UOL Investiga T2E2: As visitas de Jair Bolsonaro a matador na prisão
Juliana Dal Piva
Colunista do UOL
23/09/2022 04h02
O podcast UOL Investiga estreia nesta sexta-feira (23) sua segunda temporada, chamada "Polícia Bandida e o Clã Bolsonaro" —que você pode ouvir no arquivo acima, no YouTube do UOL e em todas as plataformas de podcast. Os quatro novos episódios já estão disponíveis.
Na segunda temporada, a colunista do UOL Juliana Dal Piva fala da relação da família Bolsonaro com agentes das forças de segurança que se tornaram milicianos e usaram seu treinamento para cometer crimes. Dezenas deles foram homenageados pelo clã ao longo de 20 anos. A jornalista traz ainda detalhes da relação da família Bolsonaro com Adriano Nóbrega, ex-policial militar morto em 2020 e apontado como chefe de assassinos de aluguel —Jair e Flávio inclusive fizeram visitas ao ex-capitão na prisão. Esta temporada tem também a história completa do roubo de uma moto do presidente em 1995, crime que mobilizou parte da polícia do Rio e simboliza vários problemas da segurança pública.
A primeira temporada, "A Vida Secreta de Jair", trouxe revelações sobre o envolvimento direto do presidente da República, Jair Bolsonaro, com a rachadinha —o esquema ilegal de entrega de salários de assessores quando exerceu seguidos mandatos de deputado federal.
No segundo dos quatro novos episódios, a colunista Juliana Dal Piva retrata duas visitas na cadeia do presidente Jair Bolsonaro (PL-RJ) e de seu filho mais velho, o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), ao ex-capitão do Bope Adriano Nóbrega, entre 2004 e 2005, enquanto este estava preso sob a acusação de assassinato.
A primeira aconteceu durante um suposto motim. Já a segunda foi para condecorar o ex-capitão com a medalha Tiradentes, a maior comenda do estado do Rio.
Em 2019, Nóbrega foi apontado pelo MP-RJ (Ministério Público do Rio) como líder de um grupo de matadores de aluguel chamado de Escritório do Crime e foi denunciado por participar de uma milícia em Rio das Pedras, na zona oeste do Rio.
A assessoria do presidente e do senador disseram, por nota, que "à época das homenagens era impossível prever que alguns desses policiais pudessem desonrar a farda" e, ainda, que no caso do motim "trabalharam para resolver uma crise".
Adriano Nóbrega morreu em uma operação policial na Bahia, em fevereiro de 2020, após passar um ano como foragido da Justiça.
Você pode ouvir UOL Investiga em plataformas como Spotify, Apple Podcasts, Google Podcasts, Amazon Music e YouTube. Abaixo, você confere a íntegra do roteiro do episódio 2.
"UOL Investiga - Polícia Bandida e o Clã Bolsonaro"
Episódio 2 - As visitas de Jair a um miliciano na prisão
JULIANA DAL PIVA: Antes de começar, um aviso: este episódio tem cenas fortes com descrições de violência e pode não ser adequado para todos os públicos
JULIANA DAL PIVA: Adriano Nóbrega. Fabrício Queiroz. Jair Bolsonaro. Você, com certeza, já deve ter ouvido esses nomes. E a história mais conhecida que envolve esses três tá resumida nesse discurso:
JAIR BOLSONARO EM DISCURSO EM OUTUBRO DE 2005: "Senhor presidente, pela primeira vez eu compareci integralmente a um tribunal do júri, na segunda-feira próxima passada. Estava sendo julgado um tenente da Polícia Militar de nome Adriano. A acusação era que, numa incursão numa favela, teria sido executado um elemento, que, apesar de envolvimento com o narcotráfico, a imprensa deu conotação de que ele era apenas um simples flanelinha. E todas as testemunhas de acusação - seis no total - todos tinham envolvimento com o tráfico, todos, o que é muito comum. E ele era o décimo militar a ser julgado. Cinco haviam sido condenados e quatro absolvidos.
E o que é curioso, deputado Betão, vossa excelência que é do Rio de Janeiro, é que o militar que havia apertado o gatilho e matou realmente aquele elemento, ele foi absolvido, e o tenente, que era o comandante da operação, foi condenado a 19 anos e seis meses de prisão, inclusive enquadrado como crime hediondo. Agora, o que é importante nisso?
Quem o condenou, Denise Frossard, eu não considero que foi a Promotoria. Compareceu o coronel Meinicke. É um dos coronéis mais antigos do Rio de Janeiro. Compareceu fardado, ao lado da Promotoria, e ali falou o que queria e o que não queria contra o tenente? contra o tenente, acusando-o de tudo o que foi possível, inclusive, né, se esquecendo do fato de que ele sempre foi um brilhante oficial e, se não me engano, foi o primeiro na academia da Polícia Militar".
JULIANA DAL PIVA: Esse que você ouviu é o Jair Bolsonaro em um dos microfones da Câmara dos Deputados no dia 27 de outubro de 2005. Esse discurso ficou gravado nos arquivos do Congresso Nacional.
E é provável que esse vídeo tivesse permanecido lá, praticamente perdido no tempo, se dois fatos não tivessem mudado a história do Brasil em janeiro de 2019.
O primeiro é a posse de Jair Bolsonaro na Presidência da República. Já o segundo foi a Operação Intocáveis, no dia 22 daquele mesmo janeiro.
O Ministério Público fluminense foi às ruas para prender um grupo de milicianos que atuava em Rio das Pedras, que é uma comunidade na zona oeste do Rio. A partir desse dia, a conexão entre Adriano Nóbrega e Jair Bolsonaro se tornou pública.
