Comunidade transexual indiana se rebela contra lei que pretende protegê-la
David Asta Alares.
Nova Délhi, 29 dez (EFE).- A comunidade transexual na Índia, que sofre uma notável discriminação social apesar de fazer parte de uma milenar tradição no país, se rebelou contra uma lei que pretende protegê-la e diminuir o estigma.
Quatro anos depois de o Tribunal Supremo reconhecer em uma sentença de 2014 as pessoas que não se enxergam com o sexo com o qual foram assinaladas na hora do nascimento como representantes de um "terceiro gênero", a Câmara dos Deputados aprovou recentemente a Lei de Pessoas Transexuais (Proteção de Direitos) de 2016, que ainda deverá passar pelo Senado.
A legislação, apresentada pelo governo para acabar com o estigma da comunidade, é "discriminatória", de acordo com Rudrani Chettri, ativista transexual e fundadora da associação Mitr Trust.
"Não parece uma lei de proteção, mas sim uma violação dos nossos direitos como seres humanos. O que mais me chocou foi que vão formar um comitê de revisão que decidirá por nós se somos ou não transexuais", disse Chettri à Agência Efe, em seu escritório em Nova Délhi, repleto de cartazes sobre o tema.
O processo administrativo para obter uma carteira de identidade envolve enviar um pedido a um tribunal local e exigir a elaboração de cinco relatórios, entre eles o de um médico, um psicólogo e um funcionário do governo.
Um trâmite exclusivo para as pessoas trans e que Chettri teme que, em um país como a Índia, onde o serviço público não é fundamentalmente conhecido pela agilidade, todo o processo leve mais de um ano.
Prova de que os legisladores não têm nem ideia de quem são os transexuais nem os seus problemas, de acordo com ela, é e própria definição. A lei define uma pessoa transexual como alguém que é "(i) nem totalmente feminina nem masculina; ou (ii) uma combinação de feminino e masculino; ou (iii) nem feminina nem masculina".
"Que significa isso? Não entendemos a definição. Eu, como uma mulher trans, não quero ser chamada de homem. Eu me identifico como mulher. Que mal há nisso?", questionou a ativista.
No último dia 28, um grande protesto aconteceu em Nova Délhi, em Jantar Mantar, com dezenas de transexuais de toda a Índia mostrando rejeição unânime à legislação.
"Até agora, foram feitas 27 mudanças na lei, mas ainda há um grande problema que é o fato de que continua sendo negado o direito de se autodeclarar", disse à Efe Sonam Chisti, transexual que veio de Uttar Pradesh.
Conforme o último censo da Índia, elaborado em 2011, o país tem 1,25 bilhão de habitantes e 500 mil pessoas trans. No Brasil, por exemplo, não há dados oficiais sobre a população trans, e a Defensoria Pública da União (DPU) enviou em maio de 2018 uma recomendação ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para incluir no Censo 2020 questionamentos sobre identidade de gênero e de orientação sexual dos entrevistados.
O grupo sofre uma discriminação visível, em algumas ocasiões com ameaças, apesar de ser antiga no país a tradição das hijras, transexuais ou travestis que fazem parte de uma comunidade com um guru, e abençoam recém-nascidos e casamentos. As hijras também são reconhecidas em Nepal, Paquistão e Bangladesh.
"Tentamos levar uma vida digna, mas a maioria dos transexuais na Índia realiza trabalhos sexuais ou pede esmola", explicou à Efe a ativista Grace Banu, do estado de Tamil Nadu.
Segundo ela, geralmente transexuais são excluídos da sociedade desde pequenos e acabam sendo obrigados a viver em comunidades próprias, sem acesso à educação e sem o apoio da família biológica.
Banu ainda lembrou que a lei indiana criminaliza a mendicidade, mas também não oferece caminhos para que encontrem um trabalho, e é por isso que muitos deles defendem o estabelecimento de um número mínimo de vagas reservadas em empregos públicos e universidades.
A prática de reservar trabalhos e lugares na universidade é garantida pela Constituição de 1950, com um sistema de cotas idealizado para retificar a enorme e milenar discriminação que os elos mais baixos do hierárquico sistema de castas hindus e os grupos tribais tinham sofrido.
"As cotas são o nosso direito básico", reivindicou Banu, destacando que, após a sentença do Supremo de 2014, um parlamentar apresentou uma proposta de lei que incluía essa disposição e que tinha o apoio da comunidade transexual.
Aquela proposta foi retirada da apresentada em 2016 pelo governo e que ainda precisa receber o sinal verde do Senado, onde os transexuais esperam que seja modificada ou recusada.
Chettri disse estar esperançosa, em boa parte graças às decisões judiciais progressivas recentes, como a descriminalização da homossexualidade, depois que o Supremo colocou fim a uma legislação da época colonial que punia "atos contra a natureza". EFE
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