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UOL Investiga T2E3: Miliciano, herói de Bolsonaro criou empresa para matar

Juliana Dal Piva

Colunista do UOL

23/09/2022 04h01

O podcast UOL Investiga estreia nesta sexta-feira (23) sua segunda temporada, chamada "Polícia Bandida e o Clã Bolsonaro" —que você pode ouvir no arquivo acima, no YouTube do UOL e em todas as plataformas de podcast. Os quatro novos episódios já estão disponíveis.

Na segunda temporada, a colunista do UOL Juliana Dal Piva fala da relação da família Bolsonaro com agentes das forças de segurança que se tornaram milicianos e usaram seu treinamento para cometer crimes. Dezenas deles foram homenageados pelo clã ao longo de 20 anos. A jornalista traz ainda detalhes da relação da família Bolsonaro com Adriano Nóbrega, ex-policial militar morto em 2020 e apontado como chefe de assassinos de aluguel —Jair e Flávio inclusive fizeram visitas ao ex-capitão na prisão. Esta temporada tem também a história completa do roubo de uma moto do presidente em 1995, crime que mobilizou parte da polícia do Rio e simboliza vários problemas da segurança pública.

A primeira temporada, "A Vida Secreta de Jair", trouxe revelações sobre o envolvimento direto do presidente da República, Jair Bolsonaro, com a rachadinha —o esquema ilegal de entrega de salários de assessores quando exerceu seguidos mandatos de deputado federal.

No terceiro dos quatro novos episódios, Juliana Dal Piva revela como a família Bolsonaro ignorava as denúncias dos crimes de policiais durante a CPI das Milícias. Flávio e Carlos condecoraram 16 policiais denunciados como integrantes de organizações criminosas. Ao mesmo tempo, o ex-capitão do Bope Adriano Nóbrega crescia no mundo do crime.

Você pode ouvir UOL Investiga em plataformas como Spotify, Apple Podcasts, Google Podcasts, Amazon Music e YouTube. Abaixo, você confere a íntegra do roteiro do episódio 3.

"UOL Investiga - Polícia Bandida e o Clã Bolsonaro"

Episódio 3 - Herói de Bolsonaro criou empresa para matar

JULIANA DAL PIVA: Antes de começar, um aviso. Este episódio tem cenas fortes com descrições de violência e pode não ser adequado para todos os públicos.

JULIANA DAL PIVA: Numa manhã de junho de 2022, eu e a Elenilce Bottari, a minha colega que você já ouviu por aqui, fomos até a comunidade de Rio das Pedras, que fica na zona oeste do Rio de Janeiro.

JULIANA DAL PIVA: "Dá para ir andando?".

MOTORISTA: "A casa dele é ali. Eu vou estacionar aqui mesmo, ó".

JULIANA DAL PIVA: "Vamos lá. Brigadão".

JULIANA DAL PIVA: A gente chegou de táxi e depois caminhou um pouco na estrada de Jacarepaguá.

A gente foi até lá para encontrar um morador que eu vou chamar de "seu Alberto". Mas esse não é o verdadeiro nome dele. Eu vou usar esse nome para poder manter a identidade dele em sigilo, por uma questão de segurança. E segurança é uma questão importante nesse lugar.

Rio das Pedras é conhecida pelos crimes dos grupos de milícias que já passaram por ali. Organizações criminosas que já tiveram até vereadores e deputados.

É bastante tenso morar num lugar assim e só quem vive lá é que consegue dar a exata medida dessa situação. Por isso, a gente foi atrás de alguém que pudesse contar sobre essa realidade.

Mas, como o seu Alberto disse pra gente que não ia dar pra continuar a entrevista ali, nós ficamos só conversando um pouquinho sentados numa mesa de um boteco.

Alguns minutos depois, um homem sentou numa mesa quase do lado de onde a gente estava. O seu Alberto tinha sentado numa cadeira na minha frente e a Elenilce estava em outra quase do meu lado. Então, de onde eu tava, deu pra ver bem a mesa da frente e quando o homem chegou e pediu uma cerveja pro garçom.

Quando o homem sentou, eu também vi, rente à calça dele, que tinha um cabo. Eu levei uns segundos pra entender: ele estava armado.

Não consegui saber quem ele era, nem naquela hora nem depois. Também não sei se ele estava monitorando a nossa conversa ou não. O seu Alberto também disse que não conhecia. Mas aquele clima fez a gente sair de lá um pouco depois de tomar uma garrafa de água.

A tensão do seu Alberto ficou ainda mais nítida quando a gente estava caminhando na rua e a Elenilce levantou o celular para tirar uma foto. Naquela hora, ficou muito claro: o seu Alberto não se sentia seguro em Rio das Pedras.

Na nossa conversa, ele me ajudou a entender o porquê disso, e eu já vou te explicar. Mas resumindo: os grupos de milícias que passaram por ali, ano após ano, só deixaram mais medo e violência naquele lugar.

Nos bairros e favelas dominados por milícias, a ideia de segurança se desfaz imediatamente quando acontece alguma coisa que contraria os interesses desses grupos. E eles cresceram muito ao longo dos anos: já dominam 57% das favelas cariocas, segundo o Mapa dos Grupos Armados no Rio de Janeiro. Esse trabalho é produzido pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense.

O problema das milícias é tão profundo que as pessoas aprenderam a conviver com ele até por uma questão de sobrevivência. Mas há pouco mais de dez anos, em 2007, muita gente não via as milícias como um problema. Tratava como um mal menor.

Eu vou te mostrar o que o agora prefeito do Rio, o Eduardo Paes, disse em 2006, quando ele foi candidato a governador.

EDUARDO PAES DURANTE ENTREVISTA À GLOBO EM 2006: "Eu vou dar um exemplo que as pessoas sempre me perguntam como recuperar a soberania. Jacarepaguá, no Rio de Janeiro. É um bairro que a tal da polícia mineira é formada por policiais, por bombeiros? Trouxe tranquilidade para a população. Morro São José Operário. Era um dos morros mais violentos desse estado e agora um dos lugares mais tranquilos. Vila Sapê, ali em Curicica. Ou seja, com ação, com inteligência, você tem como fazer com que o Estado retome a soberania".

JULIANA DAL PIVA: O tempo passou e o Eduardo Paes mudou de discurso. Agora ele também critica as milícias. Mas, lá atrás, ele não era o único a dizer isso. O ex-prefeito do Rio Cesar Maia era outro que dizia que o tráfico era o grande problema do Rio.

Em 2006, o então prefeito do Rio chamou as milícias de "autodefesas comunitárias". Pro jornal O Globo, ele disse que não tinha criado o termo e que as milícias eram um mal menor do que o tráfico para a realização dos Jogos Pan-Americanos de 2007.

E essa ideia de que o tráfico seria pior que a milícia foi ficando, ficando, a ponto de ser considerada como verdadeira por muito tempo. E sabe o que os grupos criminosos fazem quando alguém começa a prestar atenção demais neles? Eles ameaçam. Matam. E também se aprimoram.

Hoje não tem diferença. As milícias que um dia foram criadas a partir de um discurso para combater o tráfico não são mais formadas apenas por policiais. E os milicianos, agora, também passaram a vender drogas, ou seja, também são traficantes.

Da essência das milícias, permaneceu a violência, o controle de territórios e o medo imposto às comunidades que vivem nesses locais. Pra chegar até aí, teve muita coisa, que eu, Juliana Dal Piva, vou te contar. História de como esses grupos surgiram e se fortaleceram. Episódios em que milicianos foram defendidos por figuras públicas e também quando finalmente passaram a ser vistos como o verdadeiro problema que são.

Também vou te explicar onde o clã Bolsonaro entra nisso. O Jair e o filho Flávio nunca defenderam políticas para combater as milícias. Pelo contrário: por muito tempo, eles foram parte do grupo que quis diferenciar traficantes e milicianos, a ponto de homenagear pelo menos 12 policiais apontados como milicianos em processos do Tribunal de Justiça do Rio.

Um deles é o ex-caveira Adriano da Nóbrega, de quem eu te falei no episódio dois. Agora eu também vou te contar como, nos anos em que o Adriano cresceu no mundo do crime, os negócios dele se misturaram com os do Flávio Bolsonaro. A ponto de o Flávio empregar a mãe e a ex-mulher do Adriano durante anos no gabinete dele. E as duas nunca trabalharam de verdade, elas eram funcionárias fantasmas. Esse é episódio três do podcast UOL Investiga: Polícia Bandida e o Clã Bolsonaro.

VINHETA: "Tem gente que é favorável à milícia". "Violência se combate com a violência". "E, se for o caso, matando". "Esses grupos de extermínio, no meu entender, são muito bem-vindos". "Não se pode estigmatizar a milícia". "Isso é ser radical? Isso é ser racional".

JULIANA DAL PIVA: O carioca convive com um rastro de crimes e mortes e, às vezes, até esquece o quanto tudo isso é violento. Mas, de tempos em tempos, acontecem coisas tão brutais que é impossível de ignorar.

