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UOL Investiga T2E4: A história inteira da arma e moto roubadas de Bolsonaro

Juliana Dal Piva

Colunista do UOL

23/09/2022 04h00

O podcast UOL Investiga estreia nesta sexta-feira (23) sua segunda temporada, chamada "Polícia Bandida e o Clã Bolsonaro" —que você pode ouvir no arquivo acima, no YouTube do UOL e em todas as plataformas de podcast. Os quatro novos episódios já estão disponíveis.

Na segunda temporada, a colunista do UOL Juliana Dal Piva fala da relação da família Bolsonaro com agentes das forças de segurança que se tornaram milicianos e usaram seu treinamento para cometer crimes. Dezenas deles foram homenageados pelo clã ao longo de 20 anos. A jornalista traz ainda detalhes da relação da família Bolsonaro com Adriano Nóbrega, ex-policial militar morto em 2020 e apontado como chefe de assassinos de aluguel —Jair e Flávio inclusive fizeram visitas ao ex-capitão na prisão. Esta temporada tem também a história completa do roubo de uma moto do presidente em 1995, crime que mobilizou parte da polícia do Rio e simboliza vários problemas da segurança pública.

A primeira temporada, "A Vida Secreta de Jair", trouxe revelações sobre o envolvimento direto do presidente da República, Jair Bolsonaro, com a rachadinha —o esquema ilegal de entrega de salários de assessores quando exerceu seguidos mandatos de deputado federal.

No último dos quatro novos episódios, a colunista Juliana Dal Piva conta os detalhes do roubo de uma moto e da arma do então deputado federal Jair Bolsonaro em 1995.

Quando ele foi assaltado, atuou diferente do que costuma defender em seus discursos e não reagiu. Entregou tudo o que os bandidos pediram. Depois, um grande efetivo da polícia foi mobilizado para reaver seus bens, mas sem muito sucesso. O que funcionou realmente foi a ajuda de um chefe do tráfico local.

Como vai mostrar esse episódio, o roubo simboliza muitos problemas da segurança pública, como a conivência entre os traficantes de drogas e a polícia e a diferença nos esforços para solucionar um crime para os poderosos e as pessoas comuns.

O cenário do roubo foi a favela de Acari, na zona norte do Rio, local marcado pela violência policial há décadas. Essa história ainda se cruza com a evolução dos grupos de milícias no Rio.

Você pode ouvir UOL Investiga em plataformas como Spotify, Apple Podcasts, Google Podcasts, Amazon Music e YouTube. Abaixo, você confere a íntegra do roteiro do episódio 4.

"Polícia Bandida e o Clã Bolsonaro"

Episódio 4: A história completa da arma roubada

JULIANA DAL PIVA: Antes de começar, um aviso. Este episódio tem cenas fortes, com descrições de violência e pode não ser adequado para todos os públicos.

JULIANA DAL PIVA: O presidente Jair Bolsonaro é um grande defensor do comércio de armas. Ele acha que todo mundo deveria andar armado.

JAIR BOLSONARO: "Defendemos o armamento para o cidadão de bem".

JULIANA DAL PIVA: O Bolsonaro costuma defender que uma pessoa armada pode reagir numa situação de um assalto ou mesmo um ataque. Esse é um dos principais argumentos do Bolsonaro para ter ampliado o acesso de armas pra população em 15 de janeiro de 2019. O Bolsonaro fez um decreto e uma cerimônia no Palácio do Planalto nesse dia pra anunciar a medida.

Tudo durou menos de sete minutos e quando o Bolsonaro entrou no salão metade das cadeiras tavam vazias. De pé, do lado do presidente, tavam os ministros da Defesa, Fernando Azevedo e Silva; da Casa Civil, Onyx Lorenzoni; da Justiça e da Segurança Pública, Sergio Moro; e do GSI (Gabinete de Segurança Institucional), general Augusto Heleno, além do vice-presidente, general Hamilton Mourão. Na hora de assinar o decreto, o Bolsonaro mostrou uma caneta pra quem tava ali e disse.

JAIR BOLSONARO EM 15 DE JANEIRO DE 2019: "Como o povo soberanamente decidiu por ocasião do referendo de 2005, para lhes garantir esse legítimo direito à defesa, eu, como presidente, vou usar esta arma. Infelizmente o governo, à época, buscou maneiras em decretos e portarias para negar esse direito. O povo decidiu por comprar armas e munições e nós não podemos negar o que o povo quis nesse momento".

JULIANA DAL PIVA: Antes de continuar, eu preciso te explicar uma coisa sobre o referendo de 2005. Lá atrás, o referendo não foi feito pra estimular as pessoas a ter arma e nem pra ampliar o porte ou a posse. O que se discutia era a possibilidade de proibir o comércio. A pergunta feita para a população foi: "O comércio de armas de fogo e munição deve ser proibido no Brasil?".

Faz tempo que estudiosos da segurança pública mostram que a circulação de armas é um problema pra combater a violência e a criminalidade.

Feita essa explicação, em 2020, portanto um ano depois do decreto do Bolsonaro, o presidente deu uma outra versão sobre os motivos pelos quais ele achava que tinha que ampliar o porte e a posse de armas no Brasil. Ele falou isso numa reunião ministerial em abril de 2020.

Essa é aquela reunião que ficou famosa porque o Sergio Moro depois denunciou uma interferência do Bolsonaro na Polícia Federal. O Moro era ministro da Justiça e disse que nessa ocasião ele se sentiu pressionado a interferir na PF a pedido do Bolsonaro. E essa interferência, segundo o Moro, era por uma questão política. O presidente queria ter um "acesso maior" ao diretor-geral da PF. Só que o Bolsonaro nunca explicou concretamente o motivo desse acesso mais ampliado. Mas nessa mesma reunião que eu to te contando, o Bolsonaro chegou a dizer.

JAIR BOLSONARO DURANTE REUNIÃO MINISTERIAL EM ABRIL DE 2020: "É putaria o tempo todo para me atingir, mexendo com a minha família. Já tentei trocar gente da segurança nossa no Rio de Janeiro, oficialmente, e não consegui. Isso acabou. Eu não vou esperar foder com a minha família toda, de sacanagem, ou amigos meus, porque eu não posso trocar alguém da segurança na ponta da linha que pertence à estrutura nossa. Vai trocar. Se não puder trocar, troco o chefe dele. Se não puder trocar o chefe, troco o ministro. E ponto final. Não estamos aqui para brincadeira".

JULIANA DAL PIVA: Essa história fez o Moro deixar o cargo de ministro da Justiça do governo Bolsonaro. Nessa reunião, o Bolsonaro ainda falou que o que ele queria era "todo mundo armado" pra "evitar uma ditadura".

JAIR BOLSONARO DURANTE REUNIÃO MINISTERIAL EM ABRIL DE 2020: "É escancarar a questão do armamento. Eu quero todo mundo armado. Porque povo armado jamais será escravizado".

JULIANA DAL PIVA: Entre o decreto e a reunião ministerial, o Bolsonaro, mudou o discurso. Então não era mais pra segurança e sim por uma questão política. Bom, depois desse decreto ele ainda fez outros ampliando o número de munições e tudo isso foi parar no STF porque o PT e PSB questionaram a legalidade das medidas.

E, quando a gente tava fechando essa temporada, o ministro Edson Fachin decidiu suspender os decretos em uma liminar por causa das eleições de 2022. Na opinião do ministro, a disputa "exaspera o risco de violência política". A decisão do ministro Fachin veio um pouco depois de alguns casos violentos. Em julho de 2022, um tesoureiro do PT em Foz do Iguaçu foi assassinado a tiros por um defensor do Bolsonaro.

Tô te contando todas essas coisas porque o próprio presidente já passou por um assalto e fez aquilo que todo mundo é orientado a fazer: não reagir e entregar tudo que os bandidos pedirem. A história desse roubo em 1995 simboliza muitos problemas da segurança pública. O primeiro deles é a conivência entre os traficantes de drogas e a polícia.