Quase 15 anos depois do discurso do Bolsonaro na Câmara, aquilo era, no mínimo, um enorme constrangimento. O Jair, como ele é chamado pelos mais íntimos, assumiu a Presidência da República do Brasil. Já o Adriano não tinha mais qualquer imagem de brilhante oficial da PM do Rio.
Em janeiro de 2019, o Adriano foi dado como foragido da Justiça e denunciado pela Promotoria do Rio como miliciano. Virou fato público que ele participava de um grupo de matadores de aluguel conhecido como Escritório do Crime, responsável por diversos assassinatos no Rio de Janeiro.
O passado como integrante do Bope, o Batalhão de Operações Especiais, ficou para trás. Começou a vir à tona a vida dupla que ele levava.
Se no início da carreira no Bope, o Adriano enfrentou operações importantes da polícia no Complexo do Alemão, pouco tempo depois, ele também usou a farda da polícia para torturar, extorquir e até matar pessoas.
Isso para ganhar dinheiro numa lógica de mercado. Quem pode, paga a proteção. Quem não tem, se vira ou perde a própria vida.
O tempo fez o Adriano se aperfeiçoar não na proteção à sociedade, mas nesse mercado do crime. E, com a técnica aprendida no Bope, ele se transformou de vez em um especializado matador.
Quem conheceu o Adriano e conviveu com o Bolsonaro, não tem dúvida de que o clã tinha noção do rumo que o ex-capitão do Bope tinha seguido. Por isso, nos últimos tempos, a família Bolsonaro até se preocupava com a associação e tentava manter alguma distância pública do Adriano.
Só que, em janeiro de 2019, não deu mais para esconder essa proximidade. E essa relação que associa diretamente o clã a um miliciano seria reforçada por outros laços construídos ao longo de muitos anos.
O Bolsonaro não tinha só discursado a favor de Adriano. Tem muito mais nessa história e inclui um dos melhores amigos do Adriano. Tô falando do Fabrício Queiroz, que eu nem preciso apresentar de novo, né?
FABRÍCIO QUEIROZ EM ÁUDIO EM OUTUBRO DE 2019: "Todas as pessoas com que eu falo eu sempre falo: 'Meu irmão, apaga. Escreveu, apaga'. Eu sei com quem eu conversei esse assunto aí".
JULIANA DAL PIVA: O que você talvez conheça pouco são as trajetórias que unem as pontas dessa história: o Bolsonaro, o Adriano e o Queiroz. Histórias que se cruzam por conta dos gabinetes do clã Bolsonaro, do esquema ilegal de rachadinha e deixaram um rastro de problemas.
No caso de Adriano e do Queiroz, do tempo de PM, ainda ficaram pelo caminho algumas mortes.
RENATA NASCIMENTO EM ENTREVISTA A DAL PIVA: "Eles barbarizaram ele. Pegaram ele vivo, mas esse Queiroz aí com o Adriano aí barbarizaram ele".
JULIANA DAL PIVA: Eu estou falando de uma época em que o Queiroz e o Adriano fizeram parte de um grupo de policiais que era chamado na Cidade de Deus de Bonde do Madruga. E isso não era uma identificação qualquer, mas um aviso.
Quando o Bolsonaro defendeu o Adriano nos microfones no Congresso Nacional, em 2005, os dois já tinham alguns episódios juntos e é a construção dessa relação do Bolsonaro com o Adriano que eu vou contar pra você aqui.
Inclusive as vezes em que o Jair foi na cadeia para ajudar e até homenagear o Adriano que estava preso pela morte de um inocente.
O Adriano é um dos 75 militares condecorados pelo clã e um dos mais violentos. Tanto que ele também liderou um outro grupo de policiais conhecido num bairro da zona norte do Rio como Guarnição do Mal.
Eu sou Juliana Dal Piva e esse é o episódio 2 da segunda temporada do podcast do UOL Investiga: Polícia Bandida e o Clã Bolsonaro.
VINHETA: "Tem gente que é favorável à milícia". "Violência se combate com a violência". "E, se for o caso, matando". "Esses grupos de extermínio, no meu entender, são muito bem-vindos". "Não se pode estigmatizar a milícia". "Isso é ser radical? Isso é ser racional".
FABRÍCIO QUEIROZ EM ENTREVISTA A PODCAST: "Servi lá na brigada paraquedista em 1984. Eu e o Jair era capitão, gente boa demais, sempre foi isso aí cara, nunca mudou".
JULIANA DAL PIVA: Esse é o Queiroz, contando como ele conheceu o presidente Jair Bolsonaro.
FABRÍCIO QUEIROZ EM ENTREVISTA A PODCAST: "Tratava o soldado como se fosse um capitão, com respeito, sem dar ordem, sem sacanear, nunca puniu ninguém. Sujeito homem, a tropa adorava esse cara. Não mudou nada, mano. O que ele é como presidente eu conheci como oficial.
Eu era corredor de corrida rústica e ele era professor de educação física. Então a gente teve um pouquinho de aproximação devido a isso. Ele me treinava. A gente corria em Brasília, corria em outros estados. Temos medalhas juntos, os meninos eu vi crescer.
E, diante disso, ele foi vereador. Quando estourou essa matéria na revista Veja que o projetou para a política, as Páginas Amarelas, eu estava com ele em Brasília, no dia em que o ministro prendeu ele. Eu que trouxe as bagagens dele de Brasília para o Rio e entreguei à esposa dele na época, levei lá na casa dele lá. E aí ficou esse 'elozinho' aí. Ele foi para a política e fui para a polícia".
JULIANA DAL PIVA: O Queiroz era da brigada paraquedista quando o Bolsonaro ainda estava no Exército, em 1984. Três anos depois, no fim de 87, o Queiroz entrou para a Polícia Militar do Rio de Janeiro.
