoura, pistache, cardamomo, tudo acompanhado por uma costela ao estilo afegão).
A cozinheira e proprietária, Riahana Ibrahimi, não se acanha quando questionada se posaria para uma fotografia dentro do restaurante. "Claro, no Brasil não temos medo de aparecer. O Brasil é muito bom para nós", diz.
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