E a investigação sobre os responsáveis por esse caso também demonstra como o estado às vezes trata as pessoas de modo diferente. Criando o cidadão de primeira e de segunda classe. Resolvendo um crime e deixando outro impune. E, em geral, a solução do caso é mais rápida quando a vítima tem mais poder, o que quase nunca acontece para as vítimas mais pobres.

As consequências do roubo da moto ganham como cenário a favela de Acari, na zona norte do Rio. Um local marcado pela violência policial há décadas. E tudo isso, tanto o assalto, como a violência em Acari e a evolução desses grupos de milícias no Rio se cruza com a história de outro policial que se tornou um matador perigoso e conhecido.

Agora, eu to falando do Ronnie Lessa, acusado de assassinar a vereadora Marielle Franco em março de 2018. Ele e o Adriano da Nóbrega, de quem eu te falei ao longo dessa temporada, foram apontados pelo Ministério Público como dois dos maiores criminosos do Rio. O Ronnie Lessa não ganhou homenagem do clã Bolsonaro, mas recebeu ajuda e era vizinho do presidente até matar a Marielle Franco.

É bastante coisa, mas eu vou te ajudar a entender. Principalmente, como a violência e a corrupção policial, bem presentes nesses episódios, se conectaram ao longo do tempo, deixando vítimas lá atrás e ainda hoje. O mundo político completa e alimenta essa roda viva violenta. Eu sou Juliana Dal Piva e esse o quarto e último episódio da segunda temporada do UOL Investiga - Polícia Bandida e o Clã Bolsonaro.

VINHETA: "Tem gente que é favorável à milícia". "Violência se combate com a violência". "E, se for o caso, matando". "Esses grupos de extermínio, no meu entender, são muito bem-vindos". "Não se pode estigmatizar a milícia". "Isso é ser radical? Isso é ser racional".

JULIANA DAL PIVA: No dia 21 de junho de 2022, eu fui até o Hospital Ronaldo Gazolla, na zona norte do Rio. Foi lá que eu marquei de encontrar com a Bruna Aguiar. Ela é uma ativista de direitos humanos que mora em Acari, lá onde uma moto e uma arma do Bolsonaro foram recuperadas depois do roubo em Vila Isabel.

Você vai me ouvir chamando ela de Buba porque é assim que todo mundo conhece ela. Fazia anos que a Buba conhecia uma história sobre como as coisas do Bolsonaro voltaram pra casa dele. A portaria do hospital, onde a gente se encontrou, fica quase do lado de uma das entradas da favela de Acari.

JULIANA DAL PIVA: "Tudo bom? Prazer".

BRUNA AGUIAR, ATIVISTA: "Prazer".

JULIANA DAL PIVA: Eu fui até Acari para conversar com ela e também pedi pra Buba me mostrar onde funciona aquela que um dia ficou conhecida como
a "robauto". É assim que era chamado em 1995 um mercado a céu aberto que funciona aos domingos na avenida Pastor Martin Luther King Jr. Agora, tem até
uma estação de metrô por ali, a Acari/Fazenda. Nesse lugar, por muito tempo, foi muito comum encontrar à venda peças de carros roubados.

Mas, como a Buba me falou, hoje em dia, esse mercado continua funcionando aos domingos, mas se chama Feira de Acari. Pra gente conversar com calma e mais segurança, a Buba me levou pra sede do coletivo Fala Akari. Nessa caminhada, a gente falou do roubo da moto e da arma do Bolsonaro.

Ela também falou sobre o Deley, um defensor de direitos humanos da comunidade que acompanhou a história do assalto em 1995.

BRUNA AGUIAR, ATIVISTA: "O Deley é hoje do coletivo Fala Akari. Ele é um dos fundadores do coletivo junto comigo. E ele sempre contou essa história para a gente e depois também quando... tem pouco tempo, eu não lembro exatamente se foi... É, foi, acho que foi na campanha eleitoral para presidente, e isso meio que voltou à tona, porque o atual presidente falou sobre isso e o pessoal me procurou saber. E o Deley contou mais uma vez a história a público".

JULIANA DAL PIVA: "Mas ele já tinha contado para você antes sobre essa história?".

BRUNA AGUIAR, ATIVISTA: "Já, já".

JULIANA DAL PIVA: "Ele falava com alguma frequência sobre isso?".

BRUNA AGUIAR, ATIVISTA: "É, sim, porque a gente estava vendo já também essa infeliz ascensão do Bolsonaro na política para a população. Porque a gente sempre acompanhou os passos dele. Ele sempre comentou".

JULIANA DAL PIVA: "E o Deley hoje vive numa situação de proteção, né?".

BRUNA AGUIAR, ATIVISTA: "Sim".

JULIANA DAL PIVA: "Por causa de algumas denúncias que ele fez, né?".

BRUNA AGUIAR, ATIVISTA: "Sim, a gente faz protocolo de proteção, mas ele hoje está nesse protocolo um pouco mais intenso de não estar morando aqui. Eu volto, eu voltei já há um tempo".

JULIANA DAL PIVA: "Você chegou a sair também?".

BRUNA AGUIAR, ATIVISTA: "Eu saí em 2016 e 2018. No início de 2019 eu voltei e não saí mais".

JULIANA DAL PIVA: "Mas você saiu também por uma questão de denúncia, de proteção, de ameaça?".

BRUNA AGUIAR, ATIVISTA: "Isso".

JULIANA DAL PIVA: Eu já volto pra Buba, pra te contar das grandes dificuldades com que ela defende os moradores de Acari e das ameaças que ela sofre por causa disso. Só que antes, eu preciso te contar melhor o caso do assalto que o Bolsonaro sofreu. Nesse assalto, o Bolsonaro teve uma moto e uma pistola roubadas. E essa história ilustra muitos problemas da segurança pública. Além da violência do assalto, tem o roubo da pistola que acaba na mão de bandidos, o desmonte de peças de carros e a venda em feiras livres e como você já vai ver, a conivência com que alguns policiais tratam os traficantes de drogas.

O Bolsonaro deu uma versão sobre esse episódio. Ele contou essa história numa entrevista pro Roda Viva durante a campanha presidencial de 2018. A jornalista Daniela Lima perguntou do assalto e o Bolsonaro respondeu.

RODA VIVA EM 2018:

JAIR BOLSONARO: "Eu fui assaltado, sim. Eu estava numa motocicleta, fui rendido por dois caras: um desceu e pegou por trás, o outro pela frente. Dois dias depois, juntamente com o nono batalhão da Polícia Militar, nós recuperamos a arma e a motocicleta. E, por coincidência, o dono da favela de Acari, onde foi pega... foi pego lá, estava lá... ele apareceu morto um tempo depois. Eu não matei ninguém, nem fui atrás de ninguém, mas aconteceu".

DANIELA LIMA: "O senhor conhece de segurança pública. Ser abordado por um assaltante e ter uma arma, é mais provável que você seja alvo de uma agressão por estar armado ou não?".

JAIR BOLSONARO: "Eu continuo andando armado sempre que posso".

JULIANA DAL PIVA: E essa é a versão do Bolsonaro para um assalto que ele sofreu na terça-feira, 4 de julho de 1995. Naquela época, ele já era deputado federal, estava no segundo mandato, e morava em Vila Isabel com a Rogéria, a mãe do Flávio, do Carlos e do Eduardo.

Você ouviu como ele se coloca como parte da operação pra recuperar os pertences? O Bolsonaro diz que foi "juntamente com o 9º Batalhão" que ele recuperou as coisas e o chefe do tráfico local foi preso. Esse batalhão fica em Rocha Miranda, na zona norte do Rio, e você vai ouvir falar muito sobre ele nesse episódio, não porque era eficiente, mas por causa da brutalidade. Mas voltando para o assalto que o Bolsonaro sofreu, tem uma outra história sobre ele. Vou pedir pra Elenilce Bottari ler pra você a matéria do jornal O Globo de 5 de julho de 1995. Ela trabalhou comigo nas investigações dessa segunda temporada.

