UOL Investiga bônus: cartas da ex de Jair e investigações sobre a rachadinha
O podcast UOL Investiga traz hoje (5) um episódio bônus, com atualizações da primeira temporada, "A Vida Secreta de Jair", que teve revelações sobre o envolvimento direto do presidente da República, Jair Bolsonaro, no esquema ilegal de entrega de salários de assessores quando exerceu seguidos mandatos de deputado federal. Este novo episódio —que você pode ouvir no arquivo acima, no Youtube do UOL e em todas as plataformas de podcast— anuncia também a segunda temporada do programa, que estará disponível em breve.
No episódio bônus, a colunista do UOL Juliana Dal Piva conta o que aconteceu após as revelações da primeira temporada e como estão as investigações sobre o clã por conta da rachadinha. A jornalista também revela cartas de Ana Cristina Siqueira Valle, ex-mulher do presidente Jair Bolsonaro, escritas em 2007, em que ela fala de dinheiro, de bens e da briga por Carlos Bolsonaro (ouça no arquivo acima a partir de 36:19).
Esse processo de separação é importante, porque é quando começam a aparecer problemas nas declarações de bens de Bolsonaro ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral). À Justiça, por exemplo, Cristina disse que o Bolsonaro tinha uma renda de mais de R$ 100 mil por mês. Só não disse de onde vinha todo esse dinheiro.
Cristina foi procurada durante duas semanas para falar das cartas e dos episódios. Inicialmente, não retornou aos contatos. Depois, ao ser localizada em uma atividade de campanha no Distrito Federal, ela disse que nunca havia escrito cartas e que não reconhecia sua letra nas imagens mostradas pela reportagem (dois conhecidos de Cristina e três peritos grafotécnicos confirmaram que a letra é mesmo dela).
Você pode ouvir UOL Investiga em plataformas como Spotify, Apple Podcasts, Google Podcasts, Amazon Music e Youtube. Abaixo, você confere o roteiro do episódio bônus.
"A Vida Secreta de Jair"
EPISÓDIO BÔNUS
JULIANA DAL PIVA: Desde as primeiras horas da manhã, o dia 5 de julho de 2021 foi agitado na imprensa e no mundo político do Brasil.
TRECHO DO JORNAL NACIONAL DE 5/7/2021: "A divulgação de mensagens de áudio supostamente de uma ex-cunhada do presidente Bolsonaro levou um partido da oposição a acionar a Procuradoria-Geral da República. Por causa de uma reportagem do portal UOL, o PSOL quer que a PGR investigue a suspeita de prática de rachadinha pelo então deputado federal Jair Bolsonaro."
TRECHO DE JORNAL DA BAND DE 5/7/2021: "A fisiculturista Andrea Siqueira Valle, ex-cunhada do presidente, afirma que Bolsonaro demitiu o irmão dela porque ele se recusou a devolver a maior parte do salário como assessor."
TRECHO DA CNN EM 5/7/2021: "O relator da CPI, o senador Renan Calheiros, anunciou pelas redes sociais que vai pedir a convocação da ex-cunhada do presidente Bolsonaro para depor na comissão."
SENADOR ALESSANDRO VIEIRA DURANTE O UOL NEWS DE 6/7/2021: "Os fatos são gravíssimos e precisam de uma apuração rápida e muito transparente. O Senado tem condições de fazer essa apuração."
JULIANA DAL PIVA: As revelações da ex-cunhada do presidente Jair Bolsonaro, a fisiculturista Andrea Siqueira Valle, sacudiram o Brasil naquele dia.
E é por isso que eu voltei aqui. Para contar para você o que aconteceu depois que eu te mostrei neste podcast as gravações que apontaram o envolvimento direto do presidente Jair Bolsonaro num esquema de corrupção. Isso aconteceu no gabinete dele na época da Câmara dos Deputados.
Eu sou Juliana Dal Piva, e esse é um episódio bônus do UOL Investiga: A Vida Secreta de Jair.
Primeiro, obrigada! Eu e a equipe do podcast recebemos mensagens de gente que gostou muito do trabalho e até pediu mais.
E agora eu já posso contar para você que estamos preparando uma segunda temporada do podcast sobre as histórias do clã Bolsonaro. Em breve, ele vai chegar pra você.
Antes de começar a nova temporada, eu vou te atualizar sobre como estão as investigações sobre o clã por conta do esquema ilegal de entrega de salários, a chamada rachadinha.
Inclusive vou te mostrar trechos inéditos de cartas escritas pela Ana Cristina Siqueira Valle na época em que ela se separou do Bolsonaro.
Nos textos, a Cristina fala das brigas por dinheiro e por conta do Carlos, o 02 como o Bolsonaro chama, que é vereador e era com quem ela trabalhava.
ENTREVISTA DE JULIANA DAL PIVA COM ANA CRISTINA VALLE
JULIANA DAL PIVA: "Você vai contar sobre o que que te marcou quando você conheceu o Bolsonaro, que que foi a principal coisa que te marcou nesse livro?"
ANA CRISTINA VALLE: "Vou contar tudo. O ruim e o bom."
JULIANA DAL PIVA: Até agora, pouco mais de um ano depois dessa entrevista, a Cristina ainda não terminou de escrever esse livro.
A Cristina é uma personagem central dessa história e, por isso, eu vou falar muito dela nesse episódio. Inclusive, porque boa parte da família dela também aparece nas investigações sobre os gabinetes do clã Bolsonaro.
Lembra dos irmãos da Cristina, os ex-cunhados do presidente? O André e a Andrea? Eles também apareceram na primeira temporada. A Andrea admitiu que entregava 90% do salário dela quando constou como assessora do Flávio na Alerj e ainda citou a história do André, o irmão dela.
ANDREA SIQUEIRA VALLE: "E o André dava muito problema aí, porque o André nunca devolvia o dinheiro certo que tinha que ser devolvido, entendeu? Tinha que devolver 6 mil, o André devolvia 2, 3. Foi um tempão assim, até que o Jair pegou e falou: 'Ó, chega, pode tirar ele, porque ele nunca me devolve o dinheiro certo'."
"Não é pouca coisa que eu sei, não. É muita coisa que eu posso ferrar a vida do Flávio, posso ferrar a vida do Jair, posso ferrar a vida da Cristina. Eu sei é muita coisa, filho. Entendeu? Então é por isso que eles têm medo aí e manda eu ficar quietinha, não sei o quê, tal. É esse negócio aí."
JULIANA DAL PIVA: Os áudios - junto com os dados da quebra de sigilo da Andrea - comprovaram os crimes do clã Bolsonaro. E muita coisa aconteceu com eles nos dias seguintes à publicação do podcast. Como você ouviu no início, o senador Renan Calheiros queria chamar a Andrea pra depor e o senador Alessandro Vieira tentou criar a CPI da Rachadinha.