Existem dois momentos centrais na história do Rio de Janeiro que deixaram nítido como as milícias colocam a vida de qualquer um em risco. Não importa quem você é, um morador da comunidade, um jornalista ou mesmo um parlamentar.

E esses dois momentos estão separados por dez anos. O primeiro deles foi em 2008, na criação da CPI das Milícias na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. O outro em março de 2018, quando a vereadora Marielle Franco foi assassinada no centro do Rio. Nas duas ocasiões, o clã Bolsonaro ainda tentou minimizar os crimes das milícias.

E esses dois episódios são importantes para a gente entender a ascensão e a queda do Adriano da Nóbrega no mundo do crime. Mesmo que o Adriano não tenha provocado nenhum deles diretamente e tudo tenha acontecido bem longe de Rio das Pedras.

Eu vou explicar, mas, antes de eu entrar na história do Adriano, eu preciso contar para você o que aconteceu em 31 de maio de 2008. Foi quando o jornal O Dia estampou a manchete: "Tortura: Milícia da zona oeste sequestra e espanca repórter, fotógrafo e motorista de O Dia". A Elenilce vai ler para você o texto da capa do jornal.

ELENILCE BOTTARI LÊ TRECHO DO JORNAL O DIA: "A sessão de horror teve roleta russa, choque elétrico e sufocamento com saco plástico. A equipe fazia reportagem sobre a vida de moradores de comunidades dominadas por grupos paramilitares. Torturadores faziam questão de dizer que eram policiais. Um morador também foi agredido. Em carros oficiais, PMs fardados circulavam na favela e confraternizavam com milicianos. Jornalistas descobriram um esquema para votação em massa em candidato de milícia".

JULIANA DAL PIVA: A equipe do jornal tinha ficado duas semanas trabalhando disfarçada dentro de uma comunidade para retratar como uma milícia agia. Eles se infiltraram na favela do Batan, uma comunidade no bairro de Realengo, na zona oeste do Rio.

Quase no final da reportagem, o trio foi descoberto pelos milicianos e acabou torturado por cerca de sete horas. Eles foram levados para um barraco da favela e forçados a entregar a senha dos emails. Os milicianos então viram o material que os jornalistas já tinham enviado para a redação. Os textos e fotos mostravam viaturas circulando tranquilamente pela comunidade e como os policiais conversavam com os milicianos.

Durante o espancamento, a repórter chegou a ser submetida a uma roleta russa. Ela viu um dos milicianos rodar o tambor de um revólver e apertar duas vezes o gatilho da arma que estava apontada pra ela. No fim, eles pegaram o dinheiro e o equipamento dos repórteres e soltaram eles de madrugada na avenida Brasil.

É provável que os milicianos pensassem que ninguém ia se importar com aquilo e que a equipe ia ficar com tanto medo que não ia denunciar nada. Mas não foi o que aconteceu. O relato chocou o Rio de Janeiro e expôs o pior da milícia.

Aquela incursão da equipe do jornal O Dia na favela aconteceu numa época em que a imprensa do Rio de Janeiro investigava o poder político das milícias. As eleições de 2006 mostraram que os milicianos estavam com muita força.

Um ano antes de a equipe do jornal O Dia ser torturada, a Elenilce e um colega chamado Sérgio Ramalho fizeram uma reportagem importante sobre esse assunto. A matéria saiu no jornal O Globo em fevereiro de 2007 e a Elenilce vai ler um trecho para você.

ELENILCE BOTTARI LÊ TRECHO DO GLOBO DE FEVEREIRO DE 2007: "O poder de fogo das milícias no Rio vai além da capacidade de expulsar e controlar favelas. Levantamento feito pelo Globo em 35 das 92 áreas dominadas por esses grupos paramilitares revela a enorme influência política que eles exercem sobre os moradores: 80% dessas comunidades tiveram um policial, um bombeiro ou um militar reformado entre seus candidatos mais votados nas últimas eleições.

Autoridades como o ex-secretário de Segurança Pública Marcelo Itagiba, o ex-chefe de Polícia Civil, delegado Álvaro Lins, e o ex-presidente da Comissão de Segurança Pública da Alerj, deputado estadual coronel Jairo, foram alguns dos policiais que tiveram votação expressiva nos territórios ocupados por milícias".

JULIANA DAL PIVA: No mesmo mês em que a Elenilce fez essa matéria, em fevereiro de 2007, um deputado de primeiro mandato tentava emplacar uma CPI justamente para investigar as milícias. Eu tô falando do Marcelo Freixo, que era do PSOL naquela época e agora tá no PSB. O Freixo hoje disputa o governo do Rio de Janeiro, numa chapa que tem o Cesar Maia como vice. Aquele Cesar Maia que um dia falou que o tráfico era um mal menor que a milícia, embora hoje ele já não diga mais a mesma coisa. A gente até tentou falar com ele, mas ele não quis gravar entrevista.

Mas vamos voltar aqui em 2007. A resistência para criar uma CPI para investigar as milícias era enorme. Inclusive porque ali dentro da Alerj existiam deputados que defendiam e outros que até integravam as milícias. Hoje a gente pode afirmar isso, mas naqueles dias ainda eram só suspeitas.

Então, em 2007, o Freixo conseguiu as assinaturas necessárias pra criar a comissão, mas a CPI não saiu. Não teve acordo político pra colocar ela em prática. Eu sei, é difícil de entender. Mas mais difícil de entender ainda é como naquela época muita gente, vários políticos, não viam as milícias como um problema. As coisas só mudaram em junho de 2008, depois do episódio da tortura contra os jornalistas do jornal O Dia.

Em fevereiro de 2022, eu fui até o apartamento do Freixo no Flamengo para conversar com ele sobre essa época e quando ele conheceu o Jair e o Flávio Bolsonaro.

MARCELO FREIXO EM ENTREVISTA A JULIANA DAL PIVA EM 2022: "Eu lembro de um episódio, não sei se foi a primeira vez que eu o vi, eu já sabia que ele era, né? Mas eu estava fazendo uma campanha política na Sáenz Peña, na praça Sáenz Peña, e aí eu encontrei o Jair Bolsonaro e o Flávio. Se eu não me engano, foi em 2006 isso. Já na minha campanha para deputado. E eu vi o Jair Bolsonaro e o Flávio com uma camisa igual, né? Era um retrato do Garrastazu Médici, grande assim, pegava o corpo inteiro e escrito: 'Eu era feliz e sabia'. Um retrato do Médici. O Flávio e ele usando a mesma camisa".

JULIANA DAL PIVA: Só para lembrar, o Emilio Garrastazu Médici foi o terceiro presidente da ditadura militar brasileira. O Médici governou o Brasil no momento mais violento da ditadura, de outubro de 1969 até março de 1974.

Mas o enfrentamento político do Freixo com os Bolsonaro começa mesmo na Alerj e por causa da investigação sobre as milícias. O Flávio estava do outro lado. Na terça-feira, 7 de fevereiro de 2007, o Flávio fez um discurso na tribuna do plenário da Assembleia Legislativa do Rio.

Ele estava de terno e gravata, bem-humorado. Nem parecia que ia falar de um assunto tão sério. E talvez pra ele nem fosse. O som tem um chiado que é da gravação original da Alerj e não tinha como limpar. Mas dá para entender.

FLÁVIO BOLSONARO EM DISCURSO NA ALERJ EM FEVEREIRO DE 2007: "Não se pode levar pro lado de, simplesmente, estigmatizar a milícia, em especial os policiais que estão envolvidos nesse novo tipo aí de policiamento, vamos dizer assim. Porque pega-se uma exceção, um caso isolado, onde há excesso por parte de alguns maus policiais que cometem atrocidades e covardias contra moradores de uma comunidade e estender isso à regra desse instituto que é a milícia. Porque a milícia, senhor presidente, nada mais é do que um conjunto aí de policiais, militares ou não, regidos por uma certa hierarquia e disciplina, buscando, sem dúvida alguma, estar expurgando do seio da sua comunidade aquilo que há de pior: que são os criminosos. Em todas essas milícias, sempre há um, dois, três policiais que são da comunidade e contam com a ajuda de outros colegas de farda para somar forças e estarem tentando garantir o mínimo de segurança nos locais onde eles moram. E há uma série de benefícios nisso".

JULIANA DAL PIVA: Sim, em fevereiro de 2007, o Flávio Bolsonaro disse que existiam "benefícios" pros moradores que viviam sob o domínio de milicianos. E, mais do que defender as milícias, em março de 2007, o Flávio chegou a dizer que estava pensando em propor um projeto para legalizar as milícias.

Numa entrevista pro portal Terra, o Flávio falou o seguinte: "Dizem que as milícias cobram tarifas, mas eu conheço comunidades em que trabalhadores fazem questão de pagar R$ 15 para não ter traficantes".

As milícias tomam conta de uma comunidade e boa parte do que é comercializado ali. Colocam o preço e as condições. Não tem discussão ou conversa. A lei quem faz são eles. Qualquer um que discordar pode pagar com a vida por isso. Mas o Flávio não dava importância para essa situação. Nem o Jair Bolsonaro.

Em 8 de março de 2008, o Bolsonaro defendeu para a BBC de Londres que o governo "apoiasse" as milícias. A Elenilce vai ler para você a declaração dele.

