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'Com as relações abertas, a infidelidade perdeu peso, pois não é mais tão importante', defende escritora chilena

Diana Massis - HayFestivalQueretaro@BBCMundo

25/09/2021 19h22

Paulina Flores fala sobre questões que permeiam suas obras e sua própria geração, como o fim da monogamia e a popularização do poliamor.

Qué vergüenza (ou "Que vergonha", em tradução literal). Este é o título do primeiro livro de Paulina Flores (Santiago, 1988), uma coletânea de contos que ganhou o prêmio Roberto Bolaño e impressionou com suas histórias íntimas, que revelam laços familiares, frustrações, a dor que sente ao negar sua origem social, a impotência quando você entende que seu pai sofre ou a dureza das traições.

Neste ano, a autora chilena entrou para a lista da revista Granta dos 25 melhores jovens escritores em espanhol e lançou seu primeiro romance, Isla Decepción ("Ilha da Decepção", em tradução livre) ? uma história que reúne três personagens: Marcela, que vive o rompimento de uma relação amorosa e viaja para o sul do Chile em busca de refúgio e do amor do pai, Miguel. E Lee, um jovem coreano que foge com outros dois marinheiros do Melilla, um navio-fábrica onde trabalhavam em condições desumanas pescando lulas.

Lee é resgatado quase sem vida das águas do Pacífico por um pequeno barco, e Miguel, em vez de entregá-lo à polícia para ser devolvido ao navio, o esconde em sua casa e cuida dele.

Sem falar a mesma língua, nasce entre eles um diálogo que os aproxima, pois têm algo em comum: o ímpeto de partir para um lugar que promete ser melhor.

"Queria escrever sobre escapar, fugir, e o tema de fundo me parecia muito apropriado para lidar com essas questões."

Em conversa com a BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC, Flores ? que participou do Hay Festival Querétaro, no México ? analisa esta e outras questões que permeiam Marcela e sua própria geração, como o fim da monogamia e as mudanças de perspectiva em relação à infidelidade.


BBC News Mundo - A fuga está presente no seu romance e também nas suas histórias, por que fugir, de quê?

Paulina Flores - Acho atraente essa forma de viver fugindo, naturalmente me atrai.

Talvez tenha a ver com o espírito da época. Há uma tendência de olhar com reprovação as pessoas que estão fugindo ou escapando. Queria saber do que se tratava e escrever sobre isso me ajuda, porque tenho que me colocar em todos os papéis, tomar todas as decisões.

BBC News Mundo - Lee foge do Melilla, um navio indonésio onde se trabalha dia e noite, não se sabe quantas horas ou meses se estáa bordo da embarcação, se passa fome, se sofre castigos físicos. Como você reconstrói essa realidade?

Flores - São navios-fábrica que pescam e processam ao mesmo tempo (o pescado) em jornadas intermináveis. Contratam marinheiros do Sudeste Asiático e funcionam como máfias.

Pesquisei em um instituto da Nova Zelândia que tem o maior acervo de depoimentos, mas não há tanta informação, porque quem fala usa pseudônimos.

Como esses navios estão em alto mar, não há controle ou supervisão. Além disso, cada país tem seus próprios problemas, principalmente na América Latina, por isso não há muita preocupação com isso.

Você acha que isso acontece a milhões de quilômetros de distância e não, está acontecendo bem ali. Eu queria mostrar isso porque parecia horrível e surpreendente para mim.

Mas não está acontecendo só na indústria pesqueira. É paradigmático o que está acontecendo agora na Índia, que estava produzindo vacinas para todo o mundo e não tinha vacinas.

BBC News Mundo - O que mais te impressionou ao ler os depoimentos sobre a situação nesses navios?

Flores - A forma como as pessoas conseguem gerar humanidade apesar da dor ou do sofrimento, foi o que mais me impactou; como apesar de estar numa espécie de inferno, você consegue ter carinho com as pessoas que estão ao seu lado.

BBC News Mundo - Entre as atrocidades que acontecem está a luta campal, que parece uma espécie de escape, todo mundo luta sem saber o motivo. O que você quer contar?

Flores - Sabia que precisava haver uma luta, e em um navio de marinheiros, com facas. Isso foi levando a outras coisas, como ver qual era o papel de Lee, o que uma luta significava nessas condições.

Em algum momento, é um pouco de diversão também. Não permitem que a gente faça nada, então vamos nos matar, vamos nos divertir, já que não há mais nada a fazer.

BBC News Mundo - Mas também há ternura e cuidado mútuo entre os marinheiros, como Yusril, que prefere suportar torturas a colocar Lee em perigo.