E os dois parlamentares tentaram fazer isso várias vezes nas semanas seguintes. Só que nem o senador Renan ou senador Alessandro conseguiu apoio suficiente. Nem para levar a Andrea para depor em Brasília, nem para abrir uma investigação específica sobre o gabinete do Bolsonaro na época em que ele era deputado.
A PGR, que é a Procuradoria-Geral da República, abriu uma apuração preliminar e até hoje a gente não sabe direito o que foi feito. Tá tudo parado. O procurador-geral Augusto Aras entende que só pode investigar o presidente depois que acabar o mandato.
Mas o que a lei prevê é outra coisa: o Cláudio Fonteles, que foi também procurador-geral da República, me explicou que o presidente não pode ser processado durante o mandato. Na prática, isso significa denunciar o Bolsonaro por algum crime que ele cometeu antes de ser eleito presidente. O Michel Temer e a Dilma Rousseff, por exemplo, foram investigados durante o mandato sobre coisas que aconteceram com eles antes de eles chegarem à Presidência.
E, enquanto eu gravo este episódio, dois meses antes das eleições presidenciais de 2022, a gente ainda não sabe se o Bolsonaro vai ficar até janeiro de 2023 ou mais quatro anos.
A questão é que o Aras não investiga muita coisa sobre o Bolsonaro. Interferência na Polícia Federal, propina na compra de vacinas, responsabilidade nas mortes por covid e muitas outras investigações. Nenhum desses casos andou.
Mas, se a PGR não fez o papel dela, o trabalho da imprensa continua.
Dentro da casa da Cristina, na semana em que o podcast foi publicado, os áudios caíram como uma bomba na família Siqueira Valle. A Andrea tá morando em Juiz de Fora, lá em Minas Gerais, e se fechou em casa para fugir da imprensa.
Já o André tinha se mudado para Volta Redonda, no interior do Rio. A cidade fica bem perto de Resende, onde vive o restante dos Siqueira Valle e onde o André casou em 2018.
CLIMA DO CASAMENTO DO ANDRÉ SIQUEIRA VALLE
"Torço demais para que os dois sejam muito felizes. A Anne é uma pessoa maravilhosa. Perfeita para ele."
"Eu amo muito vocês. Nem parece que eu tô saindo com meus tios. Tá parecendo que eu tô saindo com meus amigos. Desejar já muitas felicidades, paz e amor para vocês..."
JULIANA DAL PIVA: Voltando. Depois que as gravações foram publicadas, a Cristina chamou os irmãos para passar uns dias em Brasília e fugir dos jornalistas. Só o André aceitou. E lá ele ficou escondido um tempo, coisa de uma semana.
A Cristina e os irmãos tavam tentando, de algum jeito, controlar aquela situação depois que os áudios da Andrea viralizaram. As gravações mostraram claramente as confissões de que eles eram funcionários fantasmas e entregavam os salários que recebiam na Câmara ou na Alerj. E eles tinham receio da repercussão disso no Judiciário.
Mas o que eles não sabiam é que as coisas estavam longe do controle de todos eles. A investigação sobre o Jair Bolsonaro e os cunhados podia não evoluir em Brasília, na PGR. Só que no Ministério Público do Rio de Janeiro, apesar de muitos problemas e alguma lentidão, a história caminhava. Como a Cristina, o André e a Andrea também tinham sido funcionários do Carlos Bolsonaro, então todos eles acabaram alvo dos promotores do Rio.
TRECHO DA CNN DE 31/8/2021: "Informação importante que acaba de chegar. É o seguinte: a Justiça do Rio de Janeiro quebrou os sigilos bancário e fiscal de Carlos Bolsonaro. O pedido foi do Ministério Público, que investiga a contratação de funcionários fantasmas no gabinete do vereador."
JULIANA DAL PIVA: Era 31 de agosto de 2021 e eu estava em casa e liguei para uma fonte para saber as novidades e bastidores da política e do Judiciário. Eu tinha passado algumas semanas fora do Rio de Janeiro, e talvez você já saiba o motivo.
DIEGO SARZA NO UOL NEWS DE 12/7/2021: "A Fenaj, Federação Nacional dos Jornalistas, e o sindicato dos jornalistas divulgaram nota repudiando as ameaças do advogado da família Bolsonaro à jornalista Juliana Dal Piva, do UOL. Na última sexta-feira, Juliana revelou que o advogado Frederick Wassef havia mandado uma mensagem pelo WhatsApp para ela, dizendo o seguinte: 'Faça lá o que você faz aqui no seu trabalho para ver o que o maravilhoso sistema político que você tanto ama faria com você. Lá na China, você desapareceria e não iam encontrar nem seu corpo'. As entidades cobraram que a comissão de ética da Ordem dos Advogados do Brasil instaure um procedimento disciplinar contra Wassef."
JULIANA DAL PIVA: Uma pausa na história do clã. Depois dessa ameaça, eu denunciei e processei o Wassef. Em junho de 2022, saiu a sentença da primeira instância no processo de danos morais. O juiz reconheceu que o advogado fez comentários indevidos de cunho sexual. Por isso, o Wassef foi condenado a me pagar 10 mil reais. A surpresa é que o juiz decidiu, no meu processo, que eu não podia divulgar a mensagem com a ameaça e aí ele também me condenou a pagar o mesmo valor pro Wassef. Eu recorri ao Tribunal de Justiça de São Paulo.
Como eu tava te falando, eu tinha voltado pra casa e tava retomando meu trabalho de investigação. A pessoa do outro lado do telefone me alertou que o caso do Carlos Bolsonaro tinha andado no Tribunal de Justiça do Rio. Já tinha até algum tempo, só que ninguém sabia porque tudo corre em sigilo.
Você lembra que eu expliquei para você que os gabinetes do clã Bolsonaro funcionavam como uma coisa só?
JAIR BOLSONARO, em entrevista à Folha de S.Paulo, em 9/7/2021: "Não há diferença. Muitas vezes, quando um funcionário trabalha para mim, trabalha para os dois também."
JULIANA DAL PIVA: Uma hora o assessor tava lotado no gabinete do Flávio, tempos depois no do Carlos e alguns ainda apareceram nas listas do Jair ou mesmo do Eduardo.
A história do André e da Andrea é mais ou menos assim. A Andrea foi funcionária fantasma nos gabinetes do Jair, do Carlos e do Flávio ao longo de 20 anos. O André revezou entre o gabinete do Carlos e o do Jair. Por isso é que eles entraram na quebra de sigilo do 02 junto com o vereador e a Cristina.