ELENILCE LÊ TRECHO DE ENTREVISTA DE JAIR BOLSONARO PARA A BBC: "Elas oferecem segurança e, desta forma, conseguem manter a ordem e a disciplina nas comunidades. É o que se chama de milícia. O governo deveria apoiá-las, já que não consegue combater os traficantes de drogas. E, talvez, no futuro, deveria legalizá-las".

JULIANA DAL PIVA: O tempo passou e a escalada de violência e do poder dos grupos de milicianos só cresceu. Tanto que chegou até o episódio dos jornalistas no Batan. Imagina então se existisse um apoio formal ou uma "legalização" de grupos armados para controlar territórios, uma espécie de legalização de um poder paralelo.

Mas, se por um lado foi brutal, o caso dos jornalistas também serviu para destravar a criação da CPI das milícias. Até o então deputado Flávio Bolsonaro teve que recuar.

FLÁVIO BOLSONARO DURANTE DISCURSO NA ALERJ DURANTE VOTAÇÃO DA CPI DAS MILÍCIAS: "Senhor presidente. vou votar favoravelmente à criação dessa CPI única e exclusivamente em respeito a nossa imprensa, em especial aos repórteres do jornal O Dia, que foram alvo dessa covardia hedionda por parte de pessoas que eu nem de longe considero policiais. Na prática, nós vemos diversos outros tipos de milícias, já que o termo se generalizou, em lugares nobres da nossa cidade. E quem for à Barra da Tijuca vai encontrar diversos locais onde a associação de moradores procuram um serviço de segurança de policiais quando estão de folga, e portanto de forma ilegal, porque eles não podem ter uma atividade fora da polícia. E há aqueles casos em que policiais impõe uma cobrança em troca desse serviço de segurança".

JULIANA DAL PIVA: Apesar de estar votando a favor da criação da CPI, o Flávio ainda quis justificar a existência desses grupos criminosos.

FLÁVIO BOLSONARO DURANTE DISCURSO NA ALERJ DURANTE VOTAÇÃO DA CPI DAS MILÍCIAS: "As milícias são as consequências do descaso do Estado. São as consequências do salário de fome que recebe o nosso policial. O sonho de todo policial no Rio de Janeiro era viver só do contracheque. Mas não consegue. É muito mal remunerado, precisa buscar outras fontes. Ele vai fazer segurança privada, vai buscar atividades que muitas vezes são reprováveis pela opinião pública, pela imprensa".

JULIANA DAL PIVA: E, pouco antes de acabar o discurso, o Flávio ainda fez uma sugestão pro Marcelo Freixo, que ia presidir a CPI.

FLÁVIO BOLSONARO DURANTE DISCURSO NA ALERJ DURANTE VOTAÇÃO DA CPI DAS MILÍCIAS: "Fica aqui uma sugestão, deputado Marcelo Freixo. Sempre que ouço relatos de pessoas que residem nessas comunidades supostamente dominadas por milicianos, não raro é constatar a felicidade dessas pessoas que antes tinham que se submeter a uma escravidão, a uma imposição hedionda por parte de traficantes, e que agora pelo menos podem ou dispõem dessa garantia, desse direito constitucional, que é a segurança pública. Portanto, façam consultas populares na favela de Rio das Pedras, lá na própria favela do Batan".

JULIANA DAL PIVA: Você ouviu bem. O Flávio falou que existia "felicidade" pras pessoas que viviam em uma comunidade dominada por uma milícia e ainda citou o Batan e Rio das Pedras como exemplos.

Mas a realidade de quem vive nesses locais é bem diferente. Escuta um trecho de um depoimento de uma pessoa que teve a vida destruída depois de morar num lugar assim. Ele está numa reportagem especial do UOL chamada "Vizinhos do Mal", do jornalista Igor Mello.

VÍTIMA EM TRECHO DO DOCUMENTÁRIO "VIZINHOS DO MAL": "Fiz uma denúncia. Na delegacia e eles começaram a fazer essa investigação e tudo mais. Já estava em outro local. Eles ficaram sabendo da denúncia e que eles estavam na minha caça, né? Que eles iriam me encontrar onde quer que eu estivesse. Que, se eu aparecesse lá, eu estaria morto. Eles não têm misericórdia. São pessoas cruéis. Pessoas que matam à luz do dia. Sem medo nenhum, né? De serem presos, de serem capturados. Eles tinham uma cobertura de algumas pessoas do Estado, né? Então às vezes ficava bem difícil até de as pessoas recorrerem a uma ajuda".

JULIANA DAL PIVA: A favela de Rio das Pedras servia até essa época da CPI, em 2008, como uma espécie de vitrine para um poder paralelo. Algo que era abraçado por gente da sociedade, por políticos em campanha e até mesmo por integrantes do próprio estado.

Do lado de fora, a favela era vista como um modelo de segurança comunitária. Mas, lá dentro, os moradores viviam dominados por uma quadrilha que explorava a região, com uso da violência, sem ser incomodada por nenhum tipo de autoridade. Gás? Internet? Aluguel? Transporte? Era tudo com a milícia local. E, claro, só entrava para fazer campanha quem tinha autorização de quem manda ali. A milícia.

Mas como foi que a comunidade se tornou o epicentro de uma política de segurança que tem como base a corrupção e a violência?

Rio das Pedras surgiu nos anos 1960. Operários que trabalhavam nas obras de expansão do Rio em direção à da Barra da Tijuca viviam sem nenhuma infraestrutura e abriram caminho na mata a facão para construir as primeiras casas. E, como era meio isolado, não tinha lá muita segurança. Aí foi criada a tal da "mineira". Quem conhece essa história é o seu Alberto.

"SEU ALBERTO" EM ENTREVISTA A JULIANA DAL PIVA: "Em 1969, 1970, por aí, houve a chamada polícia mineira, né? Eles botaram na cabeça dos moradores que aquilo ali era criado pAra evitar a invasão de traficantes, né? E eu nunca concordei com aquilo, sempre tive um pé atrás com relação àquilo".

JULIANA DAL PIVA: A "mineira", como seu Alberto conta, foi o primeiro grupo paramilitar que dominou a comunidade. Ele tinha como fundador o Otacílio Braz Bianchi, mais conhecido como Otacílio. Esse poder paralelo acabou também se transformando e dando lugar ao crime. Depois de algum tempo, o Otacílio passou a ser considerado pela polícia como o chefe do grupo de extermínio local.

Foi investigado, condenado e chegou a ficar 20 meses na cadeia até ser solto. Um mês depois, em 6 de janeiro de 1990, ele foi assassinado durante uma troca de tiros. A morte do Otacílio fez a comunidade começar a viver um profundo processo de mudança. Se do lado de fora o que se via era uma expansão territorial desorganizada, nas vielas daquela comunidade surgiu um Estado paralelo bem organizado.

"SEU ALBERTO" EM ENTREVISTA A JULIANA DAL PIVA: "O Félix chamou todo mundo e disse: 'Ó, a partir de hoje, ninguém pode fazer nada em Rio das Pedras sem ter o meu aval'. E realmente acontecia isso. Ninguém matava e ninguém morria sem a autorização do cara. Ele não mandava fazer, ele ia lá e fazia, entendeu? Esse é o cara".

JULIANA DAL PIVA: Morador antigo de Rio das Pedras, o Félix dos Santos Tostes era inspetor de Polícia Civil desde 1989. Alguns anos depois, em 2003, ele passou a trabalhar com a equipe de um delegado chamado Ricardo Hallak, na 38ª Delegacia de Polícia, que fica em Brás de Pina, na zona norte do Rio. De lá, eles seguiram juntos por algumas delegacias até que o Hallack se tornou chefe da Polícia Civil em 2006.

E, quanto mais o prestígio do delegado Hallak crescia no governo do estado, na favela, também crescia a força política do Félix. Junto com um outro sócio da milícia, o Josinaldo Francisco da Cruz, que era conhecido por Nadinho. Assim, eles decidiam não só a vida dos moradores, mas o futuro de políticos na região. Eles eram os donos dos votos.

Esse poder do Félix e do Nadinho em Rio das Pedras seguiu até o fim de 2007. Ao longo do ano, algumas ações policiais vão começar a mexer com tudo. Primeiro o Félix vai ser preso e, depois, o Nadinho, que tinha acabado de se tornar vereador. E, ainda em 2007, o Félix vai ser assassinado por causa da disputa com grupos milicianos.

Quando chegou 15 de dezembro de 2007, veio a Operação Gladiador e ela alcançou até a cúpula da Polícia Civil do Rio. Eu vou pedir para a Elenilce ler uma matéria do jornal O Globo sobre esse dia.

ELENILCE BOTTARI LÊ TRECHO DO GLOBO DE DEZEMBRO DE 2007: "Após sete meses de investigações, a Superintendência de Polícia Federal deflagrou ontem a Operação Gladiador, para desarticular uma quadrilha formada por policiais civis e militares que garantia proteção aos contraventores Rogério Costa de Andrade e Silva, de 43 anos, e Fernando de Miranda Ignácio, de 41. Com base em interceptações telefônicas, a 4ª Vara Criminal da Justiça Federal concedeu 45 mandados de prisão. Na mesma investigação, a PF solicitou a prisão do deputado Álvaro Lins, ex-chefe de Polícia Civil, mas a Justiça Federal negou. Também foram presos quatro inspetores da corporação".