ELENILCE BOTTARI LÊ TRECHO DO GLOBO DE 1995: "Atacado ontem de manhã por dois assaltantes quando seguia de motocicleta por Vila Isabel, o deputado federal Jair Bolsonaro (PPR) conseguiu que a secretaria de segurança pública mobilizasse cerca de 50 policiais civis e militares para ajudá-lo a tentar recuperar a moto levada pelos bandidos. Além da moto modelo XLX 350, os assaltantes roubaram a pistola Glock calibre 380 do deputado que é oficial da reserva do Exército.

O assalto foi às 8h30 na rua Torres Homem. Os dois ladrões, que também estavam em uma moto, mandaram que ele descesse e levantasse as mãos. Quinze garis da Comlurb estavam ali perto, num caminhão e assistiram ao assalto. Antes de partir, um dos assaltantes resolveu revistar Bolsonaro quando achou a arma do deputado escondida sob o casaco: 'Imaginei que fossem me dar um tiro e fugir'".

JULIANA DAL PIVA: Outros jornais também publicaram a notícia. Para a Tribuna da Imprensa, Bolsonaro disse: "Mesmo armado me senti indefeso". Ele registrou o assalto na 20ª DP, no bairro do Grajaú, que fica na zona norte do Rio. Depois do registro, o Bolsonaro saiu com dois grupos de policiais em direção ao Jacarezinho, uma outra favela da mesma região.

O Bolsonaro achava que era pra lá que a moto tinha sido levada. Só que, quando ele chegou no Jacarezinho com alguns policiais, olheiros do tráfico dispararam fogos de artifício para avisar que a polícia estava ali. Com medo de confronto, mais seis unidades da polícia foram acionadas. Todo mundo deslocado para tentar achar a moto e a arma do Bolsonaro. Uns 50 policiais participaram revistando várias oficinas.

Não é todo dia que a secretaria de segurança coloca 50 policiais pra dar conta do roubo de uma moto e de uma pistola. Foi uma grande operação policial só pra ajudar o Bolsonaro. E não adiantou nada. Eles não acharam a moto ou mesmo a arma naquele dia.

Passaram alguns dias e um jornal registrou, no meio de várias outras notícias, que o 9º Batalhão tinha conseguido achar a moto e a arma do Bolsonaro depois de uma operação. Só que não teve operação nenhuma para resgatar a moto. Uma pessoa presenciou tudo, mas levou mais de 20 anos para contar como a moto e a arma do Bolsonaro voltaram para a casa dele. Essa testemunha é o Vanderley Cunha, o Deley, aquele que a Buba mencionou agora há pouco.

A primeira vez que o Deley falou disso foi com o jornalista Bruno Abbud, da revista Época, em 2018. Durante a produção desse podcast, eu procurei o Deley pra resgatar esse episódio também, mas ele não pode se encontrar comigo porque, como a Buba falou antes, o Deley foi ameaçado por uns policiais. Por causa disso, ele segue uns protocolos bem rígidos. Então a gente se falou pelo WhatsApp.

O Deley começou lembrando que, em 1995, ele era vice-presidente da associação de moradores. E, no dia do assalto, diferente do que o Bolsonaro pensou, a moto e a pistola não foram pro favela do Jacarezinho. Elas foram parar na "Roubauto", a feira lá em Acari.

VANDERLEY CUNHA, ATIVISTA: "Eu era vice-presidente da associação de moradores do bairro Acari e o rapaz que era chefe do tráfico na favela, Jorge Luís, de Acari, procurou a presidente da associação de moradores da favela, da favela próxima, perguntando se conhecia o capitão Bolsonaro, porque havia aparecido uma moto dele, uma pistola, que já tinha sido roubado por um rapaz da favela. E se era possível devolver. Primeiro, porque ele temia, com a visibilidade que teve a matéria no jornal, no RJTV, se descobrisse que a moto e a pistola veio parar na favela e houvesse uma ocupação do Exército. Segundo que, para ele, a moto foi oferecida para ele pelo rapaz que roubou e não tinha interesse porque era uma moto velha, com pneu careca. Ele não tinha nenhum interesse".

JULIANA DAL PIVA: O Deley disse que por causa da militância política ele conhecia integrantes de partidos, pessoal da Câmara Municipal e até uns vereadores. Então ele resolveu fazer contato com o 9º Batalhão e com o gabinete da então vereadora Rogéria Bolsonaro para negociar essa devolução dos pertences.

VANDERLEY CUNHA, ATIVISTA: "Falei da intenção de ser devolvida a moto. Foi marcada a presença dos moradores nesse contato com o comandante do 9º Batalhão, o coronel Alves. Ele esteve na favela, no carro, com dois carros descaracterizados. Eu pessoalmente fiquei na praça Roberto Carlos, era tipo 10h30, 11h, mais ou menos. O Coronel Alves saiu do carro descaracterizado, com o motorista no carro. Ele e o capitão Décio, que era chefe de operações. Enfim, ele abriu o bagageiro, viu a pistola, viu a moto. O capitão Décio montou na moto. O coronel entrou no carro e foram embora".

JULIANA DAL PIVA: E aí, depois que o Deley acompanhou a entrega da moto e a pistola para o coronel, ele voltou para casa. Naquela semana, o jornal O Globo publicou que "a dica do paradeiro dos pertences do deputado foi passada por um informante". Já o jornal A Notícia chegou a relatar que os itens roubados haviam sido recuperados mediante intenso confronto.

E esse zunzunzum de confronto deixou o chefe do tráfico de Acari muito irritado. Afinal, segundo o Deley, o Jorge Luis tinha mandado devolver a moto e a arma. Então o Jorge Luís foi tirar satisfação com o Deley por causa daquilo.

VANDERLEY CUNHA, ATIVISTA: "O Jorge Luís ficou muito chateado, pressionou a mim e chamou a mim, dona Genilda e seu Heraldo, que era presidente da associação de moradores, para conversar. Eu falei para ele que eu poderia ligar para o gabinete da vereadora, falar com o capitão novamente".

JULIANA DAL PIVA: Aqui, pra ficar bem claro, o Deley está falando de ligar pro Bolsonaro. Vamos ouvir o resto do relato dele.

VANDERLEY CUNHA, ATIVISTA: "Foi feito, eu liguei, falei com ele, expliquei como é que tinha sido devolvida a moto realmente, que não havia tido nenhuma troca de tiro. Ele agradeceu, perguntou se podia fazer campanha na favela, eu expliquei para ele que favela não tem nenhum problema em militares do Exército, Marinha e Aeronáutica fazerem campanha".

JULIANA DAL PIVA: Sobre essa parte da história, o Bolsonaro nunca disse nada. E esse telefonema do Deley também não aliviou as coisas para o traficante Jorge Luís, que passou oito meses sendo procurado até ser preso na Bahia.

Antes de avançar tanto no tempo, um parêntese aqui. Depois de uns 20 dias do assalto, aconteceu uma situação bastante inusitada. O Bolsonaro virou exemplo, mas não do que ele defende. O então secretário de segurança do Rio, Nilton Cerqueira, usou o Bolsonaro para justificar um plano para coibir a venda irregular de armas e a liberação indiscriminada do porte de arma.

Pra você entender, os dois eram amigos. O secretário conhecia o Bolsonaro fazia um tempo. O Cerqueira era general da reserva do Exército e também integrou o grupo de militares que fez parte da repressão política na ditadura militar. Ele até foi denunciado por participar do atentado do Riocentro, mas morreu em janeiro de 2022 sem ser julgado por isso. A jornalista Elenilce Bottari vai ler um trecho de uma notícia que saiu no Jornal do Brasil no dia 25 de julho de 1995, em que o Cerqueira criticou a ampliação do porte citando o caso do Bolsonaro.

