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O que explica explosão de covid na Rússia, que pode ter levado país a ultrapassar Brasil em número de mortes

Menos de 50% dos russos estão plenamente vacinados, aponta a plataforma Our World in Data - Divulgação/RDIF
Menos de 50% dos russos estão plenamente vacinados, aponta a plataforma Our World in Data Imagem: Divulgação/RDIF

Paula Adamo Idoeta - Da BBC News Brasil em São Paulo

16/01/2022 08h23Atualizada em 16/01/2022 08h27

Antes mesmo da chegada da variante ômicron, russos sofreram com pico de casos e mortes, em um país que vacinou menos de 50% de sua população.

Uma combinação de falhas no enfrentamento da pandemia, estatísticas sob suspeita, vacinação lenta e explosão de casos e mortes por covid-19 retrata os últimos meses de pandemia na Rússia.

Agravando o quadro, cálculos extraoficiais indicam que pode estar havendo uma enorme subnotificação de casos e mortes no país, o que sugere que a Rússia pode já estar ocupando o desagradável segundo lugar na lista mundial em número total de mortes por covid-19, talvez superando o Brasil e ficando atrás apenas dos Estados Unidos.

Oficialmente, os números russos já são altos: em 11 de janeiro, o centro oficial de controle de covid-19 russo calculou haver um acumulado de 10,6 milhões de casos de covid-19 e 317,6 mil mortes.

Mas antes, em 30 de dezembro, a agência de notícias Reuters estimou, a partir de dados de excesso de mortalidade no país desde o início da pandemia, que o total de mortes pelo novo coronavírus chegaria a 658 mil - o dobro dos dados oficiais. E há quem acredite que esse número possa ser ainda maior (veja mais abaixo).

Com isso, o país ultrapassaria a marca de 620 mil mortes oficialmente registradas até o momento no Brasil, que só é superada em números oficiais de mortes pelos Estados Unidos. É bom lembrar, porém, que diversos especialistas apontam que a soma real de mortos por covid-19 no Brasil também provavelmente supera bastante a dos dados oficiais, devido a subnotificações ocorridas principalmente nos picos da pandemia.

Além disso, o Brasil vive atualmente um apagão de dados e uma escassez de testes de covid-19, que também mascaram o atual estágio da pandemia no país.

A Reuters usou como base as 835 mil mortes excedentes registradas na Rússia desde o início do surto de covid-19, em abril de 2020.

Esse excesso de mortes - ou seja, o quanto mais se morreu em um país, em comparação com os anos "típicos", de antes da pandemia do coronavírus - tem sido usado por estatísticos em diferentes países (também no Brasil) para estimar a subnotificação dos óbitos em meio à covid-19.

O pico de casos na Rússia ocorreu no último trimestre do ano passado e é atribuído ainda à variante delta, e agora as preocupações são com o avanço da ômicron.

Mas o que explica números tão altos e díspares no país que foi o primeiro do mundo a aprovar uma vacina contra a covid-19, ainda em agosto de 2020?

Resistência à vacina com características russas

A vacina Sputnik V foi anunciada com grande entusiasmo ainda no primeiro semestre da pandemia.

Em 11 de agosto de 2020, o presidente Vladimir Putin afirmou que seu país seria o primeiro a dar aval regulatório a um imunizante contra o coronavírus, depois de dois meses de testes em humanos, o que foi exaltado como símbolo da proeza científica de Moscou.

"Sei que (a vacina) funciona com muita eficiência, forma imunidade forte e, repito, passou em todos os testes necessários", afirmou Putin à época.

Alguns meses depois, o centro de pesquisas Gamaleya, responsável pela Sputnik V, informou que a vacina teria eficácia de 92%, sem efeitos colaterais inesperados - abrindo o caminho para uma "vacinação em massa". Mas muitos observadores externos, embora ressaltem que a vacina parece de fato ter boa qualidade, se queixaram da ausência de transparência na divulgação dos dados do imunizante.

Passado mais de um ano, a Sputnik V já é exportada para mais de 70 países (no Brasil, ela não recebeu o aval da Anvisa).