JULIANA DAL PIVA: A Operação Gladiador foi a primeira de algumas ações policiais grandes que iam acabar prendendo uma série de policiais. O Hallack ficou no lugar do Álvaro Lins, que como você ouviu, tinha sido eleito deputado.

Outro alvo da Operação Gladiador foi o inspetor da Polícia Civil Mário Mustrange de Carvalho, o Marinho. Ele tinha sido o primeiro que o Flávio homenageou em 2003. Também foi preso o Hélio Machado da Conceição, o Helinho, que tinha recebido uma homenagem do Flávio Bolsonaro em 2005.

Essas operações policiais estavam de olho na relação da cúpula da polícia com a máfia da contravenção. Naquela época, ainda não era possível comprovar uma sociedade entre os milicianos e os bicheiros.

Na imprensa, as coisas eram apresentadas de modo separado. Bicheiros, milicianos, políticos. Mas esses três grupos já andavam fazendo negócios juntos. A compreensão disso vai vir com o tempo e, principalmente, a partir da investigação da CPI.

No relatório final, em 2008, a comissão pediu o indiciamento de 266 pessoas. No meio do relatório, tinha sete políticos, todos acusados por suspeitas de ligação com grupos paramilitares.

Eu vou precisar resumir muita coisa porque essa história é longa e complexa. O mais importante pra você entender é que esse momento foi chave para, anos depois, surgir o poderio de outros grupos. Em especial o do capitão Adriano.

O fim da CPI criou uma percepção de que o Estado e as autoridades tinham de algum jeito entendido que as milícias eram perigosas. Muito diferente do "novo policiamento" que o Flávio falou no início desse episódio, esses grupos tinham ramificações e representantes junto ao governo, à Assembleia Legislativa e até dentro da própria polícia. Era um crime muito mais organizado.

Mas o clã Bolsonaro não via nada disso ou fingia não ver, mesmo depois de tudo o que a CPI descobriu. Quando o relatório final foi votado, o Freixo foi ao Congresso Nacional apresentar o documento. E, apesar das provas, o Bolsonaro continuou afirmando que nem todo miliciano é bandido. Olha o que ele disse no dia 17 de dezembro de 2008.

JAIR BOLSONARO EM DISCURSO EM DEZEMBRO DE 2008: "Como se todos aqueles elencados como milicianos fossem bandidos. Não. É uma busca que dá popularidade, dá vulgaridade. Busca de voto pelo voto em cima da demagogia em cima de chefes de família. Alguns são bandidos? Sim, são bandidos, mas, no contexto de todos, não".

JULIANA DAL PIVA: O Bolsonaro ainda falou que não dava pra generalizar os milicianos.

JAIR BOLSONARO EM DISCURSO DE 2008: "Quer atacar o miliciano, porque o miliciano passou a ser um símbolo da maldade pior do que os traficantes. Tem miliciano lá que não tem nada a ver com gatonet, com venda de gás. Ele está? Como ele ganha R$ 850 por mês, que é quanto ganha um soldado da PM ou do bombeiro, ele tem sua própria arma e, na sua comunidade, organizou sua segurança. Nada a ver com milícia ou exploração de gatonet ou venda de gás ou transporte alternativo também".

JULIANA DAL PIVA: Quando eu ouvi esse discurso, fiquei pensando que o Bolsonaro falou de um jeito como se ele conhecesse algum miliciano que, nas palavras dele, "só" fazia segurança. E agora a gente sabe que ele conhecia o Adriano Nóbrega.

Eu vou te contar mais sobre a ascensão deste caveira depois do intervalo. Inclusive com informações da mulher que foi companheira do Adriano por uma década.

[INTERVALO]

JULIANA DAL PIVA: No fim de 2008, o Adriano tava começando a dar os primeiros passos numa ascensão entre os homens da máfia da contravenção. Ele tinha deixado a cadeia dois anos antes, em 2006. Depois que foi anulado o julgamento do assassinato pelo qual o Adriano respondia.

Mas, quando o Adriano estava na cadeia, ele recebeu uma visita do bicheiro Rogério Mesquita, conhecido do pai dele já fazia um bom tempo. O bicheiro queria ajuda, proteção na guerra que ele mantinha com os adversários. Então, por uma mesada de R$ 5.000, Adriano passou a indicar policiais militares para fazer a segurança dele.

Outra fonte de renda que a família do Adriano passou a ter em 2008 era com o cargo da então mulher dele, a Danielle, no gabinete do Flávio Bolsonaro. Só que a Danielle não trabalhava, era uma funcionária fantasma que ficava com uma mesada.

Ao mesmo tempo, o Adriano começa a crescer no mundo dos bicheiros e junto com um grupo de policiais que também fizeram esse mesmo caminho. Todos vivendo uma vida dupla. Num momento atuando como policial e, em outro, vendendo seu conhecimento e técnica para uso do crime.

Depois da CPI das milícias, os grupos recuaram para se reorganizar. E, algum tempo depois, foram pouco a pouco retomando os espaços que tinham ficado para trás quando os antigos líderes das milícias foram presos. E, para expandir os negócios, os novos grupos focaram na construção civil ilegal.

O professor Daniel Hirata, que estuda as milícias, analisa que parte do crescimento delas nos últimos anos aconteceu junto com a expansão imobiliária em direção à zona oeste. Um período com muito crescimento por causa dos Jogos Olímpicos de 2016.

Já o delegado Vinicius Jorge, que trabalhou com o Marcelo Freixo nas investigações da CPI, vê outras mudanças. Ele agora está aposentado da Polícia Civil e, em junho de 2022, a gente se encontrou para conversar num café em Copacabana.

EX-DELEGADO VINICIUS JORGE EM ENTREVISTA A JULIANA DAL PIVA EM 2022: "Agora mudou. Nisso a CPI realmente ajudou a mudar. Hoje, milícia é outra coisa, completamente diferente. Quem falar de milícia hoje, com essa cabeça lá de trás, e muita gente está fazendo isso ainda, comete um equívoco. Mudou. Mudou, porque é dinâmico. Olha quantos anos se passaram, internet, satélite".

JULIANA DAL PIVA: "Mas tem uma coisa que chama a atenção, né? Elas cresceram depois da CPI".

EX-DELEGADO VINICIUS JORGE: "Sim. Num primeiro momento, houve uma estagnação territorial, uma retração, eles perceberam que aquele grau de exposição, aquela disputa por mandatos políticos, tinha sido ruim para os negócios. E eles deram o passo atrás. Hoje, a relação dos agentes do Estado com a milícia está muito mais para o arrego, do deixar existir, de fornecer a informação privilegiada, de fazer uma segurança, do que ser efetivamente líder da milícia, como era. Não tinha milícia de verdade, na época, que não fosse liderada por um policial, por um militar, Forças Armadas, por um do Exército. A CPI gerou essa resposta, quase todos foram presos, expulsos, condenados, mandatos cassados. Então isso gerou também um processo de sucessão, de substituição, de ascensão, de divisão, de mudança dentro dos controles das milícias e dos próprios perfis milicianos".

JULIANA DAL PIVA: Na análise sobre essa mudança, o Vinicius Jorge avalia que o Adriano não é um miliciano típico ou como aqueles que ele investigou na época da CPI. Para o Vinicius Jorge, o papel do Adriano é muito mais como um matador de um grupo que atuava para quem pedisse, até para os milicianos.

EX-DELEGADO VINICIUS JORGE EM ENTREVISTA A JULIANA DAL PIVA EM 2022: "Sabe por que ele é confundido com miliciano? Aí o que aconteceu. O Adriano eu conheço bem. Todo mundo dentro da polícia conhece ele. Não sou eu, não. Ele monta o Escritório do Crime. Ele falou: 'Agora eu não mato mais para você'. Ele montou um CNPJ. Ele montou uma empresa de assassinato. E ele trabalhava para qualquer bicheiro, para qualquer empresário, para qualquer político, para qualquer marido traído, mulher traída, para quem pagasse. Inclusive até para as milícias, se fosse o caso também. E a sede desse Escritório sempre foi... não vamos falar o nome do condomínio, porque é sacanagem com condomínio... um condomínio de classe média que tinha lá em Jacarepaguá, perto ali de Rio das Pedras, Muzema. Ali entre Rio das Pedras e Muzema, entendeu?".

JULIANA DAL PIVA: "Você está falando do Floresta?".

EX-DELEGADO VINICIUS JORGE: "É. A proximidade geográfica com as milícias ali, principalmente de Rio das Pedras, e as conexões que eles já tinham desde lá de trás da PM com esses outros policiais, principalmente militares que trabalhavam ali, aproximou eles dali. Aí eles têm um negocinho ali na Muzema, começa a lavar dinheiro ali. Mas ele não é um miliciano. O Adriano é um matador, um assassino".

