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"Eu me sinto privilegiado" por exibir "Retratos Fantasmas" em Cannes, diz Kleber Mendonça Filho

20/05/2023 15h43

A estreia de "Retratos Fantasmas", de Kleber Mendonça Filho, foi aplaudida com entusiasmo no Festival de Cannes. O documentário narra, de um ponto de vista pessoal, a transformação de Recife, cidade natal do cineasta, enfocando as salas tradicionais de cinema que aos poucos foram fechadas e substituídas por supermercados ou igrejas evangélicas. Em entrevista à RFI em Cannes, o diretor disse que "a cultura mostra que o Brasil está recuperando sua dignidade".

Adriana Brandão, enviada especial a Cannes

"Retratos Fantasmas" foi exibido fora da competição, na mostra Sessões Especiais. Ao apresentar o filme, o diretor-geral do festival, Thierry Frémaux, lembrou a participação constante e histórica do cinema brasileiro em Cannes e saudou a volta do Brasil ao Festival.

Kleber Mendonça Filho saudou a presença na plateia da secretária do Audiovisual do Brasil, Joelma Gonzaga, que ele considera emblemática da mudança da política cultural e do apoio à cinematografia nacional do governo Lula.

"Retratos Fantasmas" é o quinto longa-metragem do cineasta e o quarto a ser apresentado em Cannes. Em 2019, ele venceu o Prêmio do Júri por Bacurau e, este ano, apesar de participar fora da competição oficial, concorre ao Olho de Ouro (L'Oeil d'or), que recompensa o melhor documentário selecionado em todas as mostras.

O filme é uma espécie de memória afetiva do cineasta dos últimos 30 anos de Recife. O longa é construído em três partes. Na primeira, Kleber Mendonça Filho lembra do apartamento familiar, cenário de vários de seus filmes.

Na segunda e terceira, utiliza imagens, inclusive sequências que fez para curtas-metragens há mais de 30 anos, para falar da transformação do centro histórico de Recife e do fim da maioria das tradicionais salas de cinema da cidade. Desses "templos do cinema", que encantaram milhões de espectadores no século 20, resta apenas o Cine São Luiz.

Em Cannes, o cineasta pernambucano falou com à RFI depois da exibição de "Retratos Fantasmas". Leia a entrevista completa:

RFI: Como está sendo essa volta a Cannes, quatro anos depois de "Bacurau"?

Kleber Mendonça Filho: Eu estou me divertindo muito. Eu me sinto um sortudo e um privilegiado de ter um espaço aqui para exibir "Retratos Fantasmas", que é um filme muito pessoal, realizado ao longo de 7 anos. O filme é feito a partir de arquivos pessoais, arquivos de outras pessoas e arquivos públicos no Brasil. Eu também filmei uma parte do filme para o próprio filme. Estar aqui com um filme numa Sessão Especial na seleção oficial é muito especial para mim. Eu me sinto lisonjeado pela seleção. 

Apesar de estar fora da competição, você concorre ao "Olho de Ouro" que recompensa um dos documentários selecionado em qualquer mostra. Tem alguma expectativa?

Eu nunca tenho nenhuma expectativa para prêmio. Eu acho que é sempre bom entender que os filmes funcionam de maneiras misteriosas, quase como uma bactéria. As bactérias se desenvolvem dependendo de temperatura, de química, de física. Eu nunca sei exatamente o que vai acontecer com o filme.

Você não é o único brasileiro em Cannes. Cinco outros filmes do Brasil foram selecionados em várias mostras. Você saldou a presença da secretária Nacional do Audiovisual, Joelma Gonzaga, em Cannes. A política cultural do novo governo gera uma nova esperança ?

A política atual do governo é uma política que consta na nossa Constituição no Brasil, e prevê que o país ofereça meios para que a cultura exista e seja produzida. Um investimento em cultura é um investimento inteligente de qualquer país. E o Brasil é um país, naturalmente, produtor de cultura.