E, no entanto, apesar da disponibilidade de vacinas nacionais, menos de 50% dos russos estão plenamente vacinados, aponta a plataforma Our World in Data.

Em comparação, o Brasil, que começou sua campanha de vacinação com atraso, já vacinou com duas doses mais de 67% da população.

A lentidão russa se deve a uma resistência à imunização com características bem peculiares, não necessariamente igual aos focos "antivacina" vistos no Ocidente, segundo especialistas.

A tecnologia por trás da Sputnik V é sólida e seu preço internacional é competitivo, mas a forma pouco transparente como ela foi apresentada pelo governo russo acabou, inadvertidamente, desencorajando a população russa a tomar a vacina, avalia a pesquisadora americana Judy Twigg, professora na Universidade de Virgínia Commonwealth, especializada em saúde global e Rússia e Eurásia.

"Existe um sentimento antivacina na Rússia que, assim como no Ocidente, vem de muitas fontes: dos rumores, da pseudociência, dos médicos que espalham desinformação, tudo isso muito antes da covid-19. (Mas), sob Putin, há um segmento da população que não confia em nada que venha do governo - a ideia é de 'se o governo nos diz para fazer algo (como vacinar), é porque deve ser a coisa errada a fazer'", explica Twigg à BBC News Brasil.

"E há também a desconfiança quanto à Sputnik V em si, da ideia de que a Rússia não poderia ter criado algo eficiente nesse (curto) período de tempo. Muitos desconfiaram porque a vacina foi desenvolvida rapidamente, porque foram feitas alegações prematuras e exageradas a respeito da segurança e eficácia. Isso causou desconfiança", ela agrega.

Além disso, avalia a pesquisadora, o fato de o governo russo ter repetidamente criticado as vacinas produzidas no Ocidente acabou sendo contraproducente, porque gerou uma resistência ainda maior da população russa contra a imunização de modo geral.

O Serviço Russo da BBC explica que, em um país onde as pessoas não são autorizadas a protestar livremente, resistir à vacina tem sido visto por alguns como uma forma de se rebelar contra as autoridades.

Falhas na condução da pandemia

A questão das vacinas é crucial para explicar a alta de casos e mortes, mas não é a única.

Analistas e até mesmo locais afirmam que a comunicação e a estratégia de enfrentamento à covid-19 na Rússia foi errática e mais orientada à política, do que à ciência - com semelhanças em relação aos governos de Donald Trump nos EUA e Jair Bolsonaro no Brasil, avalia Judy Twigg.

Depois de um lockdown implementado no início da pandemia, a Rússia tem tido dificuldades em convencer parte importante de sua população a usar máscaras ou a aderir a medidas de isolamento social e de restrições de espaços e eventos a pessoas vacinadas.

O jornal Moscow Times explica que, durante o verão no Hemisfério Norte, a capital Moscou tentou colocar em prática um "passaporte" que determinava que apenas vacinados pudessem frequentar restaurantes. Diante da resistência desses estabelecimentos, porém, o programa foi abandonado.

Um projeto de lei estabelecendo um passaporte vacinal nacional via QR code acabou sendo arquivado em dezembro, depois de sofrer críticas de parte da opinião pública.

Em novembro, a agência Reuters entrevistou um paramédico da cidade de Oryol que contou que pacientes com covid-19 vinham tendo de esperar diversas horas para conseguirem ser atendidos por uma ambulância.

Dmitry Seregin opinou que a baixa taxa de vacinação em Oryol se devia a problemas na comunicação oficial sobre a vacinação. "Os comunicados oficiais trazem informações diferentes vindas das mesmas pessoas, o que faz com que o povo desconfie do Estado", disse o paramédico.

Para a pesquisadora americana Judy Twigg, "o governo priorizou a política à saúde durante a pandemia".

Em 2020, Twigg escreveu um artigo traçando paralelos entre a resposta à pandemia do então presidente dos EUA, Donald Trump, e a de Vladimir Putin.