Como eu te falei, ninguém sabia. Nem eu quando fiz a temporada passada. Mas o Ministério Público tinha pedido no dia 5 de maio de 2021 a quebra de sigilo bancário e fiscal de 26 pessoas e empresas envolvidas na investigação sobre o Carlos Bolsonaro.
UOL NEWS DE 24/9/2021: "Na decisão em que autorizou a quebra de sigilo bancário e fiscal do vereador Carlos Bolsonaro, o juiz Marcello Rubioli, da 1ª Vara Criminal Especializada do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, avaliou os dados apresentados pelo Ministério Público e viu indícios de atividade criminosa em regime organizado."
JULIANA DAL PIVA: Essa vara só atende casos de crime organizado.
O magistrado analisou durante quase 20 dias um pedido feito pelos promotores Alexandre Graça e Eduardo Carvalho e, em 24 de maio do ano passado, decidiu autorizar a quebra de sigilo. Diversos indícios apresentados pelo Ministério Público surgiram a partir de investigações da imprensa.
Como este caso aqui, envolvendo a Marta Valle, uma cunhada da Cristina que ficou nove anos nomeada no gabinete do Carlos. Eu já te falei dela.
MARTA VALLE: "Eu não tenho nada para falar."
JULIANA CASTRO: "Em qual gabinete que você trabalhou?"
MARTA VALLE: "Eu não trabalhei em nenhum gabinete, não. Minha família lá que trabalhou, mas eu não."
JULIANA CASTRO: "Ah, entendi. É porque tem seu nome nomeado, durante nove anos lá."
MARTA VALLE: "É, mas não fui eu, não, trabalhei não. Foi a família do meu marido, que é Valle, que trabalhou, entendeu?"
JULIANA CASTRO: "Você mesmo, não?"
MARTA VALLE: "Não."
JULIANA CASTRO: "Mas você sabia que tinha sido nomeada?"
MARTA VALLE: "Mas logo em seguida eu fui? já me tiraram do cargo."
JULIANA DAL PIVA: A Marta apareceu como assessora do Carlos no Rio de Janeiro por quase uma década. Só que durante todo esse tempo ela morava em Juiz de Fora, lá em Minas Gerais, e tinha até outros empregos. Chegou a trabalhar como professora, por exemplo. A outra voz que você ouviu na gravação é da Juliana Castro,que era minha colega no jornal O Globo.
Essa entrevista fez parte de uma reportagem da revista Época. Além da Marta, nós falamos de vários outros casos de funcionários fantasmas desde o início do gabinete do Carlos em 2001. Depois disso, o Ministério Público começou a investigar o Carlos, em julho de 2019.
O Bolsonaro ficou irado com essa matéria.
JAIR BOLSONARO, em transmissão ao vivo nos Emirados Árabes, em 2019: "A revista Época publica uma materiazinha fajuta lá qualquer, inventa alguma historinha qualquer, às vezes com algum fundo de verdade também, e que o que o MP faz? Investiga todo mundo do gabinete. E aí tenta construir uma narrativa para buscar constranger a minha família."
JULIANA DAL PIVA: Viu como até o Bolsonaro admite, do jeito dele, que tem "algum fundo de verdade"? Como a Marta, tinha vários outros casos de funcionários fantasmas, tanto na família da Cristina como de pessoas próximas ao clã. Gente que nunca trabalhou na Câmara. Eram policiais, militares aposentados ou mulheres que tinham empregos como faxineiras, babás ou eram aposentadas.
Uma boa parte delas acabou listada pelo Ministério Público para o pedido de quebra de sigilo. Os investigadores querem descobrir se elas repassavam o dinheiro a alguém. Tipo o que aconteceu com o Fabrício Queiroz, que foi descoberto como o operador do esquema do senador Flávio.
O Queiroz pegava todos os meses a maior parte dos salários de algumas pessoas do gabinete. O MP acredita que a Cristina pode também ter o mesmo papel.
O procedimento do Carlos já andou nas mãos de muitos promotores desde 2019. Agora ele tá na 3ª Promotoria de Investigação Penal, porque o Gaecc acabou. Esse era o grupo de promotores dedicado a investigar corrupção no Ministério Público do Rio.
Aliás, esse era o grupo que também investigava o Flávio e terminou de uma hora para outra em março de 2021 por decisão da chefia do Ministério Público do Rio de Janeiro. Hoje, algumas das investigações de corrupção foram pro Gaeco, que é o Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado. Mas está tudo meio devagar.
O restante dos casos voltou para as promotorias originais, sem muito auxílio ou justificativa técnica para isso. Casos complexos, como o do Carlos, hoje andam com muito menos estrutura do que antes e, em todo ano de 2021, as investigações sobre corrupção de políticos praticamente não evoluíram no Rio de Janeiro.
Mesmo assim, depois de muito vaivém, no início de 2021, a 3ª Promotoria deu sequência ao trabalho do falecido Gaecc no caso do Carlos e continuou investigando até que decidiu pedir a quebra de sigilo.
E o MP apresentou pro juiz essas reportagens e vários outros detalhes para pedir a quebra do sigilo do Carlos, da Cristina, da Andrea do André, da Marta e de vários outros investigados.
A decisão que autorizou o acesso às informações financeiras do Carlos e dos outros ex-funcionários tem 79 páginas. Quando tudo isso começou a vazar, em setembro do ano passado, embora eu soubesse da decisão, eu demorei alguns dias para poder ver os documentos. Como eu te falei, o caso corre sob sigilo, então não é simples ter acesso a esses papéis.
Mas, depois de tanto procurar e pedir por aí, eu consegui a decisão e o pedido do MP. A análise do juiz é bem dura.
Vou pedir para a minha colega Elenilce Bottari ler alguns trechos. Ela me acompanhou nas investigações desse episódio e de tudo o que você ainda vai ouvir na próxima temporada.
ELENILCE BOTARRI LÊ TRECHO DA DECISÃO: "Carlos Nantes é citado diretamente como o chefe da organização, até porque o mesmo efetua as nomeações dos cargos e funções comissionadas do gabinete."
JULIANA DAL PIVA: Notou que o juiz não falou o sobrenome Bolsonaro? Você pode não conhecer o sobrenome Nantes, que o magistrado escreveu na decisão, mas esse é o sobrenome do meio de Carlos Bolsonaro, que todo mundo conhece por Carlos Bolsonaro.
O juiz também disse que o Ministério Público apontou a existência de fortes indícios da prática de crime de lavagem de dinheiro.
E como o MP convenceu o juiz disso?