Essa cultura, ela precisa ser apoiada, porque nem toda cultura tem o perfil comercial. Se a gente deixar a cultura apenas na mão do mercado, não é  inteligente. Acho até que a cultura feita de maneira orgânica, pode vir a ser um produto de mercado. Meus filmes não são feitos com a intenção de serem produtos de mercado, mas eles têm se comportado de maneira comercial. "Bacurau" teve quase 1 milhão de ingressos vendidos no Brasil, e "Aquarius" quase meio milhão de ingressos vendidos no Brasil. Em geral, são filmes que representaram o país fora do Brasil no exterior.

E com bastante sucesso de crítica... 

Com bastante sucesso de crítica e um certo prestígio internacional. E esse ano a gente tem um grupo de realizadoras e realizadores mostrando seus filmes no Brasil. Isso não deve ser visto como algo extraordinário, mas algo normal. Assim é que o Brasil tem que ser representado, daqui para mais. Eu acho que depois desses 7 anos que nós tivemos, realmente sombrios e terríveis, a gente está voltando a ser um país digno, né? A cultura mostra que a gente está recuperando essa dignidade. 

Depois de se impor como diretor de ficções, por que voltar ao documentário?

Não foi planejado. Os filmes, eles surgem de forma muito natural. Você vai desenvolvendo uma ideia. E aos poucos, você entende que aquela ideia vai ser desenvolvida. De forma que as pessoas vão dizer que é documentário. O "Bacurau" começou a parecendo um western, mas tinha elementos da ficção científica. Foi assim que o filme se manifestou, disse "eu quero ser assim e é assim que eu vou ser". "Retratos Fantamas" é um filme que está sendo muito descrito como documentário, mas eu acho que o documentário não fecha a questão. Acho que ele é um pouco mais do que isso, mas eu estou totalmente confortável com a descrição, porque é um relato. São histórias contadas por mim e muitas dessas histórias são amparadas pelo uso de arquivo. Este é um filme que eu estava querendo fazer há muito tempo.

Em um dado momento, você afirma que "as ficções são os melhores documentários". O contrário também é válido? Penso principalmente na última cena do filme...

É, eu gosto daquela frase. Quando eu fiz "O Som ao redor", uma ficção com atores e cenas, houve muitas reações na crítica e no público de que o filme era um documentário, né? Eu acho que se você assiste "O Som ao redor", é um filme onde o registro é muito real. Eu filmei apartamentos e casas brasileiros, a rua, e tudo é muito verdadeiro. Eu realmente acredito que quando você vê "Taxi Driver" do Scorsese, existe um documentário dentro do "Taxi Driver" sobre Nova Iorque em 1975, quando o filme foi rodado. Agora, sobre o documentário ser uma ficção, eu também acredito da mesma forma. Há um reflexo, como um espelho, na verdade dessa frases.

A cidade de Recife e sua transformação são temáticas recorrentes de outros de seus filmes, como um "Som ao Redor" ou "Aquarius" e continua presente.

Apenas porque eu sou do Recife e eu tenho uma relação umbilical com a cidade. Eu lembro, por exemplo, do filme do Spike Lee, chamado "25th Hour", que é feito logo depois do 11 de setembro. É o primeiro filme e talvez o único filme, a mostrar os buracos do World Trade Center. É um filme de ficção, mas se você quiser ver um registro dos buracos, ele está registrado no filme do Spike Lee.

Você pode pegar uma câmera fotográfica e fazer uma foto, mas se você faz um filme, tem uma história, 2 atores e eles estão conversando, você vê a conversa e você vê também a cidade. Para mim, isso é muito interessante. Acompanhar o desenvolvimento, a destruição ou a transformação de uma cidade, para mim é algo muito dramático.

Há dez anos  eu fui em Nantes pela primeira vez. Quando eu cheguei lá, eu me lembrei imediatamente de Jacques Demy. Isso para mim é muito impactante. Não só porque eu tinha o "Katorza" (sala de cinema) na minha frente e eu tinha o "Katorza" em "Lola". Tudo isso para mim é muito bonito no cinema. 