Passaram outros 20 anos até 2007, quando o Queiroz saiu da PM e foi parar no gabinete do deputado estadual Flávio Bolsonaro. Ele se tornou assessor do filho mais velho do Jair. Essa mudança só aconteceu por causa do Bolsonaro, que indicou o antigo soldado para trabalhar com o Flávio.
O que você mais ouviu sobre o Queiroz é a investigação sobre o esquema de desvio de salários dos funcionários do gabinete do Flávio.
Nesse caso, o Queiroz apareceu fazendo uma série de depósitos para a primeira-dama, a Michelle Bolsonaro.
TRECHO DO JORNAL DA CULTURA DE AGOSTO DE 2020: "A revista Crusoé divulgou hoje, em reportagem, que a mulher do presidente Jair Bolsonaro recebeu quase R$ 90 mil em depósitos feitos pelo assessor e operador financeiro Fabrício Queiroz e a mulher dele".
JULIANA DAL PIVA: Mas tem outra história do Queiroz que é menos conhecida e aconteceu antes do tempo da Alerj. Quem me contou uma parte dela foi o Marcelo Nogueira. Ele foi um empregado doméstico do Jair por vários anos e trabalhou na primeira mansão que o Bolsonaro teve na Barra da Tijuca. Quando o Bolsonaro ainda era casado com a Cristina, de 2003 a 2007.
No papel, o Marcelo era assessor do Flávio na Alerj, mas isso eu já te contei antes, na temporada passada.
Eu conversei algumas vezes com o Marcelo desde o fim de 2021 para entender mais sobre a vida do clã Bolsonaro. O Marcelo topou a entrevista depois que ele deixou o emprego que tinha na mansão da Cristina, lá em Brasília.
A gente se encontrou num restaurante no Méier e ele ficou lembrando das histórias do passado. E uma das coisas que eu perguntei pro Marcelo foi como ele conheceu o Queiroz. Eu gravei essa conversa num lugar que tinha música de fundo, então a qualidade do áudio não está muito boa.
MARCELO NOGUEIRA: "O Queiroz foi trabalhar lá com a gente".
JULIANA DAL PIVA: "Na campanha?".
MARCELO NOGUEIRA: "Aí ele foi trabalhar nessa campanha. Aí ele me pediu se tinha como botar um conhecido dele lá e realmente a gente EStava precisando de um motoboy na época, né, e o garoto tinha moto. Aí eu contratei o menino e peguei uma amizade muito grande com ele. Não, aí esse menino falou pra mim assim: 'Marcelo, lá na Cidade de Deus não pode falar o nome do Queiroz. Não fala o nome dela lá'. 'Ué, por causa de quê?' 'Porque, quando ele era da ativa, ele era o terror aqui da Cidade de Deus, então os caras aqui tudo tem pavor dele. Tem coisa com ele. Não toca no nome dele na Cidade de Deus, entendeu?'".
JULIANA DAL PIVA: Na memória do Marcelo, esses contatos com o Queiroz começaram na campanha de reeleição do Carlos em 2004. Essa imagem de policial durão, o Queiroz construiu ao longo dos anos. Hoje em dia ele até admite.
FABRÍCIO QUEIROZ EM ENTREVISTA A PODCAST: "Para não chorar a minha mãe, chora a dele. Lá, eles atiram para matar mesmo, não tem essa de querer intimidar, não".
JULIANA DAL PIVA: Nos arquivos da polícia do Rio, eu localizei pelo menos 40 ocorrências em que o Queiroz apareceu comunicando crimes, operações em que ele participou e até um assalto do qual ele foi vítima. Mas ele também participou de várias ações violentas.
Em 97, ele chegou a ganhar um benefício que ficou conhecido no Rio de Janeiro como "gratificação faroeste", um bônus pago pelo estado por bravura. Na prática, isso significava dar um salário mais alto para os policiais que mais matavam em serviço.
Naquela época no Rio, a letalidade nas operações policiais com confronto dobrou depois da medida. Ao mesmo tempo, não se verificava se essas mortes ocorreram só dentro da lei. Então em 98, a medida caiu, mas aquela cultura violenta ficou.
Dois anos antes, um outro policial estava crescendo dentro da PM e ia ficar marcado na história do Rio de Janeiro. Eu tô falando do Adriano Nóbrega.
ADRIANO NÓBREGA: "Afunda, né. Não precisa passar aí, não. Se agarrar aí, afunda. Passar mais lá em cima (...) carregava carro nas costas. Esse barco, passo por cima?".
JULIANA DAL PIVA: Esse é um dos poucos e raros registros que existem da voz do Adriano. Eu consegui esse áudio com uma pessoa que conviveu muito tempo com o Adriano e que me pediu para manter a identidade dela em sigilo.
Na ocasião dessa gravação que você ouviu, o Adriano estava viajando, dirigindo por uma praia e reclamando que o carro podia afundar. Parecia até que ele estava de férias.
Esse áudio foi feito uns dois anos antes de o Adriano se tornar foragido da Justiça no Rio, em janeiro de 2019. Mas o Adriano já vivia em alerta porque ele sabia que estava na mira tanto do Ministério Público como de uma série de inimigos no mundo do crime.
O que o Adriano não imaginava é que a história da vida dele ia se tornar tão conhecida. Nem que a amizade dele com a família Bolsonaro ia virar manchete de jornal.
Antes de eu chegar nisso, deixa eu te falar um pouco dele. Da história do Adriano Magalhães da Nóbrega, filho da Raimunda Veras Magalhães e do José Oliveira da Nóbrega. O homem antes do capitão do Bope.
Encontrar gente que topasse falar do Adriano não foi nada fácil. A pessoa que tinha essa gravação da voz do Adriano é alguém que sabe muito da vida dele e me contou um pouco da história do Adriano antes de ele ser o chefe do Escritório do Crime.
