ESTREIA-Um tribunal e um cachorro são o centro do 2o volume de "As Mil e Uma Noites"
SÃO PAULO (Reuters) - Na seção paralela da Quinzena dos Realizadores em Cannes 2015, a grande atração foi a ambiciosa trilogia do diretor português Miguel Gomes, “As Mil e uma Noites”.
Misto de ficção e documentário, a obra não é uma adaptação dos famosos relatos e sim um mergulho profundo na severa crise econômica de Portugal, intercalando depoimentos e personagens reais e irônicas e corrosivas fábulas em torno de situações absurdas, tendo uma certa Xerazade (Crista Alfaiate) como narradora, tal como ocorre nos livros originais.
Falando após a sessão do primeiro volume em Cannes, no ano passado, o diretor Gomes explicou que uma equipe de jornalistas pesquisou os personagens e situações apresentadas, porque uma de suas intenções era traçar “um retrato preciso do que acontece em Portugal”.
Ao mesmo tempo, valeu-se de uma espécie de “esconde-esconde” entre realidade e ficção, inspirando-se em “As Mil e uma Noites”, que ele descreveu como “o livro mais delirante já escrito”, para dar uma forma ficcional a essa crise. Ele entende como justa esta mistura já que para ele o cinema lida com “sonho, desejo e narrativa”.
E as situações reais com que se depara seu país, a seu ver, muitas vezes atingem as raias do absurdo, necessitando-se, portanto, das ferramentas da ficção para dar conta de descrevê-las. Em todo caso, sua ousadia deu certo.
A segunda parte da ambiciosa obra de Gomes, “As Mil e Uma Noites – Volume 2, O Desolado”, mostra-se ainda melhor do que a primeira, lançada no Brasil no final de 2015 e voltando ao cartaz agora.
Uma extensa crônica dos problemas assolando Portugal, empobrecido por um plano de austeridade, imposto por um governo sem sensibilidade social – como sustentam os letreiros iniciais de cada parte da trilogia de Gomes -, o segundo capítulo abre-se com a história de Simão sem tripas (o estreante Chico Chapas, um ex-soldado e comerciante de pássaros), um criminoso foragido.
Outras histórias se desenrolam num tribunal, presidido por uma juíza (Luísa Cruz) – um segmento que permite uma original superposição de casos e pontos de vista, além de um humor impagável – e também num condomínio suburbano, em que se sucedem histórias de fracasso, tristeza, sonho e também a posse de um cachorro por vários moradores.
O cão, que se chama Lucky, na verdade, é um “ator” experiente, tendo aparecido em diversas produções espanholas, como “Sombras de Goya”, de Milos Forman.
Em que pese toda a ironia de Gomes, é visível que ele quer falar sério. O que está fazendo em “As Mil e Uma Noites” – cuja terceira parte está sendo lançada simultaneamente – é uma crônica de tempos sombrios, carregada de um humanismo melancólico que os portugueses dominam muito bem.
(Por Neusa Barbosa, do Cineweb)
* As opiniões expressas são responsabilidade do Cineweb
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