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Assistência sexual a pessoas com deficiência: por que questão é tabu na França e pouco debatida no Brasil

06/03/2020 15h26

A legalização da assistência sexual para pessoas com deficiência voltou recentemente a ser debatida na França. Na época da Conferência Nacional das Pessoas com Deficiência, no início de fevereiro, a secretária de Estado encarregada desta questão, Sophie Cluzel, se manifestou a favor do "acompanhamento íntimo, afetivo e sexual" desta minoria e acionou o Comitê Consultativo Nacional de Ética da França, reacendendo a polêmica, que não é nova no país. Mas o assunto não divide apenas os franceses. No Brasil, a questão da sexualidade das pessoas com deficiência está longe de encontrar um consenso.

"As pessoas com deficiência simplesmente não têm espaço dentro dos debates sobre sexualidade no Brasil. A própria sociedade as exclui e não cogita essa possibilidade. Infantilizam e deslegitimam a pessoa com deficiência como um ser sexualmente ativo", afirma Leandrinha Du Art, brasileira ativista dos movimentos de pessoas com deficiência e LBGTQI+.

Por isso, segundo a pesquisadora em Filosofia e graduanda em Teologia, a questão da assistência sexual a pessoas com deficiência não é discutida fora do círculo da minoria - que está longe de ser pouco numerosa. O último Censo demográfico realizado no Brasil, em 2010, apontou que 46 milhões de pessoas têm algum tipo de deficiência física ou intelectual.

"O movimento de pessoas com deficiência está pautado e congelado nas décadas de 1960, 1970 e 1980, quando se discutia corrimão e rampa. Eu não discordo que acessibilidade e mobilidade sejam pautas. Mas é preciso também considerar a importância de discutir outras questões, como a sexualidade", defende Leandrinha.

O sociólogo Marco Gavério acredita que o fato que a sexualidade da pessoa com deficiência ainda ser tabu tem a vantagem de incitar o debate. "Isso não produz apenas conhecimento, mas também práticas de intervenção e diretrizes médico-pedagógicas. Essa sexualidade vem sendo construída a partir de espaços difusos desde o século 19. Ao longo do século 20 e 21, se aglutinaram e vêm se modificando. Não estamos negando a proibição e a moralidade em torno do sexo, mas é essa moralidade que produz positivamente as discussões em torno da sexualidade", defende.

No entanto, Gavério lamenta que a discussão da assistência sexual a pessoas com deficiência esteja restrita a pequenos grupos, essencialmente acadêmicos. "Definitivamente, essa não é uma realidade concreta de pauta política das pessoas com deficiência no Brasil", observa.

Segundo o sociólogo, essa situação tem como consequência a grande dependência das pessoas com deficiência de suas famílias, devido, segundo ele, à falta de acessibilidade estrutural no Brasil. "Isso gera um não-repertório sexual na vida desses indivíduos, porque são os familiares os responsáveis pelos cuidados íntimos dessas pessoas. E aí o que acontece é que as pessoas com deficiência não conseguem impor discussões sobre o que desejam e muitas vezes nem sabem o que desejam, porque o desejo não é uma coisa inata: a gente aprende o que é desejar e como acessar o desejo. Com essa dependência, não há condições fáceis de participar de circuitos onde as relações eróticas e afetivas podem se transformar em relações sexuais", afirma.

Pautas assistencialistas do governo Bolsonaro

Além da ausência de políticas públicas relativas à sexualidade das pessoas com deficiência, Leandrinha Du Art percebe que a evolução de outras pautas mais gerais sobre a minoria no atual governo Bolsonaro é especialmente falha e conservadora. "Esse governo pauta pessoas com deficiência de forma assistencialista, barata e burra. Eles acham que política pública para pessoas com deficiência se faz com esmola", critica.

A ativista exemplifica a situação e aponta reações contraditórias dentro do próprio movimento das pessoas com deficiência. "Muita gente aplaude a primeira-dama que traduziu o discurso da posse presidencial para libras. Meses depois, o Conselho da Pessoa com Deficiência é extinto e parece que ninguém viu isso acontecer, ninguém reage. Aí Bolsonaro resolve dar uma pensão para mães que têm crianças com microcefalia e o governo volta a ser ovacionado", diz.