ELENILCE BOTTARI LÊ TRECHO DO JORNAL DO BRASIL DE 1995: "Cerqueira alegou que os fuzis e carabinas apreendidos são usados por forças armadas em tempos de guerra. 'A arma de guerra é uma arma de poder de destruição terrível. Nós não podemos entender uma polícia com este armamento. Mesmo porque o impacto desse projétil causa danos irreparáveis. Eu disse ao governador que não via a necessidade de a polícia ser dotada de tantas armas de guerra'.

Segundo ele, as armas que estão nas mãos de traficantes têm quatro procedências: desvio de depósitos das Forças Armadas, importações fraudulentas, contrabando e assalto a sentinelas militares. A secretaria prepara um plano para evitar a venda irregular e indiscriminada do porte de armas. 'Estamos observando critérios muito rigorosos, até mesmo o porte de arma para empresários que alegam ser alvo de sequestro. O porte não dá segurança a ninguém porque num assalto ou sequestro existe o fato surpresa'. O secretário lembrou que o deputado Jair Bolsonaro, um capitão combatente da tropa de elite paraquedista, foi surpreendido e dominado por marginais".

JULIANA DAL PIVA: Bom, você ouviu que até o Nilton Cerqueira opinava que ampliar o porte de arma era um problema. Em 2 de setembro de 1995, apenas dois meses depois do episódio da moto, o jornal o Globo registrou uma nota com o título "Mira". O texto relatava que ao ver um assalto, o Bolsonaro puxou a arma dele e atirou oito vezes. Só que ele errou todos os tiros e os bandidos fugiram.

Só que a história do roubo não acabou quando a moto e a pistola voltaram para o Bolsonaro. Na semana do roubo da moto, a polícia do Nilton Cerqueira mandou organizar uma megaoperação contra o narcotráfico em favelas da zona norte. Policiais civis e militares incluindo até gente que trabalhava em funções administrativas da PM acabou indo para a missão.

Um helicóptero da Polícia Civil sobrevoou o Jacarezinho. Fuzis e metralhadoras, confiscados no Morro do Turano e no dos Macacos. Traficantes foram presos. Quinze quilos de maconha e 10 mil papelotes de cocaína foram apreendidos em Acari. A operação foi enorme, mas quem vivia naqueles bairros já estava acostumado com a violência. Especialmente, com o 9º Batalhão de Polícia Militar do Rio que atuava lá em Acari.

Os cinco anos que antecederam o roubo da moto do Bolsonaro foram marcados por muita violência policial na região norte do Rio. Chacinas que ficaram na história. A primeira história que eu preciso te contar é justamente a Chacina de Acari em 26 de julho de 1990. Nesse dia, 11 jovens da comunidade desapareceram.

TRECHO DE TELEJORNAL DE 1990: "Onze moradores de Acari se refugiaram em Magé, num sítio na Baixada Fluminense, mas desapareceram dias depois. Policiais são apontados como os autores do crime. Vieram cobrar ouro e jóias. Sem o material em mãos, todos teriam sido torturados e mortos.

A Chacina de Acari pode ser considerada uma das mais emblemáticas do estado. O grupo, conhecido como Mães de Acari, foi formado para tentar, por conta própria, encontrar as vítimas e os culpados. Em 93, a líder do grupo, Edmea da Silva Euzébio, é executada na Praça 11.

A amiga dela tenta fugir, mas também é assassinada. Dias antes, Edmea teria entregue à Justiça os nomes dos supostos matadores do filho. O inquérito sobre a morte dela traz sete nomes, entre eles o do então deputado e ex-comandante do batalhão de Rocha Miranda, Emir Larangeira. A ordem para matar teria partido do gabinete dele. O deputado fazia parte de um grupo de extermínio conhecido como Cavalos Corredores, que também estava envolvido na chacina de Vigário Geral".

JULIANA DAL PIVA: Você ouviu ali na notícia que aqueles policiais envolvidos na chacina ficaram conhecidos pelos moradores na região como Cavalos Corredores. O termo vem da violência com que esse grupo de extermínio agia nas comunidades da região. Eles entravam correndo e atirando por todos os lados.

Como você ouviu, o coronel Emir Larangeira, que você ouviu no primeiro episódio, até chegou a ser acusado de ser o chefe dos Cavalos Corredores e teve o nome envolvido na morte de uma das mães de Acari. Algum tempo depois, ele também vai aparecer envolvido em outro caso. A chacina de Vigário Geral, outra favela da zona norte.

Em 29 de agosto de 1993, dezenas de policiais encapuzados invadiram a comunidade de Vigário Geral para vingar a morte de quatro policiais militares do 9º batalhão, aquele que eu te falei agora há pouco, dos Cavalos Corredores. Os policiais que morreram estavam na comunidade para extorquir traficantes, mas acabaram assassinados numa emboscada. Os colegas então foram vingar as execuções de colegas de farda. Ao invadirem Vigário Geral na noite seguinte, a tropa mascarada não encontrou nenhum dos criminosos envolvidos no crime. Mas, por vingança, executaram 21 moradores.

TRECHO DE JORNAL DA GLOBO DE 1993: "Mais de 30 homens mascarados usando bombas e metralhadoras invadiram a favela de Vigário Geral, no subúrbio do Rio. Os matadores entraram na favela pouco depois da meia-noite. Um grupo chegou de carro pela favela vizinha, a Parada de Lucas. Outros dois entraram a pé, atravessando duas passarelas sobre a linha do trem. Os matadores abriram fogo contra várias pessoas nas ruas. Invadiram bares e casas, metralhando famílias inteiras".

JULIANA DAL PIVA: O coronel Emir diz que ele não esteve envolvido nos crimes. Segundo Emir, o responsável pela morte da Edmeia foi o traficante Elias Maluco. Naquela época, o Emir era deputado estadual e chegou a convencer alguns dos 33 policiais presos durante o processo a juntarem provas pra mostrar quem tinha realmente participado da chacina de Vigário Geral. Tudo aquilo depois foi levado pro MP e usado para condenar dez policiais envolvidos.

Mas quem estudou essa chacina acredita que nem tudo foi esclarecido. Como o desembargador José Muiños Piñeiro, que foi um dos promotores do caso. O desembargador acredita que ali estava se formando uma espécie de milícia.

JOSÉ MUIÑOS PIÑEIRO, DESEMBARGADOR: "Eu não sou estudioso disso, mas eu posso afirmar que certamente, se não era o início das milícias, contribuiu porque, o que você tinha, uma organização criminosa formada por policiais de vários batalhões e também com alcaguetes e até policiais civis que extorquiam traficantes e matavam traficantes. Se não era uma milícia, é o início de uma milícia propriamente. Aí tem toda uma análise sociológica, mas o que eu vi ali era uma milícia".

JULIANA DAL PIVA: Sobre esse início das milícias, o coronel Emir Larangeira contou um episódio que aconteceu em 1990. Ele diz que foi convidado por um policial do 9º batalhão, para conhecer um movimento de policiais que se reuniam clandestinamente para combinar ataques a comunidades dominadas por traficantes. Parecia um grupo de extermínio, mas também com algumas ideias dos milicianos de agora.

EMIR LARANGEIRA: "Eles se confraternizavam mas depois saíam para, por exemplo, um PM de um batalhão qualquer ameaçado de morte por um traficante, o motivo né. E depois que eles se alimentavam ali, e tomavam um chope, eles iam em bloco atacar esse traficante que estava ameaçando de morte um PM daquele grupo, entendeu?. Foi a partir desse momento que eu comecei a perceber qual a razão das mineiras. É claro que eles aproveitavam e, se tivesse algum bem, um valor, arma, qualquer coisa, na mão desses traficantes, eles tomavam tudo. E muitas vezes matavam.

Não havia nenhum domínio de território. Eles entravam e saíam, davam uma sacudida, como eles chamavam, e saíam. Não tinham domínio de território. Essa percepção de domínio de território eu desconheço o momento em que ela começa. mas a gente percebe que houve uma evolução para o fato de que eles, fazendo essas mineiras maiores, vamos dizer assim, principalmente de vingança, e proteção de alguém do próprio grupo, eles começaram a perceber que eles eram mais poderosos do que os criminosos que estavam dominando as comunidades. Assim que o negócio evoluiu".

