Racismo está presente também em famílias inter-raciais, mostra pesquisadora brasileira
Se o amor é uma construção social, o racismo também é. Para provar essa hipótese, a psicóloga social especialista em estudos de branquitude Lia Vainer Schucman entrevistou diversas famílias inter-raciais e deixou que elas contassem suas histórias. Dessa pesquisa resultou o livro "Famílias inter-raciais, tensões entre cor e amor", sobre relações familiares, mas sobretudo sobre o racismo estrutural.
Se o amor é uma construção social, o racismo também é. Para provar essa hipótese, a psicóloga social especialista em estudos de branquitude Lia Vainer Schucman entrevistou diversas famílias inter-raciais e deixou que elas contassem suas histórias. Dessa pesquisa resultou o livro "Famílias inter-raciais, tensões entre cor e amor", sobre relações familiares, mas sobretudo sobre o racismo estrutural.
Lia Schucman está na França para uma série de encontros e debates em torno do livro, recém-lançado no país pelas edições Ana Caona.
"Eu tinha uma hipótese que, na verdade, a família era um lugar de conforto, que ajudava as pessoas a combaterem o racismo encontrado no mundo. Achava que o primeiro encontro radical com o racismo era na escola. No entanto, essa pesquisa provou que é na família", ela diz, explicando que o racismo estrutural é uma ideologia que estrutura o imaginário das pessoas e as relações entre elas. "Se é estrutural, é estruturante também", completa.
A pesquisadora observou que questões vindas da ideologia do embranquecimento, que considera o branco como melhor, permeiam também as relações familiares e determinam as posições de seus membros.
"Tem famílias em que o pai fala: 'a filha que nasceu mais clarinha foi em quem eu apostei mais'. Ou seja, a própria distribuição de afetos, no Brasil, e a distribuição de oportunidades estão ligadas ao fenótipo", explica.
A psicóloga social trabalha há alguns anos sobre o tema famílias inter-raciais. O interesse surgiu durante conversas em conferências sobre seu livro anterior, "Entre o encardido, o branco e o branquíssimo: branquitude, hierarquia e poder". "Assim que eu acabava as conferências, as pessoas, muitas delas de famílias inter-raciais, chegavam para mim e falavam que tinham ficado muito emocionadas com o livro e a palestra, porque tinham sofrido racismo dentro da própria família", ela conta.
A autora explica que os estudos críticos de branquitude aparecem no final do século passado, nos Estados Unidos, com o intuito de entender o que acontece quando o branco é incluído na categoria raça e não como norma ou como "humano universal". "Porque se apenas pensamos a raça como sendo para negros ou indígenas, colocamos uma ideia de exótico, de anormalidade nos negros, indígenas e o padrão no branco", explica. Estes estudos "apontam que a branquitude é uma posição de poder que sujeitos brancos ocupam e ganham privilégios materiais e simbólicos ao ocupar esse lugar", analisa.
Racismo como hierarquia
O livro mostra que o fato de ser casada e ter filhos negros não faz a pessoa ser menos racista, algo bastante representativo do Brasil para a autora.
"Faz sentido se a gente pensar que o racismo é uma hierarquia que vai valorizando algumas coisas como melhores, outras como piores. Então, não é porque as relações são de amor que estas não têm hierarquia. Por exemplo, não faz sentido ouvir uma pessoa dizer: 'eu não sou machista, sou casado com uma mulher'". "Uma pessoa ama uma mulher, mas acha que ela tem que trabalhar mais que ele, tem que cuidar mais dos filhos. Ou seja, tem uma hierarquia", exemplifica. "As relações afetivas não estão fora da hierarquia, nem de gênero, nem de classe", completa.
Mas para o livro, a pesquisadora trabalhava com a hipótese de que o amor e o afeto suspenderiam o racismo ou criassem um espaço menos violento. "Infelizmente, a hipótese caiu por terra", admite.
De acordo com Lia Schucman, quase todas as relações familiares que analisou incluíam violência contra os membros com marcas fenotípicas próximas do que as pessoas consideram como negras. Os entrevistados pela psicóloga narraram casos em que usaram pregadores de roupa no nariz, começaram a alisar os cabelos desde muito cedo ou até usaram água sanitária para conseguir clarear a pele ou alcançarem os traços considerados brancos.
Algumas pessoas entrevistadas começaram a ter consciência da própria negritude e da violência que sofreram a partir do momento que saíram do núcleo familiar. "A juventude é um ponto muito crucial quando essas pessoas encontram um outro mundo", diz. "O movimento social negro das universidades é muito importante", com ações afirmativas e coletivos negros com negritude positivada.
Ela conta que muitos só têm consciência da negritude de fato na universidade ou quando saem de casa. "O Brasil é tão interessante que você vê muitas dessas pessoas de famílias inter-raciais falando: 'eu me descobri negro com 20 anos, com 30 anos'. Isso não acontece nas famílias negras".
Raça e gênero
As relações mudam também de acordo com o sexo da pessoa negra, devido aos estereótipos construídos em relação a gênero e raça desde a época da escravidão, explica a pesquisadora. Esses estereótipos "colocaram o homem branco como a norma de sexualidade, a mulher branca como frágil, casta, que precisa ser protegida e a mulher negra como hipersexualizada e o homem negro como viril e violento", compara.
Em sua opinião, o estereótipo é mantido para que a mulher branca não tenha relações com o homem negro, porque o racismo precisa do "controle do útero feminino".
Lia explica que o racismo incide de maneira diferente em mulheres e em homens. No caso das mulheres, está muito ligado à autoestima, por não se acharem dentro do padrão de beleza imposto socialmente. "A beleza no Ocidente é marcada por uma supremacia branca", afirma.
Já o racismo que incide nos homens é de muita violência policial. Além disso, os meninos negros são levados a acreditar que não têm aptidão para o estudo e sim para a força física. Por isso, eles abandonam mais a escola que os brancos e são menos estimulados para investir no estudo.
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