JULIANA DAL PIVA: Em janeiro de 2019, o Ministério Público denunciou o Adriano. Ele foi acusado de liderar um grupo de matadores de aluguel chamado de Escritório do Crime e também de comandar uma milícia em Rio das Pedras. Mas, até ali, o Adriano passava intacto pelas autoridades. Ano após ano, sem ser incomodado.

O Adriano só vai entrar na mira dos investigadores por causa do que eu te contei no início desse episódio. O segundo momento de um combate mais efetivo às milícias. Algo que só aconteceu depois da morte da vereadora Marielle Franco.

Eu conversei com a promotora Simone Sibilio no gabinete dela. Foi lá que ela me contou essa história.

PROMOTORA SIMONE SIBILIO: "Quando a gente então instaura, além da investigação Marielle-Anderson, que a gente estava em pleno vapor, e a gente instaura o "Escritório do Crime", foi a primeira investigação que defluiu do caso Marielle-Anderson, depois Intocáveis, a segunda investigação, outras tantas começaram a surgir. Com quatro meses de investigação, três meses, a gente consegue desbaratar essa organização criminosa que estava em pleno vapor em Rio das Pedras. Os diálogos eram muito, muito impactantes. A participação do Capitão Adriano na milícia de Rio das Pedras, do major Ronald e do Maurição, do Fininho. Todos ex-agentes do Estado".

JULIANA DAL PIVA: A promotora Simone investigou a morte da Marielle por quase três anos e também acabou investigando o Adriano da Nóbrega e outro personagem importante da milícia em Rio das Pedras, o Major Ronald Pereira. O Adriano e o Ronald têm algumas coisas em comum além de terem sido policiais. Ambos tinham homenagens concedidas pela Alerj a pedido do Flávio Bolsonaro. A do Ronald foi em 2004.

O Flávio decidiu homenagear o Ronald por conta de uma operação realizada no Conjunto Esperança, no Complexo da Maré, na zona norte do Rio em 22 de janeiro de 2004. Essa operação resultou, nas palavras do deputado, de um "confronto armado com marginais da lei". Repara a data das mortes: 22 de janeiro de 2004. Isso aconteceu exatos 15 anos antes de o Ronald ser preso como miliciano, em 22 de janeiro de 2019. E a história da promotora Simone Sibilio cruza com a do Ronald lá atrás.

Em 5 de dezembro de 2003, o Ronald se envolveu em outro caso violento. Ele é conhecido como a chacina da Via Show. Quatro jovens saíram da casa de festas Via Show, em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, e um deles parou para fazer xixi no pneu de um carro no estacionamento. Só que o veículo pertencia ao chefe da segurança da casa de shows, um policial militar. Esse policial e outros quatro PMs faziam um bico ali nos dias de folga. Aquele bico de segurança que é ilegal e que tantas vezes foi justificado por políticos como uma maneira de os policiais ganharem um dinheiro a mais.

Nessa noite, quando os jovens foram flagrados naquela situação pelos policiais que estavam na segurança do evento, eles acabaram espancados e executados. Um dos mortos era um soldado do Exército. E, segundo as investigações, foi o agora major Ronald que decidiu pela execução e pela ocultação dos corpos dos quatro jovens.

TRECHO DE JORNAL DO SBT DE 23/01/2019: "Ronald é réu no processo que investiga a morte de quatro jovens na saída de uma casa de shows, em 2003, na Baixada Fluminense. Os corpos do soldado do Exército Geraldo Júnior, Bruno Muniz e os irmãos Rafael e Renan Paulino foram encontrados hoje de madrugada na Baixada Fluminense. Os quatro foram executados com tiros na nuca e apresentariam sinais de tortura".

JULIANA DAL PIVA: Por essa chacina, quatro policiais foram condenados, mas o capitão Ronald conseguiu escapar do julgamento por bastante tempo, como explica a promotora Simone.

PROMOTORA SIMONE SIBILIO: "Eu estava diante de um grupo de extermínio e um dos acusados era é o então hoje, capitão à época, tenente Ronald, e que depois a minha vida foi se cruzar com ele depois no caso Intocáveis, mas lá ele já era denunciado, como era oficial que estava de serviço aquele dia. Nessa chacina, o que coube a mim foi o processo e todas as diligências, já o processo em curso. Os que foram julgados, que eu fiz o julgamento, todos foram condenados. Ele foi o único que ainda não foi condenado".

JULIANA DAL PIVA: Os anos foram passando e o Ronald cresceu tanto dentro da PM, onde ele se tornou major, como na vida criminosa. Ele virou chefe da milícia da Muzema e, junto com o Adriano, se tornou dono de vários imóveis erguidos ilegalmente naquela região que fica do lado de Rio das Pedras. A carreira do Ronald na polícia só foi interrompida em janeiro de 2019, quando estourou a Operação Intocáveis. O Ronald foi preso naquele dia e agora ele também foi condenado por conta das acusações. Já o Adriano foi expulso da polícia um pouco antes. Muito em função da Operação Tempestade no Deserto. A Elenilce vai ler para você a notícia do caso que saiu no G1 no dia 20 de dezembro de 2011.

ELENILCE BOTTARI LÊ NOTÍCIA DO G1 DE DEZEMBRO DE 2011: "Segundo o Ministério Público do Rio, a quadrilha era integrada por um policial civil, quatro policiais militares e outras duas pessoas e liderada por Shanna Garcia, filha do bicheiro Waldomir Paes Garcia, o 'Maninho', morto em 2004. O grupo é acusado de formação de quadrilha armada e tentativas de homicídio qualificado. Shanna é apontada como líder da organização criminosa que mantém a exploração do jogo de caça-níqueis, função exercida após a morte do pai e do marido, José Luiz de Barros Lopes, conhecido como 'Zé Personal'. De acordo com denúncia do MP, Luís Carlos Felipe Martins, o policial civil Carlos Daniel Ferreira Dias e os policiais militares Adriano Magalhães da Nóbrega, João André Ferreira Martins e Marcelo Alves da Silva tentaram matar Rogério Mesquita e outras três pessoas na madrugada do dia 10 de maio de 2008, por ordem de Shanna".

JULIANA DAL PIVA: Pra resumir: o Adriano participou de uma tentativa de homicídio de quatro pessoas a mando da Shanna, que é envolvida com os caça-níqueis. A denúncia também traz o ex-policial militar Luis Carlos Felipe Martins, conhecido como "Orelha". Ele estava com o Adriano no assassinato do Leandro em 2003, aquele de que eu te falei disso no episódio 2. Depois de expulso da corporação, o "Orelha" continuou trabalhando com o Adriano no crime e acabou entrando para a milícia de Rio das Pedras.

E, assim como o Capitão Adriano, ele foi homenageado pelo Carlos e pelo Flávio Bolsonaro. Apesar da denúncia, o Adriano escapou da prisão em 2011 e foi se livrando dessa investigação e de várias outras. O próprio Rogério Mesquita procurou a polícia para denunciar que tinha contratado Adriano em busca de proteção e agora tinha se tornado alvo do antigo segurança. Mas não adiantou muita coisa porque o Rogério Mesquita acabou assassinado em 2009 e várias testemunhas mudaram os depoimentos ao longo do julgamento.

O Adriano se livrou da prisão, mas a permanência na PM era insustentável. Então, ele acabou expulso da Polícia Militar em 2014. Antes de continuar, quero só acrescentar uma informação. Além do Ronald, do Luís Carlos e do Adriano, o Carlos e o Flávio Bolsonaro homenagearam pelo menos outros 12 homens apontados como integrantes de grupos criminosos.

Esses homenageados foram presos e denunciados em sete das mais importantes operações de combate ao crime organizado no Rio de 2006 até 2020. Eu estou falando das operações Calabar, Quarto Elemento, Purificação, Intocáveis, Gladiador, Amigos S/A e Segurança S/A.

Essas investigações, realizadas pela Polícia Federal, pelas corregedorias e pelo Ministério Público, revelaram quadrilhas montadas por policiais para a prática de extorsão, corrupção, sequestros, homicídios e outros crimes. Em todos esses casos, esses policiais estavam na folha de pagamento da máfia dos caça-níqueis, das facções do tráfico ou dos grupos milicianos.

Voltando pra história do Adriano. Pra entender como ele saiu da cadeia em 2006 e entrou de cabeça no crime, eu fui perguntando pra quem conheceu ele. Uma das minhas tentativas foi com a Julia Lotufo. Ela é a viúva dele, a mulher com quem ele viveu a última década antes de morrer em fevereiro de 2020. Durante os últimos meses, eu tentei várias vezes entrevistar a Julia. Só que não é fácil fazer contato com ela.

A Julia foi denunciada na Operação Gárgula, em março de 2021, e é acusada de lavar o dinheiro sujo que o Adriano ganhou com os crimes da contravenção e do Escritório do Crime. Até abril de 2022, a Julia estava em prisão domiciliar e isso impedia o contato com ela. Então, no dia 28 de abril desse ano, eu soube que ela ia depor no Tribunal de Justiça do Rio por causa do processo e resolvi tentar abordar ela no tribunal. A audiência tava marcada para as 10h da manhã. Eu cheguei bem cedinho no tribunal e fui entrando.

