Médicos cubanos "desertores" se tornam refugiados sem emprego no Brasil
Laura López.
São Paulo, 4 fev (EFE).- Chamados de "desertores" em Cuba e sem permissão para exercer sua profissão no Brasil, esta é a realidade de aproximadamente 2.500 médicos que não voltaram à ilha após o fim do programa Mais Médicos e lutam hoje para sair do purgatório no qual foram colocados por um desencontro precipitado entre Havana e o presidente Jair Bolsonaro.
Em novembro de 2018, Bolsonaro, que acabara de se eleger presidente do Brasil, disse que os profissionais cubanos do Mais Médicos eram "escravos" de uma "ditadura", palavras duras que provocaram uma resposta rápida do governo de Cuba: a ordem de encerrar o programa.
Essa série de fatos provocou uma mudança repentina na rotina de 8.332 profissionais, dos quais a maioria decidiu retornar à ilha e ficar por lá, enquanto outros voltaram por temor a represálias, mas acabaram retornando ao Brasil, e um terceiro grupo nunca retornou para Cuba, os chamados "desertores".
A situação transformou totalmente a vida do médico cubano Yennier Escobar, de 33 anos, que contou para a Agência Efe sua experiência na Unidade Básica de Saúde Nova Bonsucesso, em Guarulhos, na Grande São Paulo, onde ele já tem um substituto: "Eu amava trabalhar neste lugar, me limito a não vir muito porque tenho sentimentos ambivalentes".
O dia 14 de novembro deveria ser um dos melhores de sua vida pois, depois de dois anos tentando, Yennier tinha conseguido realizar o "sonho" de trazer sua família ao Brasil, mas o médico recebeu uma ligação lhe comunicando que aquele seria seu último dia de trabalho porque deveria ser repatriado por causa de "conflitos políticos".
Yennier retornou a seu país antes do fim de 2018 para visitar o restante de sua família, mas depois voltou ao Brasil, o que lhe permitiu evitar a condição de "desertor", dada àqueles que nunca retornaram e agora só poderão fazê-lo dentro de oito anos.
"Essa é a palavra que eles usam, 'desertores', mas nós não somos; somos cubanos livres", afirmou o médico.
Para o governo brasileiro, Yennier e alguns de seus compatriotas agora são "refugiados", um protocolo ao qual recorreram para não perderem a condição de residentes e que lhes permitirá obter uma carteira de trabalho, um procedimento que leva tempo para ser concluído, enquanto não recebem nenhuma renda.
Existe um resquício de esperança para ele e os mais de 2.500 médicos expulsos do programa Mais Médicos que ficaram no Brasil: voltar ao programa. Porém, para isso, deverão esperar no final de uma longa fila, pois a convocação lançada pelo governo para cobrir as vagas ociosas dá prioridade aos médicos brasileiros.
Apesar de as inscrições iniciais terem superado o número de vagas, 8.517, ainda existem 800 praças que não foram ocupadas porque parte dos escolhidos desistiu por estarem em áreas de difícil acesso ou carentes de recursos.
O programa Mais Médicos foi criado em 2013 pela então presidente Dilma Rousseff para garantir atendimento nessas áreas.
Os médicos cubanos que ficaram no Brasil anseiam obter uma dessas 800 vagas quando o concurso finalmente for aberto para eles, o que acontecerá em 18 de fevereiro "se não voltarem a adiá-lo", explicou o médico.
Caso não consiga retornar ao programa, Yennier está disposto a trabalhar "no que aparecer, qualquer coisa que seja legal", e seu sonho no longo prazo é fazer o exame Revalida para que seu diploma seja reconhecido no Brasil, o que lhe permitirá concorrer em igualdade de condições com os brasileiros. A prova, no entanto, não acontece desde 2017.
Yennier se define como "um homem da ciência, e não da política", mas acredita que as declarações de Bolsonaro "abriram os olhos do mundo" sobre a situação dos médicos cubanos.
O médico se refere às condições do programa, segundo as quais os profissionais recebiam apenas 25% do salário, cerca de US$ 800, e o restante era retido pelo governo de Cuba.
Por enquanto, Yennier não contempla voltar a seu país e pede "humanidade" ao governo brasileiro: "Acredito que tratamos bem os brasileiros", opinou o médico, uma afirmação que pode ser confirmada através dos depoimentos daqueles que foram seus pacientes.
Isabel Dias carrega em seus braços sua neta Isabelle Vitória, que aos três anos luta contra uma doença rara, atrofia muscular espinhal de tipo 1.
Quando a pequena tinha apenas seis meses e não conseguia se movimentar, alguns profissionais se limitaram a dizer que ela não sobreviveria.
Foi Yennier que, quando a recebeu, rejeitou tal possibilidade, fez um diagnóstico preliminar e encaminhou a paciente ao especialista que agora, dois anos e meio depois, continua tratando dela: "Precisamos de um ser humano que não trabalhe só por dinheiro e sim pelas pessoas", opinou a avó de Isabelle.
"Mas ele vai voltar... você vai voltar, não é?", perguntou Isabel a Yennier, sorrindo com a menina adormecida em seus braços. EFE
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