"Ambos enfrentaram desafios claros a seu poder - o processo de impeachment no Congresso americano e a oposição à tentativa de Putin em mudar a Constituição e estender sua Presidência. E ambos escolheram minimizar a ameaça da covid-19 e achar que a tinham sob controle com restrições nas fronteiras e a voos logo no início", escreveu ela.

"Essas medidas pareciam rígidas no papel, mas se mostraram porosas na prática, ignorando a realidade de que a covid-19 já estava silenciosamente avançando sobre suas respectivas sociedades. Levou muito tempo para que ambos levassem a sério a testagem e outras respostas essenciais para estar à frente da pandemia."

Segundo Twigg, segue havendo poucos líderes russos, em âmbito local ou nacional, capazes de "de fato liderar nesta pandemia - comunicar com a população de modo eficiente, fazer o que precisa ser feito e convencer as pessoas a mudar seu comportamento e fazer os sacrifícios necessários. E usar máscaras não é um sacrifício tão grande assim", avalia.

Estatísticas sob suspeita

Por fim, existe a dificuldade em mensurar qual é de fato o tamanho do estrago causado pelo coronavírus na Rússia.

Os dados divulgados diariamente pelo centro de enfrentamento da covid-19 não batem com o excesso de mortes tornado público pela agência oficial estatística Rosstat (número que serviu de base para os cálculos da agência Reuters mencionados no início da reportagem).

E há suspeitas de que o excesso de mortes seja ainda maior do que o estimado pela Rosstat - e passe de 1 milhão.

Esse cálculo foi confirmado à BBC Rússia pelo demógrafo Alexey Raksha, que trabalhava na Rosstat e foi demitido da agência estatística em meados de 2020, poucos meses após tecer críticas à subnotificação nos dados de covid-19 apresentados ao público. Outros veículos independentes de mídia também confirmaram essas estatísticas.

"Há muita distorção de números, simplesmente porque ninguém quer ser responsabilizado por eles", pondera Judy Twigg, agregando que isso é comum aos países que foram da órbita soviética, "onde há uma cultura de controle vertical que persiste até hoje, na qual ninguém quer ser o portador de más notícias".

Além disso, diz a acadêmica, "em países autoritários (como é o caso da Rússia sob Putin), todos ficam de antena ligada tentando entender qual é a mensagem que devem passar adiante, e daí tentam adequar os números a isso, para se encaixar nessa mensagem".

A ameaça da ômicron

Tudo isso cria um complexo cenário para ser administrado por Vladimir Putin, prossegue Twigg, num momento em que o presidente russo tenta acumular capital político por estar sob pressão do Ocidente, participando ativamente de confrontos no Cazaquistão e em tensão crescente com a Ucrânia.

Putin tem instado a população a se vacinar e disse, nos últimos dias, que a Rússia tem pouco tempo para se preparar contra uma nova onda provocada pela ômicron, que já avança - especialmente sobre os russos não vacinados.

O jornal Moscow Times informou nesta semana que as infecções com a ômicron já triplicaram no final do ano e podem passar de 100 mil por dia, segundo autoridades de saúde.

O instituto Gamaleya, por sua vez, afirmou que a Sputnik V é eficaz contra a ômicron.

O Instituto de Métricas e Avaliação de Saúde, da Universidade de Washington (EUA), que faz modelagens para prever cenários da pandemia, acredita que a Rússia enfrentará uma curva levemente ascendente de casos até maio, com possíveis novos picos de mortes entre fevereiro e março.

Um ponto importante, porém, é que "o sistema de saúde russo, depois da crise inicial, se mostrou muitíssimo eficiente. O país mostrou que é capaz de deslocar recursos onde fosse necessário. Então ele é capaz de lidar com isso, mas estará sob grande estresse", avalia Judy Twigg.

"Considerando o padrão da ômicron, é possível que a maior parte das infecções seja leve ou moderada, mas vemos nos EUA que as taxas de internação entre pessoas não vacinadas são muito altas. Então tem muito espaço para a ômicron avançar e colocar enorme pressão sobre o sistema de saúde."

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