Topo

Esse conteúdo é antigo

Desmond Tutu: África do Sul se despede de arcebispo que lutou contra o regime do apartheid

Arcebispo da Igreja Anglicana Desmond Tutu discursa no Centro de Memória Nelson Mandela, em Johanesburgo (África do Sul) - Mujahid Safodien/Reuters
Arcebispo da Igreja Anglicana Desmond Tutu discursa no Centro de Memória Nelson Mandela, em Johanesburgo (África do Sul) Imagem: Mujahid Safodien/Reuters

Vinícius Assis

Da RFI, na Cidade do Cabo

30/12/2021 06h43Atualizada em 30/12/2021 06h57

A partir de hoje, o corpo do arcebispo emérito anglicano, aclamado como um herói nacional, ficará exposto para visitação pública na catedral St. George, erguido na região central da Cidade do Cabo. Serão dois dias de velório antes da cerimônia de cremação.

O funeral será no sábado (1º) e as cinzas permanecerão na mesma igreja, que tem recebido flores e visitantes para assinar os livros de condolências colocados do lado de fora desde domingo, quando foi anunciada a morte de Desmond Tutu. Ele completou 90 anos em outubro e tinha câncer de próstata desde 1997.

O empenho do religioso na luta contra o regime de segregação racial chamado de apartheid, que vigorou no país de 1948 até 1991, rendeu ao filho de um professor e uma cozinheira o Nobel da Paz, em 1984. Aliás, dos quatro sul-africanos vencedores desse prêmio o arcebispo era o único ainda vivo.

Ao longo desta semana estão acontecendo cerimônias em diferentes cidades do país em homenagem ao homem "que carregou o peso da liderança com compaixão, dignidade, humildade e bom humor", nas palavras do presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa, durante um pronunciamento na TV.

Ausência de Dalai Lama

Dalai Lama era um grande amigo de Desmond Tutu, mas não participará do funeral marcado para sábado. Desta vez o líder tibetano sequer pediu visto para entrar na África do Sul, de acordo com a imprensa local, depois de já ter recebido nos últimos anos vários "nãos" do governo sul-africano, que não permite a entrada do Dalai Lama no país para evitar atrito com a China, um dos principais parceiros da África do Sul.

No domingo a catedral St. George recebeu uma iluminação especial da cor das vestimentas que o arcebispo sempre usava publicamente, o roxo. Um dos que estiveram no local ontem, por volta das 17h (horário local), foi o embaixador dos Estados Unidos no país, Todd Haskel. Ele deixou um buquê de flores brancas na grade, ao lado de uma grande foto do arcebispo, assinou o livro de condolências e seguiu de carro para o City Hall, sala municipal de apresentações artísticas que fica a cerca de 600 metros da catedral.

Uma cerimônia em homenagem a Desmond Tutu foi realizada na noite anterior no City Hall, um dos prédios históricos mais importantes da Cidade do Cabo. Autoridades, familiares e diferentes lideranças religiosas estavam entre os convidados presentes.

Homenagens com restrições

O país observa regras de isolamento nacional obrigatório, que - mesmo no seu nível mais brando - ainda limita aglomerações em locais fechados e abertos. Organizadores disseram que a quantidade de participantes do evento não ultrapassou metade da capacidade do local, seguindo protocolos devidos.

Não foram ocupadas todas as cadeiras do auditório. A recomendação era deixar um assento vazio entre um convidado e outro. A maioria respeitou este distanciamento. Parentes do vencedor do Nobel da Paz, como a filha Mpho Tutu, estavam nas primeiras fileiras.

A reportagem acompanhou a cerimônia, que durou quase 2h30. Começou com a apresentação da cantora sul-africana Zolani Mahola, que ficou mundialmente conhecida ao gravar com a cantora Shakira a música "waka waka", hino da Copa do Mundo de futebol que em 2010 aconteceu na África do Sul. No palco, outros artistas, de diferentes etnias, celebraram Desmond Tutu com muita música. Um telão ao fundo exibia frases e fotos do arcebispo, sempre sorridente.

Foi uma noite em que se exaltou o amor ao próximo, um dos legados de Desmond Tutu. O apresentador do evento lembrou que se o religioso estivesse presente diria a cada um dos convidados "você está lindo". Então, pediu que todos ali presentes olhassem para quem estivesse mais perto e repetissem a frase. Representantes de diferentes religiões também usaram o microfone para deixar suas mensagens.

Do lado de fora, em frente à imponente construção, na principal praça pública da cidade, chamada de Grand Parade, a cerimônia podia ser vista de um telão. Uma emissora de TV chegou a montar um estúdio na praça, onde também havia mais jornalistas (locais e internacionais). O trânsito em ruas próximas foi bloqueado. Mas o público era pequeno. Apenas dezenas de pessoas espalhadas pela praça assistiam ao evento pelo telão.

Proximidade com Mandela

Se não fosse a pandemia, certamente multidões de sul-africanos teriam desembarcado na Cidade do Cabo para o funeral de um dos grandes heróis do país, como em 2013 toda a África do Sul se despediu de Nelson Mandela com a grandiosidade que ele merecia.

A propósito, o presidente-executivo da Fundação Nelson Mandela, Sello Hatang, lembrou que o ex-presidente e o arcebispo emérito tinham uma relação muito próxima. Foi na casa de Tutu, no bairro de Bishopscourt, na Cidade do Cabo, que Mandela passou a primeira noite livre, depois de 27 anos de prisão.

Após ter sido eleito o primeiro presidente negro da África do Sul, em 1994, Mandela nomeou Desmond Tutu presidente da Comissão de Reconciliação e Verdade. O objetivo era promover a integração racial no país e investigar crimes praticados contra quem não era branco durante o governo racista.

"Os legados dos dois (Mandela e Tutu) se cruzam e são poderosos recursos para o trabalho de justiça social", disse Sello Hatang.

Graça Machel, viúva de Nelson Mandela, divulgou um comunicado em que lamentou a perda de quem chamou de um irmão, amigo leal e seu líder espiritual. "Ele (Desmond Tutu) magistralmente usou sua posição como clérigo para mobilizar sul-africanos, africanos e a comunidade global contra as brutalidades e imoralidade do governo do apartheid", lembrou.

Ela reconheceu que o processo de reconciliação não acabou e que alguns jovens ainda duvidam da eficácia da Comissão de Reconciliação e Verdade. Aproveitou para dizer que ainda tem esperança de que os jovens de hoje, que não sofreram as brutalidades do apartheid na pele, cresçam para compreender os desafios históricos que o arcebispo e outros da geração dele enfrentaram, e como seguiram em frente com o melhor de suas habilidades sob circunstâncias complexas.

Por fim, Graça Machel deixou uma mensagem aos jovens do continente africano. "Está em suas mãos agora cultivar sua própria liderança notável para enfrentar os desafios de seu tempo. Vocês têm sua própria missão histórica em mãos. Inspirem-se na vida do arcebispo para esculpir seu próprio legado".