Mas, quando eu cheguei na porta da sala de audiência, o segurança me barrou e disse que eu tinha que esperar do lado de fora porque eu não era parte no processo.

SEGURANÇA DO TJ DO RIO: "Só pode entrar quem vai participar da audiência, ou seja, os réus, os advogados, a vítima, as testemunhas. Quem não tem de aguardar. Vou pedir só para a senhora aguardar o horário. A senhora vai ter ir para lá, de aguardar lá na entrada, aguardar lá, tá bom?".

JULIANA DAL PIVA: Aí quando eu tô saindo no corredor, eu vejo a Julia entrando com dois advogados.

JULIANA DAL PIVA: "Julia? Oi, eu sou Juliana".

JULIA LOTUFO: "Repórter?".

JULIANA DAL PIVA: "É. Eu queria, enfim, eu vou deixar um pedido. Teve uma confusão. Eles acabaram deixando eu subir e eu não sabia que tinha que esperar lá. Vou deixar um pedido. Se for possível, sou colunista do UOL. Eu gostaria de acompanhar, assistir".

JULIA LOTUFO: "Juliana Del Paiva".

JULIANA DAL PIVA: "Juliana Dal Piva, isso. Se for autorizado, eu subo. Mas, claro, eu sei que o juiz precisa autorizar. Só queria deixar o pedido".

JULIA LOTUFO: "Tá".

JULIANA DAL PIVA: "Muito obrigada".

JULIA LOTUFO: "Obrigada você".

JULIANA DAL PIVA: Só que não deu muito certo. O juiz não me autorizou a acompanhar o depoimento da Julia e eu tive que ir embora.

Por meses, eu continuei tentando uma entrevista com a Julia, mas ela não quis. só que, andando aqui e ali, eu ouvi um pouco da história dela. A história da Julia. Ela costuma dizer que é anarquista e várias pessoas da família dela são de esquerda. Ela nasceu numa cidade pequena no interior do Rio chamada Paty do Alferes e viveu durante alguns anos num sítio. Depois, a família mudou pro Méier, um bairro da zona norte do Rio, e foi ali que ela cresceu e até pensou em ser PM um dia. Mas a Julia não chegou a fazer concurso para polícia. Só que um policial marcou a vida dela.

MINISTÉRIO PÚBLICO: "Deixa eu lhe perguntar: quando foi que a senhora conheceu o Adriano e como conheceu?".

JULIA LOTUFO EM DELAÇÃO: "Conheci o Adriano em 2011".

JULIANA DAL PIVA: Essa é a Julia contando o início da relação dela com o Adriano durante as gravações da proposta de colaboração premiada dela em julho de 2021.

JULIA LOTUFO EM DELAÇÃO: "Em frente do Devassa, que não existe mais, da praia da Barra da Tijuca. Ele estava com os amigos dele da polícia e eu com as minhas amigas. Adriano era muito tímido e a gente se conheceu. E daí, ele era casado. Aí a gente ficou nesse impasse, ele casado e eu vivendo minha vida. Até ele se separar. Em 2014, ele se separou. Eu já tinha tido a Luisa. Aí a gente casou e ficou até 2020".

MINISTÉRIO PÚBLICO: "Quando é que vocês se separaram?".

JULIA LOTUFO EM DELAÇÃO: "Em 2011".

MINISTÉRIO PÚBLICO: "Mas se conheceram mesmo então?".

JULIA LOTUFO EM DELAÇÃO: "Em 2011. Quando eu conheci ele, eu fiquei três meses perdidamente apaixonada, só que aí ele veio me falar que a mulher que ele tava se separando engravidou. Eu era uma menina, tinha 19 anos. Falei: 'Ah, não. Vou viver a minha vida e a gente conversa um dia'. Amava loucamente. Estava muito apaixonada. Mas aí acabou que conheci o pai da Luisa, tive filha. A Luisa com um ano e oito meses, nos separamos. Mas ele mandava recado, mas separamos. E isso foi muito decisivo, porque eu me afasto em 2011 e volto em 2014 e em 2011 ele era chefe de segurança do Zé Personal. Era o marido então da Shanna Garcia, que faleceu, foi assassinado. Em 2011, era ainda era só segurança, chefe da segurança, assalariado, não tinha participação em nada. Quando eu volto para ele, em 2014, já era outro cenário. Ele já era sócio do Bernardo, tinha porcentagem. O Bernardo assume o posto do Zé".

JULIANA DAL PIVA: A Julia viveu no condomínio Floresta, aquele que você ouviu agora pouco o delegado Vinicius Jorge comentar. Mas a Julia odiava aquele lugar.

JULIA LOTUFO EM DELAÇÃO: "Em 2016 eu fui para o Floresta. Fiquei no Floresta, que eu odiava o Floresta, que era ali dentro de Rio das Pedras. Eu odiava estar ali, odiava aquelas pessoas, era um ambiente que eu não. Por exemplo, a piscina do condomínio, era descer e encontrar com todos os milicianos de Rio das Pedras dentro da piscina. E eu não queria que minha filha crescesse ali. Eu não tinha amizade com as mulheres, com os filhos. Para elas, eu era assim uma afronta porque o Adriano se separou da mulher para ficar com uma menina 15 anos mais nova, tinha aquele preconceito. Aí saí de lá em 2017, em janeiro de 2017, e fui pro píer, na Barrinha, em frente à 16ª DP. A gente sai do Floresta exatamente por isso. Porque o Floresta acabou virando um ponto de reunião de negócios de assassinatos, de problema. Eu chegava ali e só gente maneira, né? Aí não dá. Aí eu saio e ele continua mantendo lá, esse lugar para isso. Alguém que quisesse encontrar ele. Na prática, virou o escritório".

JULIANA DAL PIVA: E, na delação, a Julia também falou do Queiroz.

MINISTÉRIO PÚBLICO: "Fabrício Queiroz?".

JULIA LOTUFO EM DELAÇÃO: "É o Queiroz, que foi parceiro dele na polícia. O Adriano ficou um tempo no 18º. Que é Jacarepagua. Que foi quando? Acho que ele conhecia o Queiroz antes, mas lá eles trabalham juntos e eles ficaram muito amigos. Que foi quem apresentou a família, que ele ficou bem amigo. O Queiroz é bem amigo dele. Ele tinha um carinho imenso pelo Queiroz também".

JULIANA DAL PIVA: Você ouviu ela falando que foi o Queiroz quem apresentou a família? Ela não completou ali, mas eu apurei e era uma referência à família Bolsonaro. Daqui a pouco você vai entender o por quê ela não disse o nome todo ali. E, ainda falando da delação, a Julia também citou uma série de informações sobre assassinatos que o grupo do Adriano fazia.

JULIA LOTUFO EM DELAÇÃO: "O Adriano tinha uma coisa muito engraçada, ele falava que para entrar o que tinha que ter no currículo era ser ex-PM. Ele falava: 'Eu não vou carregar a culpa de ninguém ter sido expulso e eu ter que carregar nas costas o resto da vida você porque você foi expulso por causa de mim, já vem ruim'. Ele já pegava ruim".

JULIANA DAL PIVA: A viúva do Adriano também explicou como ele aplicava o dinheiro que recebia da contravenção em Rio das Pedras.

JULIA LOTUFO EM DELAÇÃO: "O Adriano tinha a milícia porque ele era policial, um ex-policial militar. Então a área da milícia era dominada, agora já misturou, mas era, na época que ele chegou, era pelos policiais. Isso relatado a mim. Eu perguntei: 'Como você veio parar em Rio das Pedras?'. Porque ele chegou em Rio das Pedras antes da contravenção, mas sem ser como construtor. Ele tinha camelô de CD, ele entrou como camelô. Fez uma loja de camelô. Porque ele conhecia, já da polícia, o Mauricio, que era o chefe da mílicia em Rio das Pedras.

MINISTÉRIO PÚBLICO: "Na medida em que ele começou a ganhar dinheiro da contravenção, ele começou a aplicar ali?".

JULIA LOTUFO EM DELAÇÃO: "A aplicar ali. O Adriano recebia em média mensal da contravenção de R$ 500 mil a R$ 700 mil/mês. Ele investiu tudo dele praticamente em Rio das Pedras. Terrenos, galpões, vila, apartamento, quitinete, lojas. Existia propina para não estourar o bingo. Para ninguém ir lá. Para manter os bingos, pagava batalhão, mas esses eram os pormenores dos descontos. Os maiores eram, sim, para eles continuar fazendo, abrangindo cada vez e qualquer um que viesse intervir nos assassinatos".

JULIANA DAL PIVA: O Adriano gostava de ler livros sobre snipers e, nos últimos anos da vida, tinha se interessado muito pela história do narcotraficante colombiano Pablo Escobar. O Adriano tinha visto séries e filmes sobre a história dele na TV e alguém chegou a me mostrar o Adriano num vídeo com uma camiseta com a foto do Escobar estampada.