Sobre o Carlos, por exemplo. O juiz citou um relatório do Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras), esse é um órgão do governo que recebe alertas de transações financeiras consideradas suspeitas.
O documento apontou uma movimentação de 1 milhão e 770 mil reais do Carlos para uma conta que está no nome da mãe dele, a Rogéria, que foi a primeira mulher do presidente Jair Bolsonaro.
Outro ponto de destaque foram as negociações para a compra de dois apartamentos. O primeiro deles, o Carlos comprou em 2003. Era um apartamento lá na Tijuca, na zona norte do Rio. O Carlos tinha 21 anos, era vereador há dois anos e pagou 150 mil reais em dinheiro vivo. Isso dá quase 380 mil reais hoje se a gente corrigir pela inflação. O segundo caso de uma compra suspeita é de 2009. O Carlos comprou um apartamento em Copacabana por 70 mil [reais], esse valor representa menos da metade do preço do imóvel naquela época.
Essa história tinha sido revelada pelo Caio Sartori, no Estadão, ainda em 2020, e também foi anexada pelo Ministério Público no pedido de quebra pro Tribunal de Justiça.
E, olha, não sei você, eu sempre acho curioso como o clã Bolsonaro consegue fazer negociações imobiliárias com tanto desconto.
Lembra que eu te contei no episódio 4 sobre como o Flávio Bolsonaro também conseguiu comprar duas quitinetes em Copacabana bem abaixo do valor real em 2012? Ele lucrou muito com isso.
TRECHO DA BAND DE 16/5/2019: "Também haveria irregularidades na compra de quitinetes em Copacabana, na zona sul, em que o parlamentar teria lucrado mais de 800 mil reais em um intervalo de um ano e meio."
JULIANA DAL PIVA: Só que depois, quando o MP viu os dados financeiros do Flávio, os promotores descobriram pagamentos em dinheiro vivo nessas negociações. Coisa de 638 mil reais em espécie.
Só pra você ter ideia, é mais dinheiro do que o valor que estava nas malas de um assessor do ex-presidente Michel Temer. E também mais do que estava em uma mala preta de um primo do deputado federal Aécio Neves. Os dois foram flagrados pela Polícia Federal com malas de 500 mil [reais] no caso da delação da JBS, que, inclusive, depois não deu em nada no Judiciário, mas essa é outra confusão.
Retomando a história do Flávio. Esses detalhes das compras desses apartamentos até foram parar na denúncia por lavagem de dinheiro contra o senador. Um desvio de mais de R$ 6 milhões de dinheiro público. Mas depois ela acabou arquivada porque as provas foram anuladas no Superior Tribunal de Justiça, como eu já tinha te contado no 4º e último episódio.
Tô relembrando tudo isso pra mostrar pra você como as histórias do Flávio e do Carlos na compra de imóveis são bem parecidas e suspeitas. Quem também fazia isso era a Cristina, que comprou casas, apartamentos e terrenos com dinheiro vivo. Além disso, apareceram valores milionários em espécie em algumas empresas dela.
Para pedir a quebra de sigilo da Cristina junto com o Carlos, o Ministério Público também obteve um relatório do Coaf mostrando que ela recebeu dois grandes depósitos em dinheiro vivo.
O primeiro, de 191 mil reais, ela fez em março de 2011. Alguns meses depois, em julho, a Cristina fez outro, de 341 mil [reais]. Nessas duas ocasiões, ela registrou no cartório: vendas de terrenos.
Tô te falando deles porque esses bens foram uma parte da briga da Cristina com o Bolsonaro na separação. E eles eram parte dos negócios suspeitos do casal.
Eles foram comprados em 2006 e, no cartório, a Cristina e o Bolsonaro registraram que tudo saiu por R$ 160 mil, mas eles valiam já naquela época, segundo a Prefeitura de Resende, quase cinco vezes mais: 743 mil reais.
Então, quando ela revendeu, em 2011, ela conseguiu R$ 1,9 milhão. A Cristina acabou com um lucro de mais de 1.000%.
Pensa comigo. Eles colocaram no papel que pagaram 160 mil reais, só que esses terrenos já valiam cinco vezes mais. Na hora de vender, a Cristina conseguiu com eles quase 2 milhões de reais. Então, para resumir, esses terrenos são só uma parte dos dados sem explicação.
Mas, antes de a gente continuar, vou fazer um intervalo e já volto com o UOL Investiga: A Vida Secreta de Jair.
Na época do casamento com o Bolsonaro, a Cristina montou um escritório de advocacia e duas empresas de seguro. As empresas funcionavam em um prédio, no centro do Rio, a poucos metros da Câmara de Vereadores. Do lado de um restaurante bem conhecido por ali, o Amarelinho, que fica na praça da Cinelândia.
A Cristina esperava lucrar bastante com esses negócios. Em 2007, ela chegou a escrever numa carta que esperava faturar 50 mil por mês com a seguradora. Mas espera um pouquinho. Daqui a pouco, vou te contar mais sobre isso.
O tempo passou, a Cristina e o Bolsonaro se separaram e ela até se desfez desses negócios. Mas, agora, por causa das investigações de rachadinha, a gente ficou sabendo que o Coaf achou negociações suspeitas nas contas dessas empresas da Cristina. De agosto de 2007 a julho de 2015, mais da metade do que saiu da conta bancária de uma das empresas da Cristina foram saques em dinheiro vivo, um total de 1,1 milhão de reais.
Mais dinheiro vivo. Muita gente até ironiza o que parece uma aversão da família Bolsonaro ao sistema bancário.
CHICO ALVES, colunista do UOL, em 23/9/2020: "Se dependesse do presidente Jair Bolsonaro e da família, o sistema bancário nacional estaria mal das pernas. É impressionante como, em várias áreas, o clã vai na contramão da maioria dos brasileiros e prefere fazer transações em dinheiro vivo a usar as transferências de banco para banco como todo mundo faz."
JULIANA DAL PIVA: Isso tudo, todas essas negociações, agora estão sendo investigadas.
E o passo seguinte do Ministério Público foi chamar a Andrea Siqueira Valle para depor. O depoimento ficou pro dia 7 de outubro e foi por videoconferência porque a Andrea estava em Juiz de Fora.
Mas nem deu tempo de o Ministério Público começar a fazer as perguntas. Ela preferiu ficar em silêncio e esse é um direito dela.
E uma coisa que eu não pude deixar de notar é que, nesse dia, a Andrea estava acompanhada do advogado Marco Túlio Éboli. Ele trabalha no Rio e já atuou na defesa do ex-secretário de Saúde Edmar Santos, aquele que foi preso durante as investigações sobre desvios de Saúde na pandemia em 2020.