JULIANA DAL PIVA: As histórias das chacinas e desse início das milícias mostram como eram alguns policiais desse 9º Batalhão, o mesmo que negociou a devolução da moto e da arma do Bolsonaro. E, apesar de não ter contado tudo, o próprio Bolsonaro disse que se envolveu diretamente na busca.

JAIR BOLSONARO NO RODA VIVA EM 2018: "Dois dias depois, juntamente com o nono batalhão da Polícia Militar, nós recuperamos a arma e a motocicleta e por coincidência, o dono da favela de Acari, onde foi pega, foi pego lá. Lá estava lá. Ele apareceu morto um tempo depois, rápido. Eu não matei ninguém, nem fui atrás de ninguém. Mas aconteceu".

JULIANA DAL PIVA: Mas espera um pouco. Eu já volto com "UOL Investiga - Polícia Bandida e o Clã Bolsonaro".

INTERVALO

JULIANA DAL PIVA: Como eu tinha falado, levou uns oito meses, mas a polícia prendeu o Jorge Luís, o chefe do tráfico de Acari, aquele que mandou devolver a moto e a arma do Bolsonaro. O que aconteceu foi o seguinte. Em 1996, depois de várias operações, a polícia prendeu o Jorge Luís, em Salvador, na Bahia.

Ele foi preso por volta das 11 da noite. Horas depois, de manhã, o traficante foi encontrado com uma camisa presa amarrada no pescoço e pendurado junto à grade de ferro que tinha na saída de ventilação da cela. Os pés estavam suspensos 12 centímetros do chão. Peritos disseram que foi um suícidio porque ele saberia fazer o nó por ter servido a Marinha. Só que aquela história não convenceu os familiares, e o governador Marcello Alencar divulgou uma nota pedindo investigações e chamou o enforcamento de "suposto suicídio". Para o governador da época, a morte impediu um depoimento de "grande valor" porque Jorge Luís tinha relações com vários outros importantes traficantes daquela época.

Eu e a Elenilce pedimos pra Polícia Civil a cópia do inquérito do caso, mas a polícia não cedeu. Então não deu pra saber se teve perícia, se o caso foi concluído, ou se ficou simplesmente parado todos esses anos.

Naquela época, a Marcia Vieira, viúva de Jorge Luís, disse que ele nunca tinha sido militar e e duvidou que ele fosse capaz de dar aquele nó. Disse que policiais costumavam pedir dinheiro para Jorge Luís. Na última vez que ele foi detido pagou R$ 500 mil pra não ser preso.

E as consequências do roubo não pararam por aí. Pesquisando os documentos do caso, a gente descobriu o quanto a polícia pode ser contraditória e negligente. Foi criada quase uma força tarefa para recuperar as coisas do Bolsonaro, só que essa mesma polícia não foi capaz de denunciar o assassinato da viúva do Jorge Luís e da mãe dela, um mês depois da morte do traficante.

Em 9 de abril de 1996, policiais rodoviários encontraram dois corpos de mulheres com vários tiros no peito e na cabeça, às margens do km 178 da rodovia Presidente Dutra, em Nova Iguaçu. Assim estavam os corpos da Marcia Vieira, viúva de Jorge Luís e da mãe dela, Therezinha de Lacerda.

Para tentar entender o que aconteceu com elas, eu e a Elenilce pedimos o desarquivamento do inquérito à 4ª Vara Criminal de Nova Iguaçu. E quando a gente leu os documentos, descobrimos que a polícia recebeu várias informações que ajudavam a esclarecer o caso. Mas, apesar disso, a delegacia não deu andamento e os assassinos nunca chegaram ao Judiciário para julgamento. Por anos, a polícia deixou o inquérito parado.

Segundo os autos do processo, no dia 7 de maio de 1996, a polícia prendeu um homem chamado José Castro, o Lacraia. A polícia identificou ele como segurança do Jorge Luís de Acari. O Lacraia foi localizado a partir de uma denúncia anônima recebida por policiais do Batalhão de Copacabana. Eles que atravessaram mais de 60 quilômetros, passando por vários bairros e dois municípios para prender o Lacraia numa comunidade conhecida como Borocoxó, em Piabetá, distrito de Magé.

A história que a polícia diz ter descoberto é a seguinte: o Lacraia e outros três traficantes teriam sequestrado a Marcia e a Therezinha quando as duas voltaram a Acari. Entre esses traficantes, estava o Mauro dos Santos, que era irmão do Jorge Luís e queria ficar com os bens do irmão morto. As duas teriam sido executadas na favela, a mando do Mauro, e os corpos foram largados na Dutra.

Só que nos autos, a família disse que nunca soube de herança e nem apareceu qualquer prova da existência disso. Em 7 de maio de 1996, Lacraia chegou a ser preso em Magé, numa operação feita por policiais que investigavam o desvio de armas. Mas a prisão dele não fez a polícia evoluir na investigação da morte das duas mulheres. A única denúncia que o Lacraia respondeu naquela época foi de desvio de duas pistolas e algumas munições, mas isso não gerou condenação e ele acabou solto.

Já o caso dos assassinatos permaneceu parado, esquecido no tempo, até que em 2005, o inquérito foi arquivado. E durante esses anos todos a polícia registrou repetidamente nos autos "Tendo em vista a carência de funcionários frente ao grande número de feitos e às ocorrências diárias, não foi possível dar seguimento ao despacho anterior".

Ou seja, a polícia nunca mais fez esforços para prender o Lacraia e os outros acusados pelo crime. Com isso, as mortes da Márcia e da Therezinha acabaram impunes. Mas eu ainda não terminei de te contar todas as histórias que se cruzaram a partir do assalto do Bolsonaro.

O Deley diz que reencontrou o coronel Alves, aquele que comandava o 9º Batalhão, responsável pela região de Acari, e que também estava presente na devolução da moto e da pistola do Bolsonaro.

VANDERLEY CUNHA, ATIVISTA: "Vários jornais da época saíram que o capitão Bolsonaro teria pego a moto no pátio do 9º batalhão em Rocha Miranda. Eu vi algumas matérias antigas de jornal nessa época. A informação que eu tenho diferente dessa é de que o? dada pelo Coronel Alves em 2005, é que o Cabo Lessa teria levado a moto na casa do capitão Bolsonaro na Vila Isabel. Ponto".

JULIANA DAL PIVA: Segundo o Deley, o cabo Lessa era o Ronnie Lessa. Você talvez já saiba: o Ronnie Lessa é acusado de ser um dos assassinos da vereadora Marielle Franco, em março de 2018. A gente apurou que o Lessa era soldado do Bope em 1995, mas o Deley conta que o coronel Alves relatou a presença dele naquela época.

VANDERLEY CUNHA, ATIVISTA: "A informação dada por ele é que o cabo Lessa teria levado a moto, entregue a moto na casa do Bolsonaro na rua Torres Homem. O que contrasta com a informação que li no jornal de que o capitão Bolsonaro teria recuperado a moto, teria pego a moto no pátio do nono batalhão. Teria ido lá e pego a moto. Basicamente é isso que eu tenho. A única certeza que eu tenho é que o cabo Lessa, que foi reformado como sargento, de alguma maneira, por 4, 5 minutos, 10 minutos, conheceu o capitão Bolsonaro e a família Bolsonaro".

JULIANA DAL PIVA: Ao se defender da acusação do assassinato da vereadora Marielle Franco, o Ronnie Lessa costuma negar que tenha participado do crime.

Eu pedi uma entrevista para o Ronnie Lessa, mas ele não quis gravar. Então no dia 5 de setembro, eu procurei o advogado dele para falar sobre esse episódio da devolução da moto e da arma do Bolsonaro. O que o advogado me disse é que levaria um mês para conseguir acessar o cliente na prisão em Campo Grande, em Mato Grosso do Sul. Por isso, ele não ia retornar antes da publicação do podcast.

