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Proposta de Damares de abstinência sexual de jovens virá como complementar, mas especialistas veem riscos

11.out.2019 - A ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, durante o evento CPAC Brasil (Conferência de Ação Política Conservadora), realizado em São Paulo - MARCELO CHELLO/CJPRESS/ESTADÃO CONTEÚDO
11.out.2019 - A ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, durante o evento CPAC Brasil (Conferência de Ação Política Conservadora), realizado em São Paulo Imagem: MARCELO CHELLO/CJPRESS/ESTADÃO CONTEÚDO

30/01/2020 15h33

Por Lisandra Paraguassu

BRASÍLIA (Reuters) — A polêmica criada com a defesa do adiamento do início da atividade sexual entre os jovens tem feito a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, repetir que essa será apenas uma política complementar, mas ainda assim esbarra em críticas e sua eficiência é contestada.

A proposta feita por Damares, que é pastora evangélica, encontra resistência dentro do próprio governo — mais especificamente no Ministério da Saúde, diretamente responsável pelas políticas de prevenção à gravidez e planejamento familiar. Mesmo criticada, a ideia, que pode ser confundida com pregações religiosas pela abstinência sexual, tem eco no público mais conservador que elegeu Bolsonaro.

A ministra nega que exista na proposta um viés religioso, mesmo que uma de suas principais inspirações venha da associação cristã Eu Escolhi Esperar, tocada pelo pastor Nelson Júnior, que tem como política central o incentivo a abstinência sexual até o casamento.

O tema da abstinência — ou como prefere o ministério, do adiamento da iniciação sexual — não estará na campanha de prevenção à gravidez precoce que o governo lança no próximo dia 3. Essa campanha, no mês do Carnaval, será centrada no uso de preservativos, de acordo com uma fonte que teve acesso ao material. Seu lema será "tudo tem seu tempo" e vai mostrar pessoas que foram pais adolescentes.

A proposta, no entanto, fará parte das políticas de governo preparadas pelo Ministério da Família, no chamado "Plano Nacional de Prevenção ao Risco Sexual Precoce". Uma nota técnica sobre o assunto, que foi preparada pela assessoria da ministra Damares, está em discussão no ministério e também com a pasta da Saúde. De acordo com uma fonte, a intenção é que faça parte de uma política permanente de governo.

Damares vem trabalhando no tema há alguns meses. No início de dezembro, a ministra organizou um seminário em Brasília sobre gravidez na adolescência. Os principais palestrantes foram a CEO da organização norte-americana Ascend, Mary Anne Mosack — responsável por promover cursos para qualificar educadores a incentivarem a ausência da vida sexual para os jovens —, além do pastor Nelson Junior.

No entanto, com a reação à proposta — inclusive do Ministério da Saúde — Damares já diminuiu sua ênfase na abstinência como política central, pelo menos em entrevistas. A tônica do ministério é uma defesa do adiamento do início da atividade sexual como uma alternativa, mas não a única opção.

"Não tem nenhuma guerra contra os outros métodos. Só queremos acrescentar aos outros métodos uma outra iniciativa, que é retardar o início da relação sexual no Brasil", defendeu a ministra em uma entrevista à rádio Jovem Pan. "Tudo o que a gente quer é uma conversa com os adolescentes."

A Reuters tentou uma entrevista com Damares, mas sua assessoria afirmou que a ministra estava sem agenda disponível.

A ministra diz que espera que uma política desse tipo convença alguns adolescentes a adiar o início da vida sexual. Segundo Damares, na média, a vida sexual no Brasil começa com 12,9 anos no caso dos meninos e 13,7 anos das meninas. Para aqueles que preferem não esperar, segundo a ministra, se apresentariam outros métodos.

Em suas redes sociais, nesta semana, Damares reforçou que a proposta seria "uma política complementar, não a única ou a principal".

No entanto, a nota técnica do ministério apresenta outra versão. De acordo com o jornal O Globo, o texto — confirmado pela Reuters com uma fonte que teve acesso a ele — sustenta que ensinar métodos contraceptivos "normaliza o sexo adolescente".

