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'Mãe, quando vem a caixa de comida?': crise traumatiza crianças com violência e fome na Venezuela

Uma das filhas de Yennifer Padron e Victor Cordova brinca com a água em uma panela na casa que eles vivem na favela Petare, em Caracas - Andres Martinez Casares/Reuters
Uma das filhas de Yennifer Padron e Victor Cordova brinca com a água em uma panela na casa que eles vivem na favela Petare, em Caracas Imagem: Andres Martinez Casares/Reuters

Alexandra Ulmer

Em Caracas

10/10/2017 09h01

Os irmãos Jeremías, 8, e Victoria, 3, estavam de pijama e se preparavam para dormir quando uma bomba de gás lacrimogêneo atravessou a janela da cozinha, quebrando copos. Oficiais da Guarda Nacional, a polícia militarizada da Venezuela, estavam invadindo o prédio em que eles vivem nos arredores de Caracas em busca de ativistas opositores que protestavam há meses contra o presidente Nicolás Maduro.

Em meio aos gritos e insultos aos vizinhos, os oficiais ocuparam o edifício e prenderam dezenas de jovens, segundo contou Gabriela, a mãe das crianças. Ela e o marido, Yorth, esconderam as crianças no armário do quarto, enquanto os cômodos eram ocupados por uma densa nuvem de gás.

Os oficiais não chegaram a entrar em sua casa, mas a família assustada não conseguiu dormir naquela noite –o apartamento permaneceu com o odor das bombas por dias. Mas a pior parte foi que o incidente traumatizou as crianças.

Jeremias começou a chorar e pediu para deixar a Venezuela. Sua irmã mais nova, que não tinha medo do escuro, ficava aterrorizada toda vez que ouvia um barulho alto, como a queda de um objeto, a passagem de caminhão ou um trovão.

"Ela dizia 'a guarda está nos atacando' e chorava", disse Gabriela, dona de casa de 30 anos com formação de enfermeira. "Foi o gatilho para dizer: precisamos tirar as crianças daqui, porque o pior para elas será o dano psicológico". Um mês depois do episódio, a família vendeu tudo o que tinha, encheu três malas e deixou o país em um ônibus com US$ 250 nos bolsos, unindo-se ao milhares de venezuelanos que fugiram.

Por medo de represálias, Gabriela pediu que seu sobrenome e o seu novo país de residência não fossem revelados.

"Mamãe, quando vem a caixa de comida?"

A falta de alimentos acessíveis --um quilo de arroz custa cerca de 20% do salário mínimo mensal-- está colocando mais pressão sobre as crianças em famílias de baixa renda.

Alguns pais não têm escolha senão levar seus filhos para as longas filas para comprar comida; outra opção ainda pior é colocá-los para trabalhar ou mendigar. Eles dizem que entre as brincadeiras para crianças estão paródias sobre como encontrar comida no supermercado.

Nos casos mais dramáticos, as crianças sofrem de desnutrição e outras doenças graves.

Yennifer - Andres Martinez Casares/Reuters - Andres Martinez Casares/Reuters
Yennifer Padron beija sua bebê na casa em que vivem na favela Petare, em Caracas
Imagem: Andres Martinez Casares/Reuters

O garçom Víctor Córdova, que vive no maior subúrbio de Caracas, o Petare, se divide em três empregos, enquanto sua mulher Yennifer cuida das três filhas e do filho pequeno em sua pequena casa.

As meninas, às vezes, acordam os pais no meio da noite pedindo comida e passam a maior parte do dia perguntando quando as caixas de alimentos básicos subsidiadas pelo governo chegarão.

"Sempre perguntam: 'Mamãe, quando chega a caixa? Na caixa tem leite?' Não sai da cabeça delas", disse Yennifer, 26, balançando o pequeno Aaron. "Digo para elas não se preocuparem com isso, apenas com os estudos. Mas elas são como esponjas, absorvem tudo muito rapidamente".

Uma minoria de pais, horrorizada com o colapso do petróleo venezuelano, tenta esconder a crise de seus filhos.

A contadora Suset Gutiérrez diz aos seus dois filhos, com quem vive na empobrecida Ciudad Guayana, que os tiros dos delinquentes que eles escutam durante a noite são fogos de artifício de festas ou pneus de automóveis que explodem.

"Isso varia porque eles perguntam sobre estas festas", diz Gutierrez, 47. As crianças também a questionam sobre a falta de leite ou macarrão. "Tive que inventar que é porque as vacas ficaram doentes ou que, pelas chuvas, não há trigo em outros países".

Fora da Venezuela, Gabriela e seu marido, que trabalhavam como administrador de negócios, encontraram trabalho vendendo flores e café. A mãe diz que notou a melhoria no sustento de seus filhos. Assim que a família tiver uma maior estabilidade econômica, Gabriela afirma que buscará ajuda psicológica para as crianças.

"Eles estão felizes. O maior me diz: olhe, existem aqui doces!", ela conta, rindo. "Mas se você fala sobre a possibilidade de retornar para a Venezuela, ele começa a chorar".

arepa - Andres Martinez Casares/Reuters - Andres Martinez Casares/Reuters
Uma das filhas de Yennifer Padron e Victor Cordova come uma arepa na casa da família, que vive na favela Petare, em Caracas
Imagem: Andres Martinez Casares/Reuters
Impacto psicológico permanente

O caso das crianças expõe o impacto psicológico duradouro que a crise econômica e política do país sul-americano terá na infância e na adolescência de seus cidadãos.

A Venezuela, que possui as maiores reservas de petróleo do mundo, está mergulhada em uma crise que se aprofundou nos últimos anos, enquanto Maduro --o sucessor do líder socialista Hugo Chávez— pressiona a oposição em meio a uma paralisia financeira que os economistas dizem que é uma consequência dos controles governamentais.

Os vários meses de protestos liderados pela oposição, na demanda de eleições presidenciais antecipadas e ajuda humanitária contra a escassez, interromperam o ano letivo e mantiveram muitas crianças em suas casas. E a recessão aumentou a falta de produtos como leite e fraldas, enquanto a crescente inflação tornou os brinquedos e uniformes escolares fora do alcance de muitas famílias.

Não há dados recentes para analisar os efeitos psicológicos da crise nas crianças venezuelanas, mas professores, psicólogos, ativistas de direitos humanos e dezenas de pais entrevistados pela Reuters sugerem que esta pode ser uma carga pesada para os pequenos.

"Temos crianças muito pequenas que estão tendo que pensar sobre como sobreviver", disse o psicólogo Abel Saraiba, da organização de direitos de crianças Cecodap. O profissional disse que quase metade de seus 50 pacientes apresenta sintomas relacionados à crise.

As crianças têm um risco maior de desenvolver ansiedade, agressividade e depressão, e também podem ter dificuldades em se relacionar com seus colegas porque percebem o mundo exterior como um lugar hostil. Isso poderia se tornar outro obstáculo no desenvolvimento e na recuperação do país.