Eu perguntei pro presidente Jair Bolsonaro se ele se recordava do Ronnie Lessa ter participado da devolução dos pertences em 1995. A equipe de assessoria do presidente enviou uma nota que eu vou ler pra você:

"Sobre a devolução de bens roubados do presidente Jair Bolsonaro há mais de 20 anos, não há muito o que comentar. Os bens foram recuperados e devolvidos pela polícia".

E a vida do Bolsonaro e a do Ronnie Lessa vai se cruzando outras vezes. Mesmo que os dois sempre digam que mal se conheciam. O Ronnie Lessa era vizinho do Bolsonaro no condomínio Vivendas da Barra, aquele em que o presidente morava antes da posse.

Numa entrevista pras jornalistas Marina Lang e Sofia Cerqueira, publicada na revista Veja, em março de 2022, o Ronnie Lessa admitiu que teve ajuda do Bolsonaro durante um tratamento médico para colocar uma prótese em 2009.

O Lessa perdeu uma perna após um atentado quando ele ainda tava na polícia, mas já trabalhava pro jogo do bicho.

O Ronnie Lessa foi atendido pela ABBR, a Associação Brasileira Beneficente de Reabilitação, e o Bolsonaro era patrono da associação.

RONNIE LESSA: "A ABBR tem um convênio, não é com o Ronnie Lessa ou com o Jair Bolsonaro não. Ela tem com a polícia, tanto com a Polícia Civil como a Polícia Militar. Todos têm que ir pra lá. E o Bolsonaro, por si só, como é palanque pra ele, é uma questão... Ele gosta de ajudar a polícia, porque, na verdade, foi quem botou ele no poder. Então, quando ele sabe de uma pessoa, ele vai interferir. Mas, na verdade, ele não estava ajudando o Ronnie, ele estava ajudando um policial que perdeu a perna".

JULIANA DAL PIVA: Para recapitular, o Bolsonaro foi assaltado, perdeu uma moto e uma arma. E que para recuperar a arma e a moto, o Bolsonaro contou não apenas com a boa vontade do chefe do tráfico na favela, Jorge Luís, como também com o compadrio desses traficantes com os integrantes do nono batalhão, em Rocha Miranda. E foi ali que ele pode ter conhecido o Ronnie Lessa, que décadas depois seria acusado pela morte da vereadora Marielle Franco.

Nos outros episódios, eu te falei do Adriano da Nóbrega, aquele ex-capitão do Bope que o Bolsonaro homenageou e depois virou um matador de aluguel. O Adriano conhecia o Ronnie Lessa desde o tempo da polícia. A diferença é que o Lessa não era próximo do Bolsonaro como o Adriano. O Lessa, por exemplo, não ganhou homenagem dos Bolsonaro. Ele ganhou de outros políticos.

Mas o Lessa também fez parte desse momento de muita violência nos anos 90. Ele também foi do Exército e como eu te falei no primeiro episódio, ele ganhou uma carteirinha da Scuderie Le Cocq em 1989, antes mesmo de entrar pra polícia em 1991. O Lessa serviu nesse mesmo 9º Batalhão de Rocha Miranda, esse em que os policiais eram chamados de Cavalos Corredores. Ele ficou por lá entre 1997 e 1999 e se envolveu em uma série de mortes durante operações na favela. Ele também ganhou a Gratificação Faroeste, a mesma que o Queiroz ganhou em 1997.

Em 1999, o Lessa foi pra outro batalhão e depois seguiu carreira na polícia até acabar preso pela morte da Marielle, um ano depois do crime, em 2019. Tanto o Lessa como o Adriano da Nóbrega acumularam vários inquéritos sem solução de mortes durante as operações policiais. Esse tanto de inquéritos sem solução deixa um rastro de impunidade, mas também faz com que esses matadores se especializem e muitos são cooptados pelo crime organizado. O Adriano e o Ronnie Lessa passaram a carreira deles na polícia sem responder a vários inquéritos por mortes em operações policiais. Para o sociólogo Daniel Hirata, esse cenário de impunidade alimenta o cenário também para a corrupção policial.

SOCIÓLOGO DANIEL HIRATA: "A brutalidade policial, corrupção policial fazem parte de um mesmo círculo, vicioso, né, enfim, que inclusive é alimentado pela pela falta de responsabilização legal, né, Nós temos nós temos dados em que mais de noventa e nove por cento dos inquéritos sobre morte perpetradas por policiais, eles são pedido do próprio Ministério Público. Você tem brutalidade, corrupção e falta de responsabilidade. Impunidade, né? Que cria um círculo vicioso que alimenta as próprias milícias, né, Enfim, esse que é o problema maior do Rio de Janeiro. Que que, via de regra, muita gente não consegue compreender. É que esses elementos eles favorecem crime, não a ordem no Rio de Janeiro, né? E no limite, são inclusive ameaças ao próprio Estado de Direito, né?".

JULIANA DAL PIVA: Nesse círculo vicioso, surgiram vários homenageados pelo clã Bolsonaro. Primeiro, a violência durante as operações policiais, depois as condecorações por uma suposta bravura em função dessas ações com mortes muitas vezes nem investigadas. Na sequência, alguns desses policiais aparecem envolvidos em organizações criminosas.

O caso mais recente envolve o ex-secretário de Polícia Civil, delegado Allan Turnowski. Ele foi preso no dia 9 de setembro de 2022. Os promotores dizem que Allan Turnowski atuava como agente duplo na disputa entre os bicheiros. Ele usava o sargento Ronnie Lessa para obter informações e repassar para o grupo adversário.

Antes, o delegado tava fazendo campanha pra deputado federal pelo partido do Bolsonaro. Aliás, foi indicado para o cargo de chefe de polícia civil pelo Flávio Bolsonaro. Além disso, o Allan Turnowski fazia campanha usando o número de mortos de uma chacina do Jacarezinho em 2021. O delegado nega as acusações, mas a denúncia ainda está tramitando.

Mais uma coisa. O delegado recebeu a medalha Tiradentes, em 29 de novembro de 2010, por um pedido do agora senador Flávio Bolsonaro e do ex-deputado Paulo Mello. O Allan Turnowski também foi quem pediu um padrinho pro Queiroz quando o ex-assessor do Flávio trabalhou um tempo com a Polícia Civil. Te contei disso no episódio 2.

Mas essa lógica de valorização da violência não precisava funcionar assim e existem até resultados disso.

O coronel Robson Rodrigues que chegou a comando do Estado-Maior da PM sempre trabalhou a partir de pesquisas e evidências e em determinado momento afastou os policiais que registravam mais mortes. Isso deu um impacto importante pra segurança desses locais.

CORONEL ROBSON RODRIGUES: "A gente precisava fazer isso. Estava num movimento de fazer toda uma análise da estrutura que levou àquilo, né. Então, a gente começou a pegar esses policiais que mais se envolviam [nessas ocorrências] para fazer uma análise, inclusive de sofrimento mental, né. Da capacidade técnica dele, a capacidade cognitiva. Para saber que estruturas, ou não cumpriam o seu papel no controle, ou numa melhor qualificação desse policial, ou não cumpriam seu papel de prevenção de saúde, saúde física, saúde mental, prevenção correcional.

Então, todas essas estruturas eram questionadas a partir desses resultados que a gente colhia lá na ponta. A gente buscou alguns especialistas para trabalhar em indicadores para a gente poder ter um monitoramento mais complexo. E a gente conseguiu, inclusive,reduzir de uma maneira significante a letalidade. Conseguimos analisar,tirarmos algumas conclusões. Os policiais, quando tinham comprometidas as suas estruturas mentais, principalmente aquelas de tomada de decisão, eles eram um risco, não só para ele, pra família dele. Então, você tinha ali uma das explicações para a polícia que mais mata e que mais morre".