Em uma das investigações dos crimes do Adriano, uma testemunha disse que ele tinha um modus operandi para cometer os "crimes perfeitos". A testemunha contou que o Adriano usava um fuzil com a coronha cortada e se colocava no banco de trás do veículo, deixando só o cano da arma para o lado de fora.

Desse jeito, o Adriano evitava que as cápsulas das balas caíssem fora do carro, depois que ele disparava. Isso impedia um confronto de balística durante as investigações. E essa especialização custava caro. A Julia contou que o Adriano chegou a receber R$ 500 mil para cometer um assassinato.

JULIA LOTUFO EM DELAÇÃO: "Eles ganhavam por assassinatos".

MINISTÉRIO PÚBLICO: "O fixo mensal mais valor por alvo. A senhora sabe dizer valores assim, mais ou menos? Depende do alvo?".

JULIA LOTUFO EM DELAÇÃO: "Eu acho que dependia do alvo. Eu soube de um porque foi 500 mil, mas acredito que teve, dentro desses mortos, uns que foram mais que isso".

JULIANA DAL PIVA: A Julia tentou fazer um acordo de delação premiada para negociar uma redução de pena e até uma mudança para fora do país. Ela tem medo de ser alvo dos inimigos do Adriano. E a Julia contou muito do que sabia da vida do Adriano no crime. Mas a Julia também sustentou, na versão dela, que ela, Julia, não participava dos negócios sujos e violentos do Adriano.

Só que a Julia não teve sucesso no acordo. O Ministério Público recusou a proposta de delação em novembro de 2021. Os promotores do grupo que investiga crime organizado, o Gaeco, avaliaram que o que a Julia contou eram informações que eles já tinham por conta de outros casos. Na opinião deles, a Julia não tinha nada de novo pra acrescentar e, por isso, não valia a pena fazer um acordo.

Mas eu soube uma versão mais longa dessa história. Quando o Ministério Público recusou oficialmente o acordo, em novembro de 2021, muita coisa tinha rolado antes. A primeira tentativa dos advogados da Julia de fazer um acordo de delação foi ainda em maio e os advogados procuraram a cúpula do Ministério Público do Rio porque ela tinha dados para falar sobre pessoas com foro privilegiado, dados que só a Procuradoria-Geral de Justiça podia investigar.

A Julia tinha intenção de citar o que ela sabia da história da Danielle Nóbrega, a ex-mulher do Adriano, que eu já te contei que tinha um cargo no gabinete do Flávio. A Danielle ficou de 2008 até 2018 lotada na Alerj. Mas não foi só ela. A mãe do Adriano, a Raimunda Veras Magalhães também, e isso foi entre 2016 e 2018.

Só que as duas nunca trabalharam lá e se enrolaram junto com o Flávio na investigação de rachadinha no gabinete dele.

Quando o Ministério Público estava investigando o paradeiro do Adriano, em julho de 2019, os promotores flagraram a Julia falando da Danielle no telefone.

JULIA LOTUFO EM INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA: "Ela [Danielle] foi nomeada por onze anos. Onze anos levando dinheiro, 10 mil reais por mês para o bolso dela. E agora ela não quer que ninguém fale no nome dela? Ela sabia muito bem qual era o esquema. Ela não aceitou? Agora é as consequências do que ela aceitou".

JULIANA DAL PIVA: Algumas pessoas que estavam presentes nas primeiras reuniões sobre a delação me contaram que ela queria falar sobre isso. Do que ela, Juila, sabia sobre a rachadinha no gabinete do Flávio Bolsonaro.

Na cabeça da Julia, parece uma grande injustiça ter sido presa e ainda viver monitorada com tornozeleira eletrônica enquanto a sogra passa longe do alvo dos promotores.

Julia costuma explicar pra quem ela conhece assim: desde 2011, a Vera tem um restaurante que foi fundado em sociedade com o Adriano e esse negócio tem umas "coincidências" com o grupo criminoso que o filho dela tinha em Rio das Pedras. Os dados desses negócios são, inclusive, públicos.

Em agosto de 2019, uma reportagem do jornalista Hudson Corrêa na revista Crusoé revelou que, no mesmo endereço de uma das pizzarias da Vera, o Boteco e Brasa, no Rio Comprido, na zona norte do Rio, funciona um outro CNPJ. O Hudson verificou na nota fiscal do estabelecimento que, no papel, existiam ali dois restaurantes. Com o documento, o jornalista notou que os donos do segundo CNPJ eram Júlio Serra e Daniel Alves de Souza. Os dois foram denunciados na Operação Intocáveis junto com Adriano por formação de organização criminosa.

Segundo a promotoria, o Júlio atuava no controle da movimentação financeira do grupo e o Daniel era gerente da milícia da Muzema. E os dois, o Júlio e o Daniel, foram, depois, condenados pelo Tribunal de Justiça do Rio.

E onde entram a Vera e os restaurantes na história do Flávio? Eles aparecem numa investigação sobre rachadinha no gabinete do senador Flávio Bolsonaro. Quando o Ministério Público quebrou o sigilo dos ex-assessores do Flávio, os promotores viram que a mãe e a ex-mulher do Adriano tinham repassado R$ 203 mil para o Fabrício Queiroz. Mas não era tudo. Os dados bancários da Danielle mostram que ela não devolvia a maior parte do salário dela diretamente pro Queiroz. A Danielle ficou com cerca de 90% dos valores recebidos ao longo de dez anos. Já a Vera ficou com cerca de 20%.

Mas, como a Danielle era uma funcionária fantasma do esquema, a Julia costuma contar que o Adriano inteirava esse dinheiro pro Queiroz, porque o dinheiro da rachadinha tinha que voltar pro Flávio.

Na investigação, a gente também soube que a conta do Queiroz também tinha recebido R$ 69,2 mil em transferências ou cheques de duas pizzarias da Vera e mais R$ 91 mil em depósitos não identificados de uma agência que fica na mesma rua dessas pizzarias no Rio Comprido. A suspeita é que o dinheiro vinha do próprio Adriano.

Mas a Vera e a Danielle não estão presas como a Julia. Agora nem denunciadas mais, porque o Superior Tribunal de Justiça anulou a quebra de sigilo que tinha sido concedida para a investigação do Flávio e, como consequência, também anulou a de vários outros investigados.

E, ao anular as provas com os dados financeiros, o caso voltou ao início. A maioria das provas precisa ser refeita e uma das principais necessidades da investigação é ter novamente uma decisão judicial que autorize acessar esses dados financeiros.

E tudo o que o Ministério Público precisa é de novas provas e indícios pra pedir uma nova quebra de sigilo. A gravação da Julia falando da Danielle, feita com autorização judicial, seria uma prova ainda mais robusta se viesse com um depoimento.

Mas a cúpula do Ministério Público recusou essa colaboração dizendo que já tinha os dados que ela queria mencionar sobre Flávio. Depois, uma nova recusa aconteceu quando a Julia tentou falar do Escritório do Crime e das acusações que tinha contra o bicheiro Bernardo Bello, com quem ela relata que Adriano trabalhou durante muitos anos.

Só que essa confusão entre a primeira recusa da Procuradoria-Geral e as primeiras conversas pra delação sobre os assassinatos do grupo do Adriano gerou uma profunda crise dentro do Ministério Público. Isso fez com que as promotoras que investigavam a morte da vereadora Marielle Franco suspeitassen que tinha uma interferência. E, como consequência, elas decidiram deixar o caso.

TRECHO DE JORNAL NACIONAL NA GLOBO DE 10/JULHO/2021: "Promotoras do Ministério Público do Rio pediram para deixar a investigação dos assassinatos da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes. Simone Sibilio e Letícia Emile estavam à frente do inquérito desde setembro de 2018, cinco meses depois da execução. Comandaram a investigação que levou à prisão de vários integrantes da quadrilha de Adriano e queriam descobrir se ele tinha informações sobre os mandantes do assassinato de Marielle e Anderson".

JULIANA DAL PIVA: Lembra do meu encontro com a Julia no Tribunal de Justiça em abril de 2022? Algum tempo depois daquele dia, eu consegui saber boa parte das coisas que a Julia falou na audiência.

A Julia contou no tribunal que chegou a trabalhar na Alerj, entre 2016 e 2017. Ela tinha um cargo como assistente na Subsecretaria-Geral de Recursos Humanos da Alerj. Ela recebia um salário de R$ 3.400. A nomeação dela foi assinada pelo Jorge Picciani, ex-presidente da Alerj, preso na Operação Cadeia Velha, que é braço da Lava Jato no Rio de Janeiro.

Na versão de Julia, mesmo como mulher do capitão Adriano, ela trabalhava. Fazia questão de ter o próprio dinheiro e não se envolvia nos negócios dele. A Julia foi acusada de administrar o dinheiro do Adriano. Tanto que, em 2017, quando ela saiu da Alerj, a Julia também recebia dinheiro do Adriano por meio da pizzaria da Vera, a mãe do Adriano. Entrava na conta da Julia uma mesada de R$ 5.000, todo mês, para pagar as contas. Mas ela sustentou no depoimento que não tinha nenhum papel na administração dos negócios. A Julia ainda disse que o Adriano era egoísta e tinha deixado ela numa situação muito difícil. Isso ela também falou nos vídeos na tentativa de colaboração premiada.