Flores - As pessoas procuram uma forma de não perder a dignidade. Podem tirar de você tudo a nível material, a nível de abusos, mas não podem tirar sua maneira de ser com os outros. Bem, eles podem tirar isso de você, mas pelo menos nesta parte, tento mostrar o contrário.

BBC News Mundo - Você viajou para a Coreia, o país de Lee, o que foi revelador nessa viagem?

Flores - Precisava estar lá, para ver o lugar onde Lee nasceu. Foi emocionante ouvir a língua, me perder, ver os gestos. Claro que com muito respeito, porque também não queria falar de outro país. Como em Felizes Juntos, o filme de Wong Kar-Wai, em que há dois cidadãos de Hong Kong que moram em Buenos Aires, mas não falam de Buenos Aires, apenas estão lá.

Com Lee sinto a mesma coisa, mas por outro lado, não queria cair em algo caricato. Fui para Seul e depois para Busan, o porto de onde sai o Melilla. Precisava ver os pescadores, ver as agências, o lugar onde Lee poderia ter morado, de quais bares ele gostava, esse tipo de coisa, e descobri que, se escrevesse de forma realista, nunca escreveria.

Me dei conta de que poderia estudar coreano por sete anos e ainda não falaria como eles. Entender isso foi uma espécie de perda, mas também foi um alívio e uma resposta: faça diferente.

BBC News Mundo - De onde vem o seu amor pela Coreia?

Flores - Eu li muito sobre a Coreia antes de visitar e espero sempre voltar.

Estudava no bairro da Recoleta, em Santiago, e tinha colegas coreanos. Vi como Patronato, uma zona de comércio de roupas, mudou quando a imigração coreana chegou.

Cresci nesse lugar e depois fiquei encantada com o cinema, a música, comecei a pesquisar a história. Vi muitos paralelos com o Chile, porque eles também haviam sido fortemente impelidos ao neoliberalismo na década de 1990, e ambos os países tiveram uma forte ditadura até o início dessa década.

E para mim tem o Pacífico e as questões românticas também, como o que Marcela diz a Lee: 'Somos ilhéus'. Eles são uma península, mas com vista para o Pacífico e a Coreia do Norte, que é uma fronteira. É como ver o Chile entre o mar e a cordilheira. Esse tipo de coisa.

BBC News Mundo - Por que Miguel e Marcela decidiram proteger Lee?

Flores - Eles encontram alguém que precisava e o ajudam, mas na verdade estão ajudando a si mesmos.

O Miguel já fugiu há muito tempo, tem mais experiência nisso. Marcela tem quase 30 anos e quer resolver as coisas com o pai.

Ela também está sofrendo por amor; tentando esquecer alguém, está tentando esquecer de si mesma. Não para de falar dela, é obcecada, super egocêntrica, individualista, neurótica e é muito bom para ela estar com um coreano que não entende nem a metade, porque ele não pode julgá-la.

E sabemos sobre a fuga de Lee pelo o que eles estão pensando dele.

BBC News Mundo - Marcela explica sua separação dizendo que precisava de mais sexo e que seu parceiro, Diego, ficou na defensiva. Isso acontece quando a mulher tem mais desejo?

Flores - Eu não queria que nada fosse como deveria ser na Marcela. Ela é infiel, viciada em cocaína, superconfiante, meio deusa. Em algum momento, acredita ser Don Draper (o protagonista da série Mad Men). Se espera que o homem esteja cheio de desejo ? e não é nada disso.

O desejo se dá de maneiras diferentes para cada pessoa e dependendo de com quem se relaciona. Mas eu queria que ela fosse muito sexual, desejosa e que quebrasse esse clichê. Não estou dizendo que seja certo ou errado, mas queria que ela fosse assim.

BBC News Mundo - Afinal se paga um preço, a mulher é punida por ser como "um homem infiel"?

Flores - Não queria que ela fosse a vítima, mas a algoz em algum momento. Também agora, com as relações abertas, acho que a infidelidade perdeu peso, pois não é mais tão importante.

BBC News Mundo - Como está a questão do relacionamento aberto e do poliamor entre pessoas de 30 anos como Marcela e você?

Flores - Para mim, está muito bem, mas sinto que estou me movendo em uma bolha. Todos os relacionamentos de amigos ou pessoas que me cercam são assim e funciona muito bem.

Em relações abertas ou de poliamor, cada relacionamento tem sua própria maneira de ser. E há muito respeito, muita responsabilidade emocional. As coisas são faladas mesmo que seja difícil.