Leandrinha também percebe que a lenta evolução das pautas das pessoas com deficiência se deve às outras prioridades da esquerda brasileira atualmente, como o feminismo negro. "Essa luta é centenária, mas Marielle Franco precisou morrer para que o feminismo negro ganhasse espaço no Brasil, para que representantes negras começassem a ser eleitas. No caso das pessoas com deficiência talvez a gente vá precisar de um outro 'boom' na história como nos anos 1960, quando elas iam com suas macas e suas cadeiras de rodas caindo aos pedaços para a Avenida Paulista protestar. Essa foi a primeira vez que o Brasil olhou para as pessoas com deficiência como ativistas", ressalta.

Redes sociais ajudam ou prejudicam o debate?

Para Leandrinha Du Art, o acesso às redes sociais beneficiou o empoderamento desta minoria. "Há um debate dentro do espaço intelectual da internet, gerando um ativismo importante. Hoje, por exemplo, temos militantes de 16 anos e pessoas com deficiência dando um verdadeiro espetáculo em questões como inclusão, sexualidade, educação", salienta.

Ela explica que o desenvolvimento desse espaço de debate através das redes uniu os defensores da causa. "Hoje eu já não me sinto sozinha nessa luta como eu me sentia anos atrás. Vejo que hoje não tem mais volta: as pessoas com deficiência já saíram de seus quartos. Elas não estão mais só preocupadas com uma rampa na rua delas, mas com os olhares das pessoas e com o direito ao respeito como cidadãos. Hoje estamos discutindo planificação familiar, isso é lindo e só é possível graças a essa nova militância surgindo", comemora.

Já Gavério é mais cético sobre os resultados do ativismo nas redes sociais. "Eu não vejo a recepção desses influencers digitais com deficiência com uma potência para gerar pautas políticas que se tornem políticas públicas. Quando um indivíduo se coloca como influenciador ou influenciadora digital em um esquema de representação de um grupo heterogêneo, a partir de suas percepções e de suas experiências individuais, passa a entrar na própria lógica das redes sociais de produção de seguidores", aponta.

Segundo ele, as redes sociais têm como consequência a reprodução de uma realidade individualizada, que pode ser contraproducente para o debate como um todo. "Essas pessoas se tornam marcas de representatividade e estão dentro dessa lógica de mercado em que a identidade social é tomada a partir de um indivíduo que se considera representante de uma dimensão muito heterogênea de pessoas. Então, acredito que essas pessoas têm pouquíssima capacidade de mobilizar grandes coletivos através das redes sociais", conclui.

Dimensão política

Na França, os direitos das pessoas com deficiência mobilizam a esfera política, o que faz com que questões sobre a sexualidade desta minoria sejam mais ativamente discutidas atualmente, ainda que sob o espectro da polêmica. A associação APF France Handicap felicita a atitude da secretária de Estado Sophie Cluzel de reabrir o debate sobre a assistência sexual na França. "É corajoso de sua parte porque é um assunto sensível, que causa divisões e que não é simples de abordar", afirma da administradora da organização, Pascale Ribes.

Ribes está confiante de que ativistas e políticos estejam conscientes da importância da questão, que continua na ilegalidade, após anos de debate. "Até agora não há nenhuma solução para essas pessoas que têm direito a uma vida sexual. Muitas delas não podem ter acesso a seus próprios corpos. Existem inclusive casais com deficiência que são privados da sexualidade por falta dessa assistência", aponta.

A presidente da Associação para a Promoção do Acompanhamento Sexual (Appas), Jill Prévôt Nuss, se diz surpresa com o anúncio de Cluzel. "Não fomos consultados, nem sabíamos que ela tinha essa posição. Ficamos perplexos porque ela disse que iria ver nos países vizinhos como acontecem as formações de assistentes sexuais, enquanto nós existimos desde 2013 em completa transparência, mas em total ilegalidade. Então, estamos esperando a sequência e se o Comitê Consultativo Nacional de Ética também vai nos contatar para ter nosso parecer sobre a questão", declarou à RFI.