No Ministério da Saúde a proposta de Damares é vista com ressalvas contundentes. A visão é que a ideia de abstinência pode até coexistir, mas nunca substituir programas de prevenção e planejamento familiar. Damares, no entanto, encontra respaldo na ala mais conservadora do governo.

OUTRA REALIDADE

O temor de especialistas é que, mesmo com os freios colocados pelos profissionais de saúde, a ideia da abstinência acabe suplantando outras medidas.

"Eu vejo isso com muito temor. A gente está em um momento em que as pessoas estão muito radicalizadas para um lado e outro e pode ter sim um risco aí de encontrar Estados e municípios que podem adotar isso como política", disse à Reuters a professora Marilúcia Picanço, chefe do Serviço de Medicina do Adolescente da Faculdade de Medicina da Universidade de Brasília.

Picanço, que há 20 anos desenvolve um trabalho de atendimento a mães e pais adolescentes no Hospital Universitário da UnB, afirma que são inúmeros os fatores associados a uma vida sexual precoce e uma consequente gravidez, mas o principal deles é a educação, ou a falta de acesso a ela.

"Esses jovens estão fora da escola, sem acesso à saúde, sem acesso à informação, a métodos contraceptivos, sem direitos. Um programa de abstinência não vai resolver, não conversa com a realidade dessas crianças. O governo faria mais em investir em políticas educacionais que dêem uma perspectiva a essas jovens", afirmou.

Segundo a professora, uma menina de 12 anos, um menino de 11 anos, claramente não teriam idade para iniciar uma vida sexual.

"Mas estão iniciando. E é claro que uma criança dessa idade não tem maturidade para isso, nem para tomar essa decisão. Então é preciso trabalhar a escola, a família, a comunidade", defendeu. "O adolescente tem o direito de conhecer seu corpo, de pensar, de decidir. Mas isso não acontece num passe de mágica. As opções vêm da educação, de pensar em ter uma perspectiva de vida."

Damares citou em entrevista estudos que embasariam o suposto sucesso de uma política de abstinência. A ministra chegou a citar políticas do tipo usadas nos Estados Unidos como exemplo, além de pesquisas no Chile e um programa implementado em Uganda para combater a infecção por HIV.

No entanto, revisões feitas de estudos sobre políticas de combate à gravidez na adolescência e infecção de jovens por HIV mostram que programas exclusivamente baseados em abstinência não funcionam.

Três artigos médicos que revisaram estudos com programas de abstinência sexual não conseguiram encontrar resultados concretos nesse tipo de política. Um deles, publicado em 2007 no British Medical Journal, analisou 13 estudos dos quais participaram 15.940 jovens norte-americanos.

A conclusão foi de que "nenhum programa afetou a incidência de sexo vaginal não protegido, número de parceiros, uso de preservativo ou iniciação sexual".

Um dos mais recentes, publicado em 2016 na revista médica Health Psychology Review e assinado por quatro pesquisadores das Escolas de Medicina da Universidade de Exeter e da Universidade de Bristol, ambas no Reino Unido, analisou 37 revisões de 224 estudos baseados em intervenções feitas em escolas, incluindo cinco tipos diferentes de modelos.

A principal conclusão foi de que "intervenções sobre saúde sexual e relacionamentos que focam exclusivamente na abstinência sexual não são efetivas em mudar o comportamento dos estudantes. Programas completos sobre riscos sexuais e prevenção de HIV foram consistentemente efetivos em mudar conhecimento, atitudes e habilidades (dos estudantes)."

FALTA DE INFORMAÇÃO

De acordo com os dados levantados pela Organização Panamericana de Saúde e o Fundo das Nações Unidas para a Infância, a taxa de gravidez adolescente (entre 15 e 19 anos) no Brasil está em torno de 65 por mil habitantes, enquanto a média mundial é de 46 por mil. No Brasil, 18% dos bebês nascem de mães com idade entre 10 e 19 anos.

Segundo o Ministério da Saúde, 66% das gestações em adolescentes são indesejadas, decorrentes de falta de informação, falta de apoio e de redes familiares.

Para a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, os programas usados até hoje não deram certo.

"A ministra é louca, mas o que está aí não está dando certo. Então me deixa por favor fazer um experimento. Só quero dizer 'espere um pouquinho'", disse em entrevista à rádio Jovem Pan.