Trata-se de ser mais sincero, para não fazer ninguém sofrer, tudo pode ser discutido, absolutamente tudo. E as pessoas tentam ficar bem, se divertir, ser felizes, não ficar tristes, não brigar.

BBC News Mundo - Funciona melhor do que a monogamia?

Flores - Funciona para mim, mas provavelmente não para outras pessoas, depende da sua história, das coisas pelas quais você passou. Isso me dá a sensação de que, geracionalmente, há um rastro que se pode seguir e muito está sendo escrito sobre isso.

Para mim, tem a ver principalmente com o fato de que a monogamia é uma invenção do patriarcado, uma forma de dominação masculina sobre as mulheres. Entender isso me fez querer nunca mais participar dessa forma de expressão de amor.

BBC News Mundo - Como essa dominação se manifesta?

Flores - Não sou teórica a respeito, é só uma coisa que eu penso e que me ajuda, mas te mantinham confinada em casa, você não podia estudar, não podia trabalhar, decidir. Não podia dormir com ninguém. Isolam você com a ideia de amor romântico e de casal. Fazem com que você cuide de crianças a vida toda sem poder fazer mais nada.

É a história de gerações passadas, da minha avó, da minha bisavó. Não podiam se desenvolver. É por isso que a monogamia está acabando e esses discursos estão emergindo. Acho que tem uma relação direta.

BBC News Mundo - Também há mais pessoas que não querem ser rotuladas em termos de identidade, isso também acontece no seu círculo?

Flores - Talvez agora, como estou fora do meu país, tenha menos problemas de identidade. E ao mesmo tempo fico pensando isso o tempo todo, quem sou eu? É estranho, tem muito a ver com o espírito da época.

Ontem vi uma declaração do secretário da Corporação Selkn'am, um povo nativo da Patagônia chilena, que dizia: Não posso ser quem sou porque o Estado não permite, não me reconhece.

Sinto que há algo que todos nos perguntamos, não dessa forma tão dolorosa e terrível, porque felizmente o Estado ainda me reconhece, mas se fico como imigrante ilegal na Europa, talvez o Estado deixe de me reconhecer, não o meu, mas o de outro país. Talvez as palavras dele cheguem até mim por causa disso, talvez eu esteja me preparando psicologicamente.

BBC News Mundo - Em um dos contos do livro Qué vergüenza, você diz: Não posso respeitar os cuicos (riquinhos) nem os europeus...

Flores - Não sou eu que estou dizendo isso, um personagem diz e é uma das coisas que eu queria mudar ou melhorar.

No Chile, às vezes era um pouco problemático para mim ficar tão ressentida, porque eu tinha muito ódio no coração e, no fim das contas, esse ódio só me fazia sentir mal, e a mais ninguém.

Não é que eu vim para a Europa para não ficar ressentida, mas entendi que era um momento muito bom de aprendizado, estou aprendendo.

BBC News Mundo - Como você explicaria o ressentimento?

Flores - É uma sensação muito forte, muito intensa. É uma evidência e se repete na sua cabeça mil vezes. Como se você tivesse sido traído e não pudesse esquecer, algo assim é ficar ressentido. E você fica obcecado, mas talvez tenha a ver com não pertencer...

BBC News Mundo - Ao grupo privilegiado?

Flores - Claro, sim, mas ser privilegiado também é uma questão de perspectiva, eu sou para muita gente, depende de onde você se coloca ou com quem se compara.

Eu diria que ficar ressentido é ser muito romântico também, um pouco vaidoso, como se você achasse que merece mais do que tem.

BBC News Mundo - E o ódio no coração?

Flores - São intensidades. Se há ódio, também há muito amor, por analogia. Mas não sei se é ódio, são raivas, porque no Chile as coisas são injustas, além do mais te tratam mal. Dói que as pessoas que você ama e que são brilhantes não possam estudar; tenho um primo que esteve preso recentemente no Serviço Nacional de Menores; e sua mãe trabalha tanto sem ganhar nada, são dores, injustiças.

BBC News Mundo - Em suas histórias você fala também de vergonha pela origem social, vergonha de classe...

Flores - Esse livro se passa nos anos 1990, quando havia a ideia de que era preciso romper com essa origem para ser melhor.

Queria entender isso, de um ponto de vista crítico, compreender como as pessoas rompem seus laços familiares e amistosos ??para, entre aspas, crescer economicamente, socialmente, mas também ver que por trás dessas decisões há muita dor, porque na pobreza e nas dificuldades econômicas sempre há muita dor.


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