Jill Prévôt Nuss explica que, atualmente, a lei francesa continua considerando a assistência sexual como prostituição. "Não temos problema com isso, nem as pessoas que realizam essa atividade. Como a prostituição não é enquadradra por lei, nem proibida na França, ela pode acontecer livremente. Mas, eu, como presidente da associação, que coloco os assistentes sexuais em contato com as pessoas com deficiência sou considerada como 'proxeneta'. Ou seja, eu corro o risco de ser presa", afirma.

Quem contrata os serviços de um assistente sexual também pode ser condenado a pagar ? 1.500 e, em caso de reincidência, também ir para a prisão. "Por isso, hoje o que pedimos do governo é a revisão desta lei, para que nem nós, nem as pessoas com deficiência possam ser penalizadas. Ou seja, o debate sobre a assistência sexual, para nós, precisa envolver a discussão sobre outras questões, como a descriminalização da prostituição em geral", reitera.

Assistência sexual é prostituição?

Cybèle é profissional do sexo e formada pela Appas como assistente sexual. À RFI, ela rejeita a ideia que haja diferença entre as duas atividades. "Sei que há muitas pessoas que estão mobilizadas hoje para que a assistência sexual seja legalizada e eles vão dizer que essa profissão é muito diferente da prostituição. As pessoas que têm esse pensamento têm também uma ideia da prostituição muito estigmatizada e limitada. No entanto, em meu trabalho de 'escort' com pessoas 'válidas', percebo muitos comportamentos similares aos das pessoas com deficiência", aponta.

Entre as discriminações que vivencia, Cybèle menciona a supervalorização, por parte de algumas pessoas, de seu trabalho de assistente sexual - "um insulto" à sexualidade dos indivíduos com deficiência, avalia. "Ou há um preconceito extremamente positivo de pessoas que me consideram como um exemplo de ser humano por ajudar 'as coitadinhas das pessoas com deficiência', me colocando num patamar superior. Ou há pessoas que tentam me atacar afirmando que a assistência sexual é a mesma coisa que a prostituição. E eu digo: 'sim e daí, qual é o problema?'".

Cybèle defende que a sexualidade das pessoas com deficiência é complexa como a de qualquer indivíduo, porque, segundo ela "o ser humano é complexo". "Há pessoas com deficiência que eu atendo e que procuram somente satisfação sexual, ou seja, os serviços de uma prostituta. Mas há outras pessoas com deficiência que buscam afeto e que precisam apenas de conexão. Depende realmente muito da vida, da experiência, da sexualidade de cada um."

A assistente sexual relata que a situação de cada cliente que atende é única. "É muito difícil falar da sexualidade das pessoas com deficiência, como se isso pudesse ser resumido e classificado para todos. Não existe 'uma sexualidade'. É como se tentássemos resumir de um só jeito a sexualidade das pessoas que não tem deficiência. É como se a minha sexualidade e a sua pudessem ser as mesmas", conclui.

Legislação sobre assistentes sexuais na Europa

A Holanda é pioneira em matéria de assistentes sexuais a pessoas com deficiência. No país, o serviço foi legalizado na década de 1980. Na Alemanha, a atividade é legalizada, mas limitada pela proibição de carícias ou penetração. Em outros países europeus onde a prostituição foi descriminalizada, como a Dinamarca e a Suíça, o assistente sexual tem o mesmo status que um profissional do sexo.

O mesmo ocorre na França, onde a prostituição é ilegal. No entanto, o serviço é prestado e, mesmo na ilegalidade, profissionais chegam a ser formados por instituições como a Appas (Associação Para a Promoção do Acompanhamento Sexual).

A lei francesa prevê que terceiros que organizem encontros sexuais para uma pessoa com deficiência física possam ser acusados de proxenetismo, correndo o risco de uma condenação de cinco anos de prisão e o pagamento de multa de ? 150 mil.