O Adriano nasceu no Rio de Janeiro em 1977 e, quando era criança, morou por um bom tempo numa comunidade chamada Rato Molhado, que fica perto do Túnel Noel Rosa, na zona norte do Rio.
E ali o Adriano viu a violência de perto desde cedo. Ao longo da vida, lá no Rato Molhado, e depois em outros lugares onde a família dele viveu, o Adriano via, dentro de casa, o pai agredir a mãe.
Até que um dia, a mãe dele, a Raimunda, fugiu de casa. A Raimunda é conhecida por Vera, porque ela detesta o primeiro nome. E, como todo mundo conhece ela por Vera, eu vou chamar ela assim aqui também.
Quando a Vera fugiu de casa, ela deixou o Adriano e as duas irmãs e foi se abrigar com uma irmã. Depois passou a trabalhar como balconista em uma farmácia. O tempo passou e o pai do Adriano levou ele e as irmãs para viver num rancho perto de Cachoeiras do Macacu. Essa cidade pequena fica a umas duas horas do Rio no caminho de quem vai pra serra, em direção a Nova Friburgo.
Lá o Adriano viu o pai se aproximar do Rogério Mesquita, um famoso bicheiro, e ajudou o pai a cuidar de cavalos.
Quando o Adriano estava para fazer 18 anos, ele decidiu prestar concurso e entrar pra polícia, o que aconteceu em 96. Ainda aspirante, decidiu fazer o duro curso do Bope. Aí, no início das aulas, o Adriano contou pros instrutores como decidiu virar policial.
RODRIGO PIMENTEL: "Então, assim, a história do Adriano do Bope começa quando, numa operação do Bope malsucedida, em 98, a avó do Adriano vai para a janela, começa a olhar a operação, aquilo chama atenção dos policiais, os policiais imaginavam que ela era olheira do tráfico e tal, os policiais invadem a casa dela. Os policiais vão dar um esporro nela, tipo uma esculachada nela, né, e ele sai de um quarto fechado, magro: 'Gente, a minha avó. Ela tava só olhando, não sei o quê, papapapá'".
JULIANA DAL PIVA: Esse é o Rodrigo Pimentel. Ele foi da polícia, mas talvez você conheça o Pimentel por causa do filme "Tropa de Elite". O Pimentel inspirou o personagem do capitão Nascimento. No final de 2021, eu estive no apartamento dele no Leblon para saber como ele tinha conhecido o Adriano.
O Pimentel foi um dos instrutores do Adriano no curso do Bope e chegou a ser próximo do aluno por algum tempo. Quando eu conversei com o Pimentel, ele me contou que sabia algumas coisas, mas não tudo. Ele também tinha muita curiosidade sobre a vida do Adriano. Tanto que, quando eu comecei a fazer umas perguntas mais específicas, ele achou melhor ligar pra um colega de turma do Adriano.
RODRIGO PIMENTEL: "Então tá bom. Vem cá, agora uma pergunta: ele era do sexto Batalhão? Ou era do? Então, ele saiu do sexto para fazer o Coesp? Como aspirante? Tá, vocês dois eram aspiras? Terminou o curso, ele foi classificado no Bope ou ele voltou para o sexto? Então, tá bom".
JULIANA DAL PIVA: O Pimentel acompanhou como que o Adriano foi construindo a fama de valente no Bope.
RODRIGO PIMENTEL: "Não, na Academia de Polícia, ele frequentou a academia de 1999 a 2001. Na Academia de Polícia, ele foi meu aluno. A gente sai do Bope para dar um estágio na Academia de Polícia. E a gente identifica alguns alunos, já na academia, que têm mais ou menos o perfil do Bope. Não pela força física, mas pelo entusiasmo, pela vibração, pela vontade de fazer as coisas. Mas ele era um cara vibrador, mas ele era muito forte, era já era muito forte".
JULIANA DAL PIVA: "Ele tinha até um apelido, né?".
RODRIGO PIMENTEL: "Eu não chamava ele de apelido, não. Mas por que você falou isso?".
JULIANA DAL PIVA: "Não sei se eu tenho uma memória agora, algo de mamute, um troço assim".
RODRIGO PIMENTEL: "No curso de operação especiais, normalmente, as pessoas muito fortes não sobrevivem, porque você tem privação de sono, sede, água, comida... Então o cara forte ele acaba caindo mais rápido, mas ele sobreviveu no curso de Operações Especiais.
Quatro meses de curso, começam 30 candidatos, terminam oito ou sete. E ele fica no Bope a comando do coronel Venâncio Alves de Moura. E nessa época o Bope realizava dezenas operações no Complexo do Alemão. E o Adriano fica famoso no Bope em função de operações bem-sucedidas no Alemão, mas bem-sucedidas com pouquíssima cautela, utilizando às vezes o carro particular dele para atacar boca de fumo, sabe? E ele fazia companhia de um outro capitão muito maluco, também muito doido, muito corajoso, tão corajoso quanto ele, que era o Tenente Edson. Os dois faziam dupla.
E esses oficiais do Bope começam a sair do padrão das operações do batalhão. Eles começam a sair totalmente do padrão. E o Coronel Meinicke, quando assumiu o batalhão, dá um pé na bunda deles".
JULIANA DAL PIVA: Coronel Meinicke. Você ouviu no início desse episódio que o Bolsonaro detonou com ele em um discurso na Câmara para defender o Adriano. O Meinicke vai ter um papel importante em duas histórias do Adriano que eu vou te contar logo mais. Por enquanto guarda esse nome.
Antes de falar mais da trajetória do Adriano, eu quero te contar uma história sobre a criação do Bope, em 1979. Ela mostra como as coisas mudaram ao longo do tempo e intensificaram a violência.