Quando eu soube disso, eu perguntei para o advogado Marco Túlio como que ele foi contratado pela Andrea. Eu te contei das dificuldades que a Andrea tinha pra se sustentar? A Andrea não tem emprego fixo e vive de bicos como diarista e auxiliar de serviços gerais.
ANDREA SIQUEIRA VALLE, em gravação: "Eu moro de aluguel, não tenho um carro, não tenho nada. Para onde foi esse dinheiro todo meu? Entendeu?"
JULIANA DAL PIVA: O advogado disse que não podia responder porque as informações fazem parte do sigilo profissional dele com a Andrea.
Quem também foi chamado para depor, em setembro de 2021, foi o Gilmar Marques. Ele é pai da filha da Andrea.
O Gilmar sempre morou em Minas Gerais e trabalhava como representante comercial. Primeiro em Juiz de Fora, onde ele conheceu a Andrea, e depois numa cidade chamada Rio Pomba.
Quando o Gilmar apareceu como funcionário do Carlos na Câmara Municipal do Rio, lá em janeiro de 2001, o que ficou registrado pra Câmara é que o endereço do Gilmar era um apartamento na rua Visconde de Itamaraty, no Maracanã, que fica também na zona norte do Rio de Janeiro. Só que quem vivia nesse apartamento era o Bolsonaro e a Cristina. O Gilmar mesmo nunca morou lá.
E o Gilmar ficou nomeado por vários anos, até março de 2008. Mas quem conheceu ele me contou que o Gilmar é outro funcionário fantasma. Por todas essas suspeitas, o Ministério Público chamou ele para confrontar esses fatos e as contradições. O Gilmar também entrou na lista da quebra de sigilo do Carlos Bolsonaro.
O Gilmar contou para os promotores que foi a Cristina que ofereceu pra ele esse emprego no gabinete. Só que isso foi uma das poucas coisas que o Gilmar disse que lembrava.
Nas outras perguntas, todas sobre as funções do Gilmar no cargo na Câmara, ele disse que não lembrava de quase nada. Não lembrava dos colegas, das tarefas, nem do crachá e nem dos detalhes mais óbvios do trabalho de um assessor parlamentar. Era como se o Gilmar tivesse? sofrido de amnésia.
E, olha, setembro foi um mês longo. Com mais e mais revelações do passado do clã Bolsonaro.
MARCELO NOGUEIRA, ex-empregado de Ana Cristina Valle, em entrevista com Juliana Dal Piva
JULIANA: "Viu, Marcelo, e quando você tinha que devolver o dinheiro, você devolvia para Cristina, na mão da Cristina?"
MARCELO: "Não mão dela."
JULIANA: "Você ia no banco, sacava o dinheiro e entregava para ela? É isso?"
MARCELO: "Aham. Eu e muitos outros lá da minha época."
JULIANA: "Deixa eu só ver se eu entendi. Apesar de você trabalhar no gabinete do Flávio, você sacava o seu dinheiro do gabinete do Flávio e dava na mão da Cristina?"
MARCELO: "Isso, isso."
JULIANA: "E outras pessoas do gabinete do Flávio faziam a mesma coisa?"
MARCELO: "A mesma coisa."
JULIANA: "Uma coisa que me contaram também sobre ela, Marcelo, é que ela fazia vocês entregarem, além do salário, vale-alimentação, 13º, férias, restituição de Imposto de Renda..."
MARCELO: "Justamente."
JULIANA: "Tudo isso?"
MARCELO: "Tudo isso."
JULIANA: "Todo dinheiro que tinha era taxado?"
MARCELO: "Proporcional ao que a gente recebia. A gente só tirava o proporcional que a gente recebia. Tipo 13º, essas coisas todas, férias. Em cima do que a gente ficava."
JULIANA DAL PIVA: Esse que você está ouvindo é o Marcelo Nogueira. Ele é um personagem novo na história e você vai ouvir um pouco dele aqui e também mais adiante quando chegar a nova temporada do UOL Investiga.
Mas ele só é novo aqui. Ele não é novidade alguma pro clã. O Bolsonaro costuma chamar ele de Marcelão. O Marcelo trabalhou para a Cristina e para o Bolsonaro entre 2003 e 2007. Depois da separação dos dois, ele ainda ficou mais alguns anos trabalhando só para a Cristina.
Eu já tinha encontrado com o Marcelo nas minhas andanças por Resende em 2019. Eu fui na casa da Cristina que fica num bairro na Morada da Colina. Do lado de fora, não dá pra ver muita coisa da casa, e eu nem pude entrar. Vi que tem dois pisos e sei que tinha uma piscina nos fundos. Eu parei no portão, que fica bem afastado da porta da frente da casa, e falei com o Marcelo pelo interfone.
Naquela época, ele não queria conversa nenhuma. Disse que trabalhou na Alerj e logo me mandou embora.
O tempo passou e, no primeiro semestre de 2021, o Marcelo foi para Brasília junto com a Cristina, mas lá os dois acabaram brigando. Ele se sentiu explorado por ela. A história do Marcelo é que o desentendimento dos dois começou porque a Cristina não quis pagar o salário combinado.
MARCELO NOGUEIRA, ex-empregado de Ana Cristina Valle, em entrevista com Juliana Dal Piva
JULIANA: "Você pediu um aumento e ela não quis te dar."
MARCELO: "Pedi não. Ela me ofereceu lá em Resende para eu ir para Brasília. Eu só desfiz das minhas coisas em Resende, me desfiz da minha quitinete, acabei dando as minhas coisas, porque ela tinha me oferecido um salário melhor. Quando chegou lá, depois de um mês, que eu fui pegar meu pagamento, ela disse que não tinha dinheiro para me pagar naquele momento. Eu tinha que aguardar até ela ter dinheiro, porque ela tinha comprado a casa e estava fazendo reforma e estava sem dinheiro para me pagar, para me dar o que ela tinha me oferecido. Isso foi o que me revoltou totalmente. Ela falou para mim: 'Não sei porque você está fazendo questão porque você não vai ter nem gasto porque você vai ficar morando aqui na minha casa'. Eu falei: 'Mas eu não sou teu escravo, não, eu não trabalho para morar na casa de ninguém, não. A gente trabalha para ter nossas coisas e eu sou igual a todo mundo, não é porque eu sou preto que eu tenho que ficar morando em casa de patrão, não. E foi uma discussão feia."
JULIANA DAL PIVA: Inclusive o Marcelo denunciou que a casa, que na verdade é uma mansão, foi comprada com um laranja.
Eu e o repórter Eduardo Militão investigamos isso. A gente notou a contradição de alguém que comprou uma mansão de 3 milhões de reais no Lago Sul em Brasília, mas continuou morando numa casa bem simples e longe do lago, uma hora dali.