Parece que você foi cobrado nas redes por seguidores por ter "abandonado", com esse documentário, questões extremamente brasileiras que caracterizavam seus longas precedentes. É verdade?

Não foi exatamente assim. A pessoa é fã de cinema de gênero e acha que eu deveria continuar fazendo "Bacurau" 2, 3, 4... Acho que ficou decepcionada quando viu que era um documentário sobre salas de cinema, mas não  exatamente apenas sobre salas de cinema. 

Por que decidiu fazer em três partes?

Geralmente isso vem na montagem. Esse filme não teve roteiro, na verdade. E na montagem, me pareceu que era instigante dividir o filme em 3 partes, e sempre surpreendentes. A primeira parte chega em um momento que você não espera. A segunda, eu acho que ela é muito bem-vinda porque eu passei muito tempo ali, na minha casa. E a terceira parte chega em um momento também um pouco inesperado. Gosto dessa estrutura, um pouco literária. Mas continuo achando que não segue os 3 atos dramáticos que Hollywood sugere. Não tem nada a ver com isso, que tem mais a ver com você ver que é a segunda parte e a terceira parte. 

Em que momento do processo decidiu por esse tratamento pessoal e a narrativa na primeira pessoa?

Eu fiz um curta-metragem chamado a "Copa do Mundo" no Recife, que está no Vimeo. Foi a primeira vez que usei minha voz para narrar. Foi uma quebra de gelo muito grande porque eu nunca achei que eu seria capaz de narrar. Mas aí, eu fiz, gostei e me senti bem fazendo a narração. Para esse filme, nunca duvidei que eu seria o narrador e que faria a narração. O grande desafio era escrever um texto bom, de que eu gostasse, porque um texto ruim é impossível de você utilizar para narrar. 

Ao serem destruídos, esses templos da sétima arte se transformam em fantasmas e também em matéria e ideia de cinema?

Qualquer tema que lhe interesse você consegue desenvolver e pode ser uma história de cinema. Eu acho que ruínas são grandes cenários de história. Ruínas me interessam muito e ruínas de cinemas são muito fascinantes, porque cinemas juntam pessoas. Eles atravessam tempos e um dia são decretados obsoletos. Então, para mim, é sempre uma reserva enorme de histórias, o cinema, os cinemas antigos e os cinemas extintos.

Para mim, foi muito interessante ver "Retratos" depois de ter assistido ao documentário sobre o Nelson Pereira dos Santos que também foi selecionado este ano. De alguma maneira os dois filmes dialogam. Concorda?

Eu não vi ainda o filme sobre Nelson, mas eu sou um grande admirador de Nelson Pereira dos Santos. Nelson é um dos cineastas que me ensinaram a fazer filmes e a fazer filmes sobre o Brasil. A visão de Brasil dele sempre me tocou, me impressionou. Eu cheguei a entrevistá-lo como crítico. Na época dele, ele estava nesse festival apresentando os filmes dele. E agora eu estou aqui apresentando meus filmes. Eu não estou de maneira nenhuma me comparando a ele, não é isso. Mas é muito bom que eu siga algum tipo de caminho que ele já percorreu, não é? Isso para mim é bem incrível. Coloco as coisas em perspectiva, de uma certa forma. 

Você já está desenvolvendo seu próximo projeto. Volta à ficção. Poderia nos falar um pouco?

O novo projeto se chama "O Agente Secreto" é será feito com Wagner Moura. Se passa nos anos 70, no Recife. É um thriller, muito emotivo, sobre o Brasil. 

E parece que o livro sai antes do filme...

Eu estou querendo lançar o roteiro em livro. Mas é uma ideia que precisa ser amadurecida ainda. Eu gosto muito da ideia de lançar o roteiro como uma obra independente. Mas não sei, preciso entender ainda se isso é possível. Eu gosto muito dessa ideia porque eu gosto muito do roteiro que tem 166 páginas. Ele está pronto e eu gosto muito desse roteiro. A previsão de filmagem é 2024.

Então, talvez você volte a Cannes de novo em 2025?

Vamos ver, pode ser.