Eu e a minha colega jornalista Elenilce Bottari conversamos com o criador do Bope, o coronel Amêndola. Ele se tornou uma figura conhecida no Rio porque foi apontado por ex-presos políticos como torturador, mas ele também zanzou pela política e ocupou cargos públicos em diferentes governos. Até 2019, ele foi secretário de Ordem Pública do ex-prefeito do Rio Marcelo Crivella.
O coronel Amêndola foi idealizador do Bope e o que pouca gente sabe é que o Bope não foi criado com o objetivo de uma tropa para subir o morro e combater o tráfico. A missão original do Bope era uma tropa de operações especiais para atuar em sequestros. Ela foi criada depois de um motim em um presídio que terminou com a morte de um coronel.
CORONEL AMÊNDOLA: "O fato que determinou a decisão de proposta de criação foi uma rebelião no presídio em São Cristóvão. Na rebelião, o diretor do presídio foi tomado como refém pelos delinquentes. Um coronel como refém tentou negociar com eles para que eles pudessem parar com a rebelião".
JULIANA DAL PIVA: O coronel Amêndola contou que quem estava envolvido naquela operação de resgate dos reféns estava dividido. Uma parte da cúpula do governo e da polícia queria invadir as celas onde os criminosos mantinham os reféns. Uma outra parte queria negociar, só que aí chegou uma hora que um grupo de policiais decidiu invadir as celas.
CORONEL AMÊNDOLA: "Um alucinado de um PM deu um tiro de espingarda e o coronel tombou de joelhos".
JULIANA DAL PIVA: Na operação malfeita, o coronel que era refém acabou morrendo com um tiro de um policial.
Outra coisa importante que o coronel Amêndola contou sobre a criação do Bope e que interessa pra história do Adriano é sobre a caveira, o símbolo do Bope, que é muito diferente do que você talvez imagine.
CORONEL AMÊNDOLA: "O símbolo que foi apresentado tinha uma caveira ali. Isso identificava tropas especiais no mundo todo. Aí fora era uma característica. Tudo não. Algumas delas. Mas aí como será a caveira? Nós tínhamos que ter uma marca registrada daquela unidade, tinha que ter uma mística. Tem que ter um símbolo.
Aí eu peguei as equipes, eu tinha 25 equipes de quatro e o tenente de cada equipe, olha só, a missão que vocês têm é o seguinte: são oito horas da noite, amanhã às 7h da manhã vamos nos reunir e cada equipe dessa vai trazer um símbolo desenhado para nós discutirmos em conjunto e decidir qual será o símbolo que vai ser aprovado.
Então, cada um trouxe no dia seguinte às 7h os desenhos, e um desenho do tenente Cavaliere, agora coronel, está reformado, o dele foi aquele que toda a equipe, todos, entenderam que era o melhor. Ela veio com a descrição heráldica, o que representa a caveira? Porque confundiu-se com o esquadrão da morte antigo, foi um problema, porque a caveira era símbolo de morte. Mas o sabre sobre a caveira muda a figura, é a vitória sobre a morte".
JULIANA DAL PIVA: É provável que você já tenha ouvido falar que os próprios policiais do Bope se identificam como "caveiras". O Adriano, por exemplo, tinha até um email que a senha era assim "caveira106".
Eu dei uma volta aqui porque, quando estava tentando descobrir a caminhada do Adriano até conhecer o Bolsonaro, eu fiquei me perguntando como que um policial da tropa de elite da PM do Rio se transformou em um matador de aluguel. Então quer dizer, o Bope foi criado para salvar vidas e tinha até um símbolo para isso.
Com o tempo, como o próprio coronel Amêndola contou, isso mudou. O Bope passou a ser usado como uma tropa de combate ao tráfico e até a tropa esqueceu o que significava o sabre sobre a caveira. A vitória sobre a morte.
O Bope passou a simbolizar, para muita gente nas comunidades dominadas por organizações criminosas, a própria morte. E alguns homens treinados nessa tropa também mudaram de lado.
O coronel Amêndola também tem outro ponto importante no que diz respeito à história do Adriano. O Amêndola recrutou para a fundação do Bope o coronel Meinicke, que é bastante respeitado dentro da polícia.
E o Meinicke é o responsável por expulsar o Adriano do Bope em 5 de novembro de 2002. O Meinicke depois ia ser o corregedor responsável pelo caso que levou o Adriano a ser preso em 2003.
Então, lembra do discurso do Bolsonaro no início desse episódio? Achei curioso. Entre o Meinicke, coronel fundador do Bope, e o Adriano, o Bolsonaro escolheu o amigo do Queiroz.
Antes de falar da prisão do Adriano, eu preciso te contar um pouco mais sobre essa época no Bope e sobre quando o Adriano conheceu os Bolsonaro. O Flávio, por exemplo, diz que conheceu o Adriano quando foi fazer aula de tiro dentro do Bope.
FLÁVIO BOLSONARO EM ENTREVISTA AO GLOBO: "Eu conheci o Adriano dentro do Bope, ele me deu instrução de tiro, por intermédio do Queiroz, que ele serviu com ele em algum batalhão que eu não sei qual".
JULIANA DAL PIVA: Os quartéis no Rio de Janeiro costumam dar curso de tiro para algumas autoridades, numa espécie de cortesia. Às vezes pode ir até alguém que não seja uma autoridade, mas tem algum contato ali dentro. Só que o Flávio não era nem deputado até o início de 2003.
Então, quando eu ouvi essa história do Flávio, num depoimento que ele deu no caso da rachadinha, eu fiquei pensando que tinha algum buraco nela. Porque as datas não batem. O Adriano fica no Bope de 2000 a 2002. Em 2002 é justamente o ano em que o Flávio disputou a eleição para Alerj pela primeira vez, ele tinha só 21 anos. E, como eu te contei, ele só vai tomar posse como deputado, no ano seguinte, em 2003.