E, depois dessa briga com a Cristina, o Marcelo resolveu contar tudo o que viu, ouviu e viveu nos anos em que trabalhou para ela.
A primeira entrevista ele deu para o Guilherme Amado, jornalista do Metrópoles. Logo depois que saiu a reportagem, eu liguei pro Marcelo e aí a gente conversou bastante.
Depois, a gente marcou uma entrevista pessoalmente no centro do Rio e ele me contou boa parte da história dele. O Marcelo nunca foi assessor parlamentar. Ele sempre trabalhou como empregado doméstico da Cristina e do Bolsonaro, mas, quando a Cristina contratou o Marcelo, o que ela disse para ele é que ele ia aparecer nomeado no gabinete do Flávio e, por isso, ele tinha que devolver cerca de 80% do salário que ia aparecer todo mês no contracheque. Aquela conversa foi, na verdade, um convite para o Marcelo participar do esquema de rachadinha. Por isso, hoje, ele vive numa situação financeira bastante difícil e parecida com a da Andrea, a irmã da Cristina.
MARCELO NOGUEIRA, ex-empregado de Ana Cristina Valle, em entrevista com Juliana Dal Piva
MARCELO: "Todo mundo trabalha para ter suas coisas, ter sua independência. Entendeu? Isso é o quê? Ela queria me escravizar, né?"
JULIANA: "Daí foi que você resolveu denunciar."
MARCELO: "Foi, foi. Hoje, Juliana, eu não tenho nada. Quantos anos que eu tô nessa aí, trabalhando para eles, e hoje eu não tenho nada. Ela fez agora com que o pouco que eu tinha me desfazer de tudo, na esperança de ter uma vida melhor, né? Eu me desfiz de tudo. E aí o que é que deu?"
JULIANA DAL PIVA: As entrevistas do Marcelo criaram um climão entre os Bolsonaro. Tempos depois, a Cristina acusou o Marcelo de tentar fazer uma chantagem com ela. Na versão dele, o pedido de dinheiro era um acordo e tudo o que ele falou foi no contexto de briga entre os dois. Há pouco tempo, a Cristina disse que tem medo do Marcelo, mas ela nunca registrou queixa disso na polícia ou mesmo processou o ex-funcionário pelas declarações. Hoje o Marcelo está pelo Rio de Janeiro, tentando refazer a vida dele.
Mas setembro de 2021 não tinha acabado quando a Cristina quase foi parar na CPI da Covid.
SENADOR RANDOLFE RODRIGUES em 15/9/2021: "Submeto à apreciação o requerimento 1488 de convocação da senhora Ana Cristina Bolsonaro. As senhoras senadoras e senhores senadores que concordam permaneçam como estão. Aprovado."
JULIANA DAL PIVA: A CPI acabou não levando ela pra depor e o envolvimento dela com um lobista investigado por participar de um suposto esquema de propinas na compra de vacinas para a covid ficou sem esclarecimento.
O tempo passou e eu continuei investigando as histórias mal contadas dos negócios da família Bolsonaro. Em especial, as da Cristina.
Continuei tentando entender o envolvimento do Bolsonaro no esquema dos gabinetes. Mas também segui apurando a própria história dele.
Nessas andanças, em março de 2022, eu encontrei com uma pessoa que tinha uma cópia de algumas cartas que a Cristina escreveu na época em que ela se separou do Bolsonaro e que falavam dos negócios e dos problemas durante a separação.
Depois da nossa primeira conversa, passaram alguns dias. Eu continuei investigando e essa pessoa topou me mostrar as cartas, com a condição de eu não revelar a identidade dela.
Uma manhã, eu ainda estava na cama, quando eu peguei o celular e vi que tinha uma mensagem no WhatsApp da pessoa dizendo que queria me mostrar as cartas.
A primeira tem quatro páginas, mas essa pessoa só me deixou ver duas. A história que essa pessoa me contou é mais ou menos assim.
Em julho de 2007, Bolsonaro deu um basta no casamento com a Cristina. Ele descobriu que ela tinha um caso com um motorista, mas ele próprio já se relacionava com uma assessora que se chama Michelle.
O Jair e a Michelle estavam tão envolvidos que o acordo pré-nupcial foi assinado em setembro de 2007, coisa de um mês depois que ele saiu da mansão da Barra onde morava com a Cristina e o Jair Renan.
E alguns meses depois, em novembro de 2007, o Bolsonaro casou de novo.
Mas, antes de o Bolsonaro casar com a Michelle, a Cristina ainda tentou se reconciliar com ele. Naqueles dias, a Cristina escreveu uma carta para o Bolsonaro.
Desde que eu recebi essa carta, eu fiquei pensando que ela também trata de algumas questões íntimas da família. Mas foi o próprio Bolsonaro que trouxe pro debate público a ideia dele do que é família ou mesmo moralidade. Sempre que pode, o presidente fala de "valores de família", se compara a um "cidadão de bem" e diz como as famílias brasileiras têm que ser.
JAIR BOLSONARO, em 9/7/2022: "Temos pela frente uma luta do bem contra o mal, tá bem claro o campo de batalha. Mas, como a história sempre mostrou, o bem será vitorioso."
JAIR BOLSONARO, em 13/7/2022: "Nós queremos que o Joãozinho seja Joãozinho a vida toda e que a Mariazinha seja Maria a vida toda. Que constituam famílias. Que seu caráter não seja deturpado em sala de aula. Fiz um compromisso durante a campanha, que ia indicar um terrivelmente evangélico para o Supremo Tribunal Federal, e assim eu fiz. Indicamos e lá temos um pastor."
JULIANA DAL PIVA: Bem contra o mal. Modelo de família. Caráter deturpado. O que a Constituição do Brasil garante é o respeito às diferenças, mas o Bolsonaro prega pros brasileiros os seus valores e faz política usando isso. Inclusive escolhendo ministros pro Supremo Tribunal Federal.
Só que, quanto mais a gente sabe sobre o Bolsonaro, mais fica claro que ele é um homem em público, mas tem uma vida diferente dentro de casa.
Por isso, o público e privado sempre se misturaram na vida dele e pra gente entender o Bolsonaro nós precisamos falar das duas coisas. Como está na carta da Cristina, escrita com a letra.
A primeira carta é de 15 de julho de 2007. No início, não sei o motivo, mas o texto tem um tom de uma oração.