JULIANA DAL PIVA: Mas essa atuação preocupada com a saúde mental dos policiais acabou. A crise financeira no estado do Rio de Janeiro, que chegou até as UPPs, acabou com todo aquele projeto que tinha reduzido os homicídios. Entre maio de 2021 e junho de 2022, ocorreram três das quatro mais violentas operações desde 2007. Só nessas três operações, morreram 70 pessoas. Em um dos casos, em 21 de julho de 2021, 17 pessoas morreram durante uma operação no Complexo do Alemão. O Bolsonaro só lamentou a morte do cabo da PM Bruno de Paula Costa.

JAIR BOLSONARO EM 2021: "Hoje eu liguei pra... Atender a irmã do cabo da Polícia Militar executado pela bandidagem ontem quando chegava na UPP".

REPÓRTER: "Teve uma mãe de três filhos que foi morta, presidente".

JAIR BOLSONARO EM 2021: "Olha, se essa mãe inocente... Se eu ligar pra todo mundo que morre todo dia eu estou, né. Esse fato deu repercussão. É um cabo paraquedista. É meu irmão. E ponto final".

JULIANA DAL PIVA: O presidente da República não teve uma palavra de solidariedade sobre a morte da moradora Letícia Marinho Salles, 50 anos, que, segundo parentes, passava de carro no momento do tiroteio e teria sido atingida por um tiro disparado por um policial.

O desembargador Fábio Uchoa Montenegro, do Tribunal de Justiça do Rio, acompanhou casos assim nos 27 anos em que ele trabalha como magistrado. Ele assumiu interinamente a 4ª Vara Criminal de São Gonçalo depois do assassinato da juíza Patrícia Acioli, em 2011. A juíza ficou conhecida por punir casos de autos de resistência envolvendo policiais do 7º Batalhão de São Gonçalo.

Por muitos anos, o desembargador Fábio Uchoa Montenegro também acompanhou milhares de autos de resistência porque ele era o titular do 1º Tribunal do Júri da capital.

JULIANA DAL PIVA: "A não investigação, a investigação malfeita, não punição desses episódios, o senhor acha que contribui para que, enfim, a criminalidade venha até para dentro da própria polícia, porque a gente vê esse caminho, né?".

DESEMBARGADOR FÁBIO UCHOA DE MONTENEGRO: "Claro. É a impunidade fomentando a criminalidade".

O desembargador Fábio Uchoa de Montenegro tem algumas sugestões. Por causa da longa experiência, ele foi ouvido na CPI dos autos de resistência na Alerj, em 2017. E sugeriu uma série de recomendações que poderiam diminuir a violência e garantir o trabalho dos policiais.

DESEMBARGADOR FÁBIO UCHOA DE MONTENEGRO: "Então, a minha sugestão, quando for ter essas operações, ser comunicado ao Ministério Público, dizendo o local para pelo menos dois promotores ficarem na delegacia para acompanharem o registro de ocorrência na delegacia. Então, acionar o bombeiro para disponibilizar uma ou duas viaturas, seja lá do batalhão que for, para acompanhar a diligência. Requisitar a perícia para fazer a perícia imediata no local, se possível notificando o Ministério Público, que já está na delegacia, para acompanhar a perícia".

JULIANA DAL PIVA: O desembargador não está propondo nada que exija muito esforço das autoridades. Só um controle e uma organização mesmo.

DESEMBARGADOR FÁBIO UCHOA DE MONTENEGRO: "Veja que em nenhum momento eu estou querendo inibir a atuação da polícia, porque acho necessária e super importante para a ordem pública para a segurança das pessoas, mas eu acho que algum controle dessa atividade, tem que ter. Não é para eternizar um auto de resistência. Tem que ser uma apuração célere. O exame cadavérico é feito de um dia para o outro. Dois dias depois, às vezes, uma semana. Em via de regra dava para fazer com bastante celeridade, não precisa esperar seis meses".

JULIANA DAL PIVA: Enquanto autoridades e especialistas em segurança defendem a necessidade de controle da polícia, o Bolsonaro tentou até o último ano do mandato presidencial, aprovar o tal projeto de lei de excludente de ilicitude, aquele que, na prática, pode legalizar até mesmo execuções. Mas ele não conseguiu. O que ele conseguiu foi colocar muitas armas em circulação.

Segundo o Instituto Sou da Paz, uma organização dedicada ao assunto, o Bolsonaro editou 40 normas, que resultaram no afrouxamento da lei e garantiram um aumento explosivo no comércio de armas e munições: 994 milhões de munições vendidas de janeiro de 2019 a junho de 2022. Só no primeiro semestre deste ano, foram registradas, em média, 1.300 novas armas por dia por cidadãos. A diretora executiva do Sou da Paz, a socióloga Carolina Ricardo, falou das consequências disso.

CAROLINA RICARDO, DO INSTITUTO SOU DA PAZ: "Eu acho que tem enfim, né, algumas, algumas consequências bastante concretas. Acho que a primeira delas, que é meio óbvia, mas que é importante dizer. A gente hoje tem uma sociedade muito mais armada. Então, aquilo que a gente diz. É mais de 1 milhão de armas nas mãos de civis, né. Então é um pouco... Quase que assim... O modelo de sociedade em que as pessoas estão se armando freneticamente. Seja para uma ideia de legítima defesa se defender da violência, que já é ruim, porque você passa uma mensagem de que assim... O Estado não dá conta mesmo de garantir a segurança então que se exploda. Vamos investindo na lógica individual de todos contra todos, né? E tem um grupo aí que são os CACs que querem ter arma, porque, em tese, querem praticar tiro, querem? São interesses individuais, de grupos específicos, que acabam pautando a política e gerando essa sociedade muito mais armada".

JULIANA DAL PIVA: Enquanto com uma canetada, Bolsonaro liberou o acesso às armas e munições, ele não fez nada para melhorar a fiscalização do setor

CAROLINA RICARDO, DO INSTITUTO SOU DA PAZ: "Então é muita coisa e a gente vê uma diminuição também do número de fiscalizações, porque você não tem investimento, você tem menos fiscalização. E aí você começa de novo a ver denúncia, né? Você sabe que esses clubes de tiro acabam funcionando como despachante. Acaba sendo quase que é um grande, são grandes incentivadores da aquisição de armas de fogo, né?".

JULIANA DAL PIVA: A Carolina Ricardo, como vários outros especialistas do tema no Brasil, rebatem a ideia de que a redução de homicídios no país tenha qualquer relação com o aumento do número de armas. Porque isso é algo comum de ouvir na propaganda eleitoral do Bolsonaro. A Carolina acha que ainda vai demorar pra gente sentir todo o impacto que esse derrame de armas vai causar. Até porque as mortes com arma de fogo cresceram.

CAROLINA RICARDO, DO INSTITUTO SOU DA PAZ: "Todas as pesquisas sólidas e robustas que existem sobre o tema ou a grande maioria delas mostra que a relação é inversa, conforme você vai facilitando o acesso às armas, você vai tendo impactos em aumento de mortes violentas de alguns tipos de crime, Não necessariamente esse aumento ele automático, mas ele acontece, então a gente precisa primeiro esperar um pouco, embora estejamos vendo a consequência desse aumento, agora talvez não nas estatísticas globais. E eu vou falar disso em casos e tipos específicos de violência, mas talvez a gente demora um pouco pra sentir os impactos globais dessa desse aumento das armas em circulação. Dito isso, o que que a gente, então não dá pra dizer que essa é uma relação, Há mais armas, diminui os homicídios, não se sustenta. Isso é falácia, eleitoral eleitoreira. De um governo que não fez uma política de segurança pública série ao longo desses anos".