Ao mesmo tempo, o Flávio sempre diz que foi o Queiroz que apresentou o Adriano para o clã Bolsonaro. Aí eu fui tentar saber quando que o Queiroz e o Adriano se conheceram. A história do Queiroz é que ele conheceu o Adriano em 2003, no 18º Batalhão.
Mas o Queiroz e o Adriano só serviram juntos nesse batalhão justamente por alguns meses em 2003 e quando o Adriano já não estava mais no Bope. Então, é bem provável que o Queiroz e o Adriano já se conhecessem antes de trabalhar juntos no 18º Batalhão.
Resumindo, se o Flávio fez curso de tiro no Bope antes de 2003, ele não era nem deputado nessa época.
O Queiroz não quis dar entrevista sobre isso, mas vários anos depois alguém ia reforçar essa minha suspeita. Vou te contar mais adiante.
Mas tá faltando contar aqui como o Adriano saiu do Bope. Ele foi expulso pelo coronel Meinicke. O Meinicke foi outro policial que não quis dar entrevista. Ele está aposentado e tudo o que ele diz sobre essa história do Adriano é que é passado.
O Meinicke falou que tudo o que ele tinha para dizer está no processo da corregedoria da PM e no depoimento no TJ, naquele caso em que o Adriano matou um morador da zona norte. Segundo o Bolsonaro, foi o depoimento do coronel Meinicke que condenou o Adriano e deixou o agora presidente furioso, a ponto de discursar na Câmara dos Deputados para defender o Adriano.
Mesmo sem a entrevista do Meinicke, eu consegui saber um pouco da história da saída do Adriano do Bope. Quem acompanhou o episódio diz que o coronel Meinicke começou a desconfiar do comportamento do Adriano, que, de vez em quando, fazia uns serviços de modo meio informal para a Polícia Civil.
Na ficha do Adriano, também tem algumas punições por ele fazer segurança privada em um eventos no ano de 2000. O pessoal da polícia também que o Adriano vendia umas muambas, uns tênis que a Daniele, mulher dele naquela época, trazia do Paraguai.
E tudo isso começou a gerar uma desconfiança dentro do Bope. Um dia o Meinicke chamou o Adriano na sala dele e deu ordem: junta suas coisas e vai embora. O Adriano saiu chutando porta e logo em seguida alguns policiais se enfileiraram na porta do comandante para tentar convencer o Meinicke a mudar de ideia, mas o coronel sustentou e perguntou se alguém queria ir junto com o Adriano.
O Adriano tinha um papel central no Bope naquela época. Era instrutor de vários cursos. Então aquela saída chamou muita atenção. Fora do Bope, o Adriano foi para o Batalhão de Choque e depois foi parar no 18º Batalhão, onde estava o Queiroz. Esse batalhão fica na área de Jacarepaguá e da Cidade de Deus, para onde eu fui durante a produção desse podcast.
JULIANA DAL PIVA: [som ambiente] "Acabamos, podemos tocar".
MOTORISTA: "Essa avenida aqui já foi cenário de vários protestos. Quando tinha operação policial em que morria inocente, aqui virava campo de batalha. Tacavam fogo, a polícia vinha, são dois quarteirões, ó".
JULIANA DAL PIVA: A Cidade de Deus é outra parte deste episódio de que você já ouviu falar por causa do filme que tem o mesmo nome. É um bairro que fica na zona oeste do Rio e foi criado em 1965. Ele recebeu pessoas que tinham ficado desabrigadas depois que o governador Carlos Lacerda decidiu desocupar áreas nobres da zona sul do Rio de Janeiro, em especial, o Leblon e a Lagoa.
O Queiroz serviu no 18º Batalhão por cerca de dez anos. E foi lá que ele conheceu o Adriano ou ao menos é a história que o Queiroz conta. Um dos episódios que mais marca o Adriano e o Queiroz nesse batalhão aconteceu na madrugada do dia 15 de maio de 2003.
Os dois se envolveram em um auto de resistência. Ou como se diz atualmente "mortes em decorrência de um confronto policial". Os boletins de ocorrência desses casos quase sempre começam do mesmo jeito. O enredo é mais ou menos assim: via de regra os policiais relatam que faziam um patrulhamento de rotina quando se deparam com elementos armados que passaram a efetuar disparos. A partir disso, é justificada uma reação da polícia, o confronto e os mortos.
Essa foi a história do Queiroz e do Adriano no dia 15 de maio de 2003. No script dos dois, quando o confronto acabou, eles viram no chão o corpo de um homem negro, com uma bolsa preta, que teria dentro um saco de cocaína e uma arma. Os policiais disseram que pegaram o homem e levaram para o Hospital Cardoso Fontes. Supostamente, tentando socorrer. Só que o homem já não estava mais vivo.
Na Cidade de Deus, a história que os moradores contam é outra. O homem tinha nome e família. Era o Anderson Rosa de Souza, ele tinha dois filhos com a Renata, e ela lembra assim do que aconteceu.
ENTREVISTA COM RENATA NASCIMENTO, VIÚVA DE ANDERSON ROSA DE SOUZA: "Eu fui trabalhar. Nisso que eu tava descendo para trabalhar, eu tava até com o uniforme dentro da bolsa. O uniforme, eles tiraram e jogaram no chão, entendeu? Gritaram comigo. Me chamaram de puta, tudo. Eu fiquei quieta, né? Porque, se trata dessa gente assim, a gente não tem o que falar. Eu fiquei quieta. Aí estava eu e um amigo meu. Botei a roupa dentro da bolsa e fui trabalhar. Aí, quando foi de manhã, vieram aqui me comunicar.