Vou pedir para a minha colega Elenilce Bottari ler pra você:
ELENILCE BOTTARI LÊ TRECHO DE CARTA:
"Jair Messias Bolsonaro
15 de julho de 2007
Desde já, eu agradeço porque sei que ele me ama e eu o amo e tudo vai dar certo. Ele vai voltar melhor e eu vou ser melhor. Ele vai voltar melhor e ele me ama muito e eu também. Ele quer voltar e vai voltar. Ele está voltando e tudo vai ser bem melhor. Quero ele de volta para minha vida, uma vida melhor. Ele vai me amar muito e tudo vai ser diferente. Vou domá-lo com o meu carisma e a minha beleza. Ele vai se casar comigo como nos meus sonhos. Tudo o que está acontecendo é para que fique melhor. Nós não vamos nos desgrudar. Confiaremos um no outro. Nos amamos.
Valle Reguladora vai se legalizar e se livrar daquela pessoa. Vamos ter muitos e muitos processos chegando. A minha meta até o fim do ano é de mil processos/mês. Vou ganhar 50 mil reais por mês. Vou vender esta casa muito bem. Vou comprar a casa dos meus sonhos. A Valle Advogados vai dar muito dinheiro. O meu corpo e saúde vão estar sempre assim: lindos e com saúde. O DPVAT vai dar muito dinheiro."
JULIANA DAL PIVA: Depois, em outro trecho, já na página seguinte, a carta é mais melancólica. A Cristina faz reclamações e diz que o marido era ingrato e revela brigas entre os dois por causa do Carlos, com quem ela trabalhava.
A Elenilce vai ler mais trechos para você da segunda página:
ELENILCE BOTTARI LÊ MAIS TRECHOS DE CARTA:
"Não tenho mais vontade de viver. Foram muitas as injustiças e ingratidões de sua parte. Nunca fiz nada que pudesse desabonar a minha conduta com você e nossa família. O primeiro ponto onde tudo começou: Carlos. Por 2 anos, eu o amei, amparei e socorri todos os seus medos e em troca tive o título de sedutora de menor. Ah, como dói, dói muito, fala para ele que meu amor era sincero e puro. Não pornográfico e nunca foi e, se eu desabafei, foi porque ele me passou confiança para me ajudar com você, Jair. Mas nada adiantou. [?]
Segundo, o dinheiro. Nunca foi a minha intenção lesar ninguém e sim crescer o patrimônio da família. Presto conta de tudo, pois não tirei nada de vocês. Sou honesta e tenho orgulho disso [?]. Podem ficar com tudo.
Terceiro, o bendito flat. Comprei sem sua autorização e fiquei com muito medo e tinha razão. Mas você tinha mudado, não queria mais investir mais nada. Errei. Perdão".
JULIANA DAL PIVA: Nesse meio tempo, a Cristina também escreveu uma carta para a Mariana Mota, em 7 de agosto de 2007. A Mariana era uma amiga da Cristina e chefe de gabinete do Flávio Bolsonaro nessa época. Ela continuou trabalhando para o clã mesmo depois que a Cristina e o Bolsonaro brigaram. Eu te falei da Mariana no episódio dois da temporada. Ela até entrou na investigação de rachadinha e chegou a ser apontada pelo Ministério Público como alguém que recolhia o dinheiro dos assessores antes de o Fabrício Queiroz fazer isso.
ELENILCE BOTTARI LÊ OUTRA CARTA:
"Querida e amada Mariana,
Está muito difícil falar e também não quero falar. Resolvi lhe escrever, espero que entenda ou não, mas não importa, o que importa é o que eu quero lhe dizer: Perdão por tudo, por palavras, por atitudes, por ações e o que mais possa ser perdoado. Eu te perdoo de tudo também, pois eu sei que seria o que você falaria. Lhe agradeço por tudo, mas preciso continuar minha luta sozinha e lamento pelo Renan e as crianças, mas tá difícil, você deve saber me conhecendo. E não dá mais para escrever, beijos. Fica na paz."
JULIANA DAL PIVA: Em 10 de setembro de 2007, a Cristina escreveu uma carta para o filho, o Jair Renan:
ELENILCE BOTTARI LÊ MAIS UMA CARTA:
"Querido filho, você é o que de mais precioso que a vida me deu. Lindo, com saúde, lindo, feliz, e com Deus no coração. Agradeço todos os dias por você, filho. Espero que você se torne um homem feliz, realizado, bem-sucedido e amado. Não gostaria de fazer filhos, mas está muito difícil e não quero ser um peso para você. Quero ser uma boa coisa na sua vida. Te amo tanto, tanto, mais que o infinito. Você é a minha vidinha. Estarei sempre com você em meu pensamento. Sua mãe, Ana Cristina. Te amo muito."
JULIANA DAL PIVA: O tom melancólico era para mexer com Bolsonaro, mas o Jair já estava em outra. Terminava o casamento e começava uma guerra.
Apesar de os dois estarem juntos desde 1998, eles nunca formalizaram a união e a Cristina teve que ir no Tribunal de Justiça para garantir a divisão dos bens, um total de 4 de milhões de reais, entre imóveis, carros, aplicações e jóias.
E é o processo de separação que começa a mostrar o problema nos bens do Bolsonaro e como ele ocultava imóveis das declarações do Tribunal Superior Eleitoral. E, como a própria Cristina contou no processo, ele tinha uma renda de mais de 100 mil reais por mês, só que ela não revelou de onde vinha todo esse dinheiro.
Também é curioso como a Cristina cita na carta para o Bolsonaro as empresas e o dinheiro que ela esperava fazer com o escritório e a seguradora. Em dezembro de 2021, o Jornal Nacional fez uma reportagem revelando que o dinheiro da empresa estava envolvido em negociações suspeitas.
TRECHO DE JORNAL NACIONAL em 7/12/2021: "Documentos e depoimentos obtidos com exclusividade pelo Jornal Nacional mostram novos indícios da participação da ex-mulher do presidente Jair Bolsonaro na lavagem de dinheiro do suposto esquema da rachadinha no gabinete do vereador Carlos Bolsonaro. Testemunhas denunciam o envolvimento de empresas de Ana Cristina Valle também em fraudes no seguro obrigatório, o DPVAT."
JULIANA DAL PIVA: Eu mostrei essas cartas para duas pessoas que conheceram muito bem a Cristina para ver se reconheciam a letra da Cristina e conheciam as histórias, e essas pessoas me disseram que sim.
O primeiro a me confirmar foi o Marcelo Nogueira.
MARCELO NOGUEIRA, em entrevista a Juliana Dal Piva
"Não, eu reconheci a letra, sim. Não, com certeza essa letra aí é dela. Isso aí eu conheço de anos, né? E sobre essas cartas aí, alguma vez eu tinha ouvido alguém falar. Só não me lembro quem, mas também a coisa ficou por esquecida e eu nunca mais tomei conhecimento, não. Eu não me lembro se foi uma das empregadas que me falou, comentou alguma coisa comigo, entendeu?"