JULIANA DAL PIVA: No início desse episódio, eu te falei da Buba ia te contar mais sobre ela. A Buba trabalha faz algum tempo já como ativista e defensora de direitos humanos. Sabe o que ela mais faz? Garante a dignidade das pessoas. Quando tem operação policial, ela ajuda a proteger os moradores de agressões. O mesmo trabalho que ela aprendeu a fazer com o Deley. Mas isso tornou a Buba um alvo. Alvo desses policiais violentos que muitas vezes não respondem pelas mortes nas operações.

BRUNA AGUIAR, ATIVISTA: "A gente faz um acompanhamento, eu e Deley, principalmente. A gente sempre fez acompanhamento de familiares de vítima de violência policial ou das próprias vítimas. Quando as vítimas queriam denunciar ou quando isso gerava alguma espécie de... mesmo que não fosse para frente juridicamente, mas virava um dado no Ministério Público e tal. E eu por ser bem mais nova, era tecnológica, eu registrava as operações, registrava dano material em casa de morador".

JULIANA DAL PIVA: "Com celular?".

BRUNA AGUIAR, ATIVISTA: "Celular. Tira uma foto. Eu não costumava fazer vídeo porque nem era tão midiático assim. Ou então eu que era responsável por filtrar as fotos que os próprios moradores faziam e...".

JULIANA DAL PIVA: "E te mandavam no WhatsApp?".

BRUNA AGUIAR, ATIVISTA: "É. E publicar o que dava para publicar ou o que dava para guardar o que dava mandar para defensores. E obviamente com isso, a gente conseguiu que Acari tivesse uma maior visibilidade nessa questão das violações de direitos durante operação".

JULIANA DAL PIVA: E a Buba seguiu fazendo o trabalho dela, mas aquilo incomodava demais os policiais da região. Até porque se criou um Batalhão específico pra cuidar da região, o 41. E aí um dia, de tanto que a Buba fez denuncias, uns policiais resolveram sequestrar ela.

JULIANA DAL PIVA: "Me conta devagar o que aconteceu".

BRUNA AGUIAR, ATIVISTA: "Eu estava indo para o metrô, uma viatura oficial. Eles estavam parados e eu não tinha visto. E eu tinha mania de andar com os dois fones de ouvido. Até porque, na minha cabeça, ali 8 horas da manhã, porque eu chegava no meu trabalho em Laranjeira 9:30, então eu saía daqui um pouco mais cedo, 8, 8h10, no máximo. Era claro, era dia. Então, eu não tinha preocupação. Geralmente, é um horário que ainda tem bastante pessoa indo para o metrô. Nunca passou pela minha cabeça que alguma coisa pudesse acontecer comigo ali. E eu ainda contava com a possibilidade de ter câmera em frente ao hospital, porque tinha.

Enfim, eles me abordaram de transversal, eu já tava parada esperando para atravessar. Eles não vieram de frente do hospital ou pelo outro lado e me encontraram. Eles já estavam parados ali e quando eu parei para atravessar, eles tipo meio que atravessaram a pista. E aí eu escutei a buzina, eu olhei para trás e perguntei se era para mim. O policial que estava na frente falou que sim, eu achei que era uma abordagem de revista. Ele: 'A gente quer conversar com você, tem como você entrar?'. Falei: 'Você quer olhar minha bolsa, minha mochila? Para você olhar minha mochila, não preciso entrar na viatura'. O que estava atrás abaixou o vidro, estava com uma arma no colo e ele passou a mão no fuzil e falou: 'Se eu fosse você, eu entrava. A gente só quer conversar'.

Eu entrei e eles foram para aquela parte que dá na Dutra e ali é uma região de indústria, não tem pessoas passando o tempo todo, tem gente passando de carro, mas ninguém vai ficar olhando para o que tá acontecendo dentro de uma viatura. Pelo contrário, as pessoas, justamente pelo fato de ser uma região deserta e há um tempo atrás, já teve muito assalto ali, então as pessoas olham a viatura e elas associam a segurança. Ali eles começaram a me ameaçar. O que estava dirigindo me passou, pela postura dele, como se ele estivesse ali contra a vontade, ele mal olhava, ele abaixava a cabeça o tempo todo como quem não queria olhar o que estava acontecendo.

Eles pararam a viatura e foi quando eles começaram a falar um monte de besteira. O que estava na frente pegou e entregou para o que estava atrás a impressão de um artigo, essa entrevista que o diretor da ONG tinha dado falando sobre o que tinha acontecido aqui em Acari. E aquela coisa: 'Você é o tipo de pessoa que tem que morrer igual as pessoas que você defende'. E aí, ele amassou o papel e mandou eu engolir. Só que era humanamente impossível engolir um bolo de papel A4. Então eu fiquei com a garganta inflamada. Ele amassou e me deu para eu engolir, ele não enviou. Só que eu não conseguia, mas era o ato de humilhação, ele sabia que eu não ia conseguir, ele ria. O do volante não teve reação. Eles riam, mandou eu limpar o cano do fuzil com o dedo e aí ele ficava zoando falou: 'Nossa, que prazeroso ver a Buba limpando o meu fuzil, estou quase gozando'".

JULIANA DAL PIVA: Depois disso que a Buba contou, ela fala que os policiais soltaram ela na avenida Brasil e foi a primeira vez que ela precisou sair da casa dela em Acari para ir viver em outro lugar. Hoje ela voltou pra casa, mas também ainda é acompanhada por uma série de protocolos de segurança.

Mas a Buba não precisaria viver com medo se as denúncias que ela faz de violência policial tivessem apoio de políticos na Alerj. Se o Estado tivesse um controle efetivo da polícia. Se os PMs que agem fora da lei, os milicianos, fossem punidos. E não condecorados.

No início dessa temporada, a gente falou sobre como o Bolsonaro sempre defende que a polícia matar o que eles acham que é bandido seria algum tipo de solução pra segurança pública. Uma espécie de política da morte. Te falei de violência, mas também te falei muito sobre essa trajetória de policiais extremamente treinados que mudaram de lado. Deixaram o combate ao tráfico e se transformaram em criminosos, milicianos e matadores.

Violência. Corrupção e máfia. A roda viva do Rio de Janeiro. Você ouviu como a família Bolsonaro escolheu um discurso onde ela denunciava uma parte do crime, mas optava por ignorar que prestava homenagem para outros bandidos tão perigosos quanto os que ela dizia combater. Te contei sobre alguns dos personagens mais obscuros do Rio de Janeiro nos últimos anos. E a verdade é que pra que eles existissem várias pessoas em diferentes instituições falharam. Muita gente fez vista grossa aos bandidos de farda ou mesmo recebeu pra ignorar.

Ainda não dá pra saber onde tudo isso vai dar. E acho que a gente ainda também não sabe com exatidão todas as histórias da vida secreta do Jair e do clã Bolsonaro. Mesmo assim, você já sabe muito mais sobre o passado que eles tentam esquecer e entende mais sobre o presente que eles quiseram construir.

JAIR BOLSONARO DURANTE A CAMPANHA À PRESIDÊNCIA: "Aquele que esquece o seu passado está condenado a não ter futuro".

JULIANA DAL PIVA: Já as conclusões, como te disse antes, são suas.

O UOL Investiga: Polícia Bandida e o Clã Bolsonaro é apresentado por mim, Juliana Dal Piva. A reportagem e pesquisa foram feitas por mim, Juliana Dal Piva, pela Elenilce Bottari e pela Naomi Matsui. A Elenilce também fez algumas narrações desse episódio. O roteiro foi escrito por mim, Juliana Dal Piva, com revisão de Juliana Carpanez.

O desenho de som e a montagem são do João Pedro Pinheiro. A produção é da Natália Mota. O design é do Eric Fiori. A direção de arte é da Gisele Pungan e do René Cardillo. A coordenação é da Juliana Carpanez, da Lúcia Valentim Rodrigues, do Graciliano Rocha e do Flávio Costa. O projeto também conta com Alexandre Gimenez e Antoine Morel, gerentes de conteúdo, e Murilo Garavello, diretor de conteúdo do UOL. Agradecimentos a Pedro Cappeti, a Claudia Cotes e a Flávio Costa.