Esse Queiroz aí com o Adriano aí barbarizaram ele. Mandaram ele ajoelhar e atiraram na nuca dele. Pegaram vivo, mas mandou ele botar os joelhos no chão, né, se ajoelhar e deram um tiro na nuca dele".
JULIANA DAL PIVA: "E naquela época pelo que eu soube aí do pessoal da Cidade de Deus também, tanto o Adriano quanto o Queiroz, eles era bem conhecidos, né?".
RENATA NASCIMENTO: "Ah, eram. 'Nego' via eles, até se escondia. Até gente mesmo, morador".
JULIANA DAL PIVA: "E tinha um nome a patrulha deles, né? Eles eram conhecidos por um nome, não tinha?".
RENATA NASCIMENTO: "Bonde do Madruga, é".
JULIANA DAL PIVA: "E naquela época as pessoas então tinham bastante medo, é...".
RENATA NASCIMENTO: "Sim, a Cidade de Deus toda".
JULIANA DAL PIVA: E esse não foi o único ferido ou morto que o Queiroz deixou para trás na carreira da polícia. Em janeiro de 2021, eu conversei com o confeiteiro Antônio Rabelo. A história não é muito diferente do que aconteceu com o Anderson.
Em novembro de 2002, o Antônio disse que estava indo num baile funk, na Cidade de Deus, quando ouviu um barulho de tiro. O Antônio contou que tinha várias pessoas ao redor e todo mundo começou a correr, tentando fugir do tiroteio. Sem saber, ele acabou dando de cara com um comboio policial que estava atirando na direção dele. O Antônio tomou tiros nas pernas, no joelho, no pé e caiu. E, quando ele estava caído, o Antônio viu um outro rapaz, também no chão, ensanguentado.
O Antônio foi levado pelos policiais para o Hospital Lourenço Jorge, na zona oeste do Rio. Mais tarde, ele foi transferido para o Hospital Miguel Couto e, depois de algumas semanas internado, ele sobreviveu. Só que o Antônio ficou com sequelas e até hoje, 20 anos depois, ele tem dificuldade para caminhar.
O homem que o Antônio viu ensanguentado não teve a mesma sorte. O Gênesis da Silva foi atingido por um tiro que entrou na parte de trás do pescoço e saiu pelo nariz. Ele morreu meia hora depois de chegar no hospital.
Na delegacia, o Queiroz e os colegas registraram o tiroteio e disseram que o Gênesis era um traficante, mas ele não tinha qualquer anotação criminal. O Gênesis tinha 19 anos e sonhava em ir para o Exército.
O Anderson também não tinha antecedentes criminais, mas a mulher dele, a Renata, me contou que, por estar desempregado, ele andava trabalhando como olheiro do tráfico. Só que, segundo a Renata, ele não andava armado.
Tanto a morte do Anderson como a do Genesis foram registradas na 32ª Delegacia de Polícia, que quase não fez esforço algum para investigar esses casos por quase 20 anos.
Nem a Renata, mulher do Anderson, ou o Antônio, sobrevivente do tiroteio, foram ouvidos nessa delegacia por mais de duas décadas. Por muitos anos, a delegacia e o Ministério Público trocaram ofícios sem ouvir testemunhas ou fazer perícia nas armas dos policiais.
Depois dessas mortes, em 2002 e 2003, algo aconteceu e o Queiroz começou a tentar sair do 18º Batalhão. O Flávio Bolsonaro chegou a mandar um ofício pedindo os serviços do Queiroz no gabinete dele na Alerj. Mas o Queiroz acabou ficando anos lotado no Departamento Pessoal de Polícia. E, segundo o Queiroz, ele ficou de adido na Polícia Civil.
FABRÍCIO QUEIROZ EM ENTREVISTA A PODCAST: "Depois, um dia, eu fui requisitado para ficar na Polícia Civil, à disposição da Polícia Civil. Aí o chefe de polícia me deu o ofício lá na época. Eu lembro até que era o doutor Allan Turnowski, que hoje está vindo candidato também. Ele falou: 'Está aqui seu ofício'. Eu falei: 'Beleza'. 'Agora, tem que ter um padrinho para assinar isso aí para pedir ao comandante-geral lá da PM para assinar'. Eu: 'Padrinho, o que é isso? Padrinho?'. Você vê, eu não estava nem aí para política, não, cara. Ele falou: 'Um político'. Eu falei: 'Pô, o único político que eu conheço é o Bolsonaro, cara'. Aí, maior sorte, fui lá na Câmara dos Vereadores, o cara é deputado federal, mas fui na Câmara dos Vereadores e ele estava lá. Eu: "Vim pedir". Ele me abraçou, o caramba, foi na mesma hora lá e conseguiu para mim, pediu lá, fez o pedido lá".
JULIANA DAL PIVA: Então o Queiroz saiu do 18º Batalhão e o Adriano, que já era tenente, foi transferido para o 16º Batalhão, em Olaria, na zona norte do Rio. Isso foi entre julho e agosto de 2003.
O Adriano então vai comandar um Grupamento de Ações Táticas (GAT). Mas, na boca do povo, Adriano e o grupo dele eram conhecidos como a Guarnição do Mal. E eu já volto para contar mais sobre esse grupo.
INTERVALO
JULIANA DAL PIVA: A Guarnição do Mal não era identificada como "do mal" à toa. O grupo saía em patrulha no bairro de Parada de Lucas, na zona norte do Rio, mas o objetivo deles era outro. Eles procuravam moradores da região para extorquir. Os policiais levavam essa pessoa para um terreno baldio e a agrediam. Torturavam mesmo. Até a pessoa topar pagar um valor. Coisa de R$ 1 mil ou R$ 2 mil. Mas R$ 1.000 em 2003 valem hoje quase R$ 3.000. Não é qualquer morador que tem isso.