JULIANA DAL PIVA: Uma outra pessoa falou o mesmo, mas pediu para não ser identificada.
FONTE SOB SIGILO EM ENTREVISTA A JULIANA DAL PIVA
JULIANA: "Então a pergunta que eu queria te fazer. Te mostrei as cartas e queria te perguntar se você reconhece a letra da Cristina na carta."
FONTE: "Sim, reconheço."
JULIANA: "Você tem absoluta certeza de que é?"
FONTE: "Tenho absoluta certeza."
JULIANA DAL PIVA: Depois de falar com essas duas fontes, eu liguei para Cristina, mas ela me disse que tava numa reunião e pediu pra eu ligar mais tarde.
ENTREVISTA DE JULIANA DAL PIVA COM ANA CRISTINA VALLE:
BARULHO TELEFONE
CRISTINA: "Alô."
JULIANA: "Alô. É Cristina?"
CRISTINA: "Quem deseja?"
JULIANA: "Cristina, é Juliana do UOL."
CRISTINA: "Eu tô numa reunião. Tô aqui interrompendo as pessoas para poder falar contigo. Se você puder ligar mais tarde, pode ser? Eu te respondo."
JULIANA: "Pode. Tem um último assunto que eu queria falar com você, que é sobre umas cartas suas que eu recebi. Que horas eu posso te ligar?"
CRISTINA: "Ah, por volta de duas, duas e meia."
JULIANA: "Então tá bom. Vou te ligar entre duas ou duas e meia, então. Tá bom?"
CRISTINA: "Tá bom. Obrigada."
JULIANA: "Muito obrigada. Tchau, tchau."
JULIANA DAL PIVA: Quando eu retornei às duas e meia, ela não atendeu mais.
GRAVAÇÃO TELEFÔNICA: "Grave seu recado agora."
JULIANA DAL PIVA: Eu queria te explicar melhor tudo o que a Cristina quis dizer ou pretendia com essas cartas, mas infelizmente é isso o que eu sei até agora. As outras duas páginas tinham, segundo a fonte, mais dados sobre as questões financeiras e sobre todo o esquema.
E, se tem uma coisa que eu aprendi nessa história do clã Bolsonaro, é que ela tá muito longe de acabar. Cada novo detalhe que aparece faz com que vários outros surjam depois. E tudo demora. Foi só agora, em 2022, que o Ministério Público Federal propôs uma ação de improbidade contra o Bolsonaro e a Wal do Açaí, aquela funcionária fantasma que fica naquela praia em Angra, Mambucaba, e que foi descoberta pela Folha em 2018.
DEPOIMENTO DE WAL DO AÇAÍ exibido no Jornal Nacional em 23/3/2022:
PROCURADOR: "A senhora tomou posse aqui em Brasília? Como foi a posse da senhora?"
WAL DO AÇAÍ: "Não, não foi em Brasília. Eu nunca fui a Brasília."
JULIANA DAL PIVA: Vamos então esperar as cenas dos próximos capítulos.
Outra coisa que não se sabe até hoje é o que o Ministério Público descobriu depois da quebra de sigilo da Cristina e do Carlos. Mas o caso tá lá. O promotor responsável, Alexandre Murilo Graça, concorreu a uma vaga de desembargador no início de 2022. Justamente um posto indicado pelo governador do Rio, Cláudio Castro, que é aliado do presidente Jair Bolsonaro. Mas o promotor não foi escolhido para a vaga de desembargador. Nesse tempo, a investigação do Carlos ficou parada e está assim há quase um ano. O promotor não fala do caso.
Ao mesmo tempo, a Cristina se filiou ao partido Progressistas e quer ser deputada distrital. Provavelmente vai disputar a eleição sem você nem os outros eleitores saberem se existem mais provas sobre o envolvimento dela e do Bolsonaro nesse esquema dos gabinetes do clã.
Em situação parecida, e apesar de todas as provas descobertas sobre o esquema de desvio de dinheiro público, está o Fabrício Queiroz, que vive como se nunca tivesse sido preso e acusado de desviar 2 milhões de reais da Alerj. Ele também vai ser candidato na eleição e tá cobrando apoio do Bolsonaro.
ENTREVISTA DE FABRÍCIO QUEIROZ AO PODCAST +/- em 3/6/2022:
"Onde eu vou, em qualquer lugar que eu vou, eles falam: 'E aí, eles vão te apoiar?'. E eu falei: 'Cara, é um absurdo se não apoiar. Então eu sou bandido? Entendeu? Sou meio bandido, sou bandido, sou o quê? Sou o Queiroz, pô, pai de família, trabalhador. Fiz uma lambança e que respingou neles? Sim. Mas não tem crime. Eu não faço uma pergunta diretamente, porque é constrangedor e não quero dar saia justa a ninguém. Então quero que vocês façam essa pergunta a eles. Quero ver eles dizerem que não me apoiam."
JULIANA DAL PIVA: Eu terminei a temporada passada te falando que muitos fatos já tinham sido revelados. Te mostrei a história até da boca de alguns dos protagonistas dela para você tirar as suas próprias conclusões, conhecer a verdade e refletir.
Depois que a temporada acabou, eu entendi que ainda tinha outras partes da vida secreta do Jair que precisavam vir à tona. Então, fica com a gente. Em breve, eu volto para te contar outras histórias que nós investigamos nos últimos meses. O que eu posso adiantar é que o esquema é outro.
CRÉDITOS
Este episódio usou áudios do UOL News, do Jornal Nacional, do Jornal da Band, da CNN, do colunista do UOL Chico Alves, da TV Senado, do Facebook de Jair Bolsonaro e do podcast Mais ou Menos.
UOL Investiga: A Vida Secreta de Jair é apresentado por Juliana Dal Piva. A reportagem e pesquisa foram feitas por Juliana Dal Piva e por Elenilce Bottari. Elenilce também fez algumas narrações desse episódio. O roteiro foi escrito por Juliana Dal Piva, com revisão da Juliana Carpanez. O desenho de som e a montagem são do João Pedro Pinheiro. A produção é da Natália Mota. O design é do Eric Fiori. A direção de arte é da Gisele Pungan e do René Cardillo. A coordenação é da Juliana Carpanez, da Lúcia Valentim Rodrigues e do Graciliano Rocha. O projeto também conta com Alexandre Gimenez e Antoine Morel, gerentes de conteúdo, e Murilo Garavello, diretor de conteúdo do UOL. Agradecimentos ao jornalista Pedro Cappeti.
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