JULIA LOTUFO EM DELAÇÃO: "Ele era egoísta".

MINISTÉRIO PÚBLICO: "Ele não se preocupou com criar uma estrutura para depois?".

JULIA LOTUFO EM DELAÇÃO: "Não. Ele veio pensar nisso pro final. Que foi quando a gente começou a pensar na fazenda, que a gente ia morar, que ele achava que a gente ia viver de gado".

JULIANA DAL PIVA: A Julia também deu a entender que se sentia perseguida, já que o processo contra ela era montado pela acusação de lavagem de dinheiro de um restaurante que nem chegou nem a ser aberto. O Adriano deu entrada na empresa Lucho Comércio de Bebidas Ltda. em 14 de maio de 2019 e colocou cerca de R$ 200 mil ali. Um valor que a Julia admite que ele conseguiu por meio dos crimes da milícia em Rio das Pedras e da máfia da contravenção.

A Julia aparecia como uma das sócias do restaurante e admite que a ideia do Adriano era expandir o restaurante pela capital e usar o comércio para lavar dinheiro sujo do crime. Só que o Adriano morreu em fevereiro de 2020 e os planos não saíram do papel.

Sempre que pode, a Julia faz questão de ressaltar que foi a mãe do Adriano que ficou com a herança do miliciano em Rio das Pedras. Sobretudo os imóveis para aluguel na favela.

MINISTÉRIO PÚBLICO: "Esses imóveis, depois que o Adriano morreu, ficaram para quem?".

JULIA LOTUFO EM DELAÇÃO: "Esses imóveis, que que aconteceu? Hoje, está com a milícia. Quando ele morre, a mãe do Adriano, ela fala para mim que? Realmente, quando eu comecei a namorar o Adriano, em 2014, eu presenciei isso. A gente casa, ele entregou para ela folhas assim, impressas, da associação de moradores de Rio das Pedras, de apartamentos que o Adriano tinha construído. Ele entregou para ela uma média de uns 70 apartamentos. Ele tinha acabado de se separar, e a gente estava namorando. Ele falou: 'Ó, mãe, se alguma coisa acontecer comigo, os apartamentos aqui, você vai, com o Maurício e tal'. Isso em média era uns 70 que ela tinha. Quando ele morre, ela veio com aquele papel que ele deu lá atrás e falou: 'Ele me deu, aquilo lá é meu, é tudo meu e pronto'. Eu falei, tudo bem, porque eu estava no meu limite de sobrevivência, de viver, sabe? Eu realmente já não queria, já não briguei por aquilo. Eu sei que até a morte do Adriano, os três primeiros meses, que foram intensos disso, de as pessoas querendo saber onde estava o dinheiro, o que era isso, o que era aquilo, era esse o funcionamento, era o Cabeça que ainda estava lá. Não sei se é ele que ainda mantém. E até então era para a mãe do Adriano receber".

JULIANA DAL PIVA: Essa disputa por conta dos bens aconteceu depois que o Adriano morreu numa operação policial na Bahia em fevereiro de 2020. A Julia acredita que o Adriano foi assassinado e que o crime teve o envolvimento do bicheiro Bernardo Bello. O caso segue em investigação com várias contradições, principalmente por causa das lesões no corpo do Adriano.

Quem conversa com a Julia hoje em dia fala que ela convive com um conflito: uma confusão entre o que ela viveu com o Adriano e o que ela sabe que ele fez na vida de muitas pessoas. A Julia também diz que quer uma nova vida, para não ser mais vista como a viúva do Adriano Nóbrega.

Ela não é a única que se ressente dessa conexão com a imagem dele. Enquanto o Adriano estava vivo, o Jair e o Flávio Bolsonaro tentaram se afastar da figura dele várias vezes. E, ao longo do tempo, tanto da produção desse podcast quanto desde que eu comecei a investigar a vida da família Bolsonaro, eu fiquei me perguntando como acreditar que o Jair e o Flávio Bolsonaro não sabiam nada sobre a realidade da vida que o Adriano levava?

O Ítalo Ciba, ex-colega do Adriano na PM, que eu te falei no episódio dois, me disse que era comum o Adriano ir no gabinete do Flávio.

JULIANA DAL PIVA: "O Adriano se dava bem...".

ÍTALO CIBA, EX-POLICIAL: "O Adriano se dava bem com o Flávio devido o Queiroz".

JULIANA DAL PIVA: "Se dava bem era o quê? Se conhecia? O que que o senhor sabe assim? O que significava se dar bem? Beber uma cervejinha, jogar um futebol?".

ÍTALO CIBA, EX-POLICIAL: "Olha, não sei se beber uma cervejinha. O que eu sei é que o Adriano, de vez em quando, o Queiroz chamava para ir no gabinete. Ele ia no gabinete".

JULIANA DAL PIVA: O Ciba só não especificou quando foram essas visitas. Outra coisa que o Ciba disse é que o Adriano se sentia, nos últimos tempos, perseguido por ser amigo do presidente.

ÍTALO CIBA, EX-POLICIAL: "Aí, porque nós somos amigos do presidente, nós vamos ser perseguidos? É o que o Adriano uma vez falou para mim".

JULIANA DAL PIVA: "Mas então é recente então isso daí que o Adriano falou?".

ÍTALO CIBA, EX-POLICIAL: "Foi 2000 e? Foi a última vez que eu tive com ele de passagem, esbarrei com ele no shopping, se não me engano, se não me falha a memória, num shopping. 'Pô, estamos sendo perseguidos porque somos amigos do presidente', falou assim mesmo pra mim".

JULIANA DAL PIVA: O ex-capitão do Bope Rodrigo Pimentel acha que defender o Adriano na época da prisão por conta da morte do Leandro, em 2003, como eu te contei no episódio 2, não foi exatamente um problema porque o Flávio podia não saber. Mas depois? não tinha como.

RODRIGO PIMENTEL EM ENTREVISTA A JULIANA DAL PIVA: "Eu não condeno Flávio por ter ficado do lado do Adriano naquele momento. Depois eu gostaria que ele se explicasse. Naquele momento, normal. Boa parte dos policiais ficaram, mas depois manter a mãe do Adriano no gabinete, manter a ex-mulher do Adriano. Com qual interesse? Por que que um deputado estadual tá mantendo a mãe e a esposa de um assassino?".

JULIANA DAL PIVA: O Bolsonaro costuma dizer que não sabia que o Adriano ia virar o que virou. O delegado Vinicius Jorge discorda.

JULIANA DAL PIVA: "Todo mundo sabia na PM quem era o Adriano...".

VINICIUS JORGE: "Na PM, não. Fora da PM também. Na polícia, na política, no Ministério Público. Era conhecido, manjado".

JULIANA DAL PIVA: "Qual a chance de o Flávio e de o Jair Bolsonaro não saberem o que ele trabalhava de matador pro bicho, como assassino, matador de aluguel? Tem alguma chance de eles não saberem disso?".

VINICIUS JORGE: "Olha, como te disse, nunca vi ninguém que não soubesse. Porque era muito sabido. Não do grande público, mas do métier político. Polícia é muito ligada na política. A polícia conhece a política, a política conhece a polícia. A chance de não saber é remota. Porque, assim, todo mundo sabia quem era Adriano".

JULIANA DAL PIVA: São tantos dados, inclusive públicos, que não resta dúvida que o clã Bolsonaro conheceu, conviveu, homenageou e fez vista grossa pros crimes de alguns dos piores milicianos do Rio de Janeiro. Tudo isso por muitos anos. Enquanto não se enxergava esses policiais como eles realmente são, bandidos, gente como seu Alberto continua vivendo ali em Rio das Pedras ou em várias outras comunidades sob o medo.

No próximo e último episódio dessa temporada, eu vou contar mais detalhes sobre a complexa história do roubo de uma moto e de uma pistola do Bolsonaro que, depois, acabou até em assassinato.

CRÉDITOS: Este episódio usou áudios da TV Globo, da CPI das Milícias, da TV Alerj, do Ministério Público, do jornal Folha de São Paulo e da reportagem especial "Vizinhos do Mal", do UOL.

O UOL Investiga: Polícia Bandida e o Clã Bolsonaro é apresentado por mim, Juliana Dal Piva. A reportagem e pesquisa foram feitas por mim, Juliana Dal Piva, pela Elenilce Bottari e pela Naomi Matsui. A Elenilce também fez algumas narrações desse episódio. O roteiro foi escrito por mim, Juliana Dal Piva, com revisão de Juliana Carpanez.

O desenho de som e a montagem são do João Pedro Pinheiro. A produção é da Natália Mota. O design é do Eric Fiori. A direção de arte é da Gisele Pungan e do René Cardillo. A coordenação é da Juliana Carpanez, da Lúcia Valentim Rodrigues, do Graciliano Rocha e do Flávio Costa. O projeto também conta com Alexandre Gimenez e Antoine Morel, gerentes de conteúdo, e Murilo Garavello, diretor de conteúdo do UOL. Agradecimentos a Pedro Cappeti, Claudia Cotes e Flávio Costa.