O primeiro sequestro que o grupo fez foi no dia 28 de outubro de 2003. E olha que o Adriano tinha sido do Bope, que foi criado para salvar refém de sequestro.
No centro do Rio, o Flávio Bolsonaro estava longe da situação dos moradores da Parada de Lucas. Se ele sabia do que acontecia na época, eu não sei.
E, muito perto desses sequestros, o Flávio pediu uma moção de homenagem pro Adriano e os demais integrantes do grupo, aquele que os moradores chamavam de Guarnição do Mal. A Elenilce vai ler para você um trecho do texto da homenagem
ELENILCE BOTTARI LÊ TRECHO DE HOMENAGEM A POLICIAIS: "Com vários anos de atividade, este policial militar desenvolve sua função com dedicação, brilhantismo e galhardia. Presta serviços à sociedade desempenhando com absoluta presteza e excepcional comportamento nas suas atividades".
JULIANA DAL PIVA: Esse texto era meio padrão e, além do Adriano, outros nove policiais foram homenageados no mesmo dia. Incluindo até o Queiroz. Só que naquelas semanas, o que o Adriano fazia era usar a farda da polícia para continuar agredindo os moradores em troca de dinheiro. Passaram 15 dias e, em 11 de novembro de 2003, outros dois moradores também foram capturados e torturados até aceitarem pagar R$ 1.000.
No dia 21 de novembro de 2003, foi a vez do Leandro dos Santos Silva. Mas dessa vez o Adriano e os outros policiais pediram R$ 2.000.
Depois de horas torturando o Leandro, os policiais concordaram em ficar com mil e buscar a outra metade quatro dias depois. O que Adriano e o grupo dele não estavam esperando é que o Leandro e os outros fossem na corregedoria da polícia denunciar as agressões e a extorsão.
O Leandro fez até um exame de corpo delito, que constatou as lesões. Ele tinha marcas compatíveis com uma tentativa de asfixia. O Leandro contou que foi sufocado com um saco plástico e com um saco de cimento.
Mas de algum jeito, alguns dias depois, o Adriano e os outros integrantes do grupo de policiais souberam da denúncia na corregedoria.
Aí, veio o dia 27 de novembro de 2003. Era mais ou menos 6h da manhã, quando o Adriano e o grupo dele foram na casa de todos os moradores que denunciaram eles na corregedoria. Casa por casa.
Mas o único que eles encontraram foi o Leandro, que tinha saído para comprar pão. Ele tomou três tiros. O último já caído.
Muita gente viu o que aconteceu e aquilo gerou revolta e protesto. O Adriano e os outros policiais foram presos em flagrante. O escândalo foi tão grande que caiu até o comandante do 16º Batalhão.
E foi aí que o coronel Meinicke, aquele que mandou o Adriano embora do Bope, voltou pra cena.
O Meinicke era o corregedor da polícia e pegou o caso para investigar. Todo o grupo do Adriano foi denunciado e levado pra julgamento em júri popular em 2005.
Mas, de novembro de 2003 até o júri, em outubro de 2005, todos eles ficaram presos. E foi na cadeia que o clã Bolsonaro passou a se aproximar ainda mais do Adriano.
SOCIOLÓGO PAULO BAÍA: "Foi uma rebelião relâmpago para tipo de rebelião".
JULIANA DAL PIVA: Esse é o sociólogo Paulo Baía. Ele foi subsecretário de Direitos Humanos do governo do Rio de 2003 a 2005.
SOCIOLÓGO PAULO BAÍA: "Ela começou às 7h da manhã, no café da manhã, é... como nós soubemos da rebelião? O coronel Jorge da Silva recebeu uma ligação do deputado Flávio Bolsonaro dizendo que estava acontecendo a rebelião. O Flávio Bolsonaro ligou pra mim também para me informar que estava acontecendo a rebelião".
JULIANA DAL PIVA: A Elenilce e eu procuramos o Paulo Baía depois de ouvir falar que o Jair e o Flávio visitavam o Adriano na prisão. Inclusive, durante um polêmico episódio sobre um suposto motim.
SOCIÓLOGO PAULO BAÍA: "Agora, uma coisa que eu quero frisar, esta rebelião é uma falsa rebelião, é um circo armado para projetar Flávio Bolsonaro".
JULIANA DAL PIVA: Pra você entender do que o Paulo Baía tá falando, a Elenilce vai ler pra você a edição do jornal O Globo de 28 de outubro de 2004.
ELENILCE BOTTARI LÊ TRECHO DO GLOBO DE 2004: "Notícia de um motim iniciado. O fim de privilégios de 91 policiais militares presos, que aguardavam a decisão da Justiça nos quartéis da PM, foi a causa de um motim no prédio do Ponto Zero, antiga carceragem para presos com nível superior, em Benfica, para onde eles haviam sido transferidos na manhã de ontem. Depois de um quebra-quebra, os PMs presos foram levados para a Casa de Custódia de Benfica, que funciona junto ao Ponto Zero. Pela primeira vez no Rio, policiais militares acusados de crimes como as chacinas de Vigário Geral e Candelária se rebelaram porque foram transferidos de unidades como o Batalhão de Choque, que abrigava 50 presos. Neste último, os detentos tinham privilégios como celulares, geladeiras e até fogões".
JULIANA DAL PIVA: As visitas do Flávio na prisão já eram conhecidas, mas as do Jair, não. Aí alguém lembrou do episódio do suposto motim do Batalhão Especial Prisional e eu e a Elenilce fomos atrás das testemunhas desse episódio. O Paulo Baia tava lá e lembra de muita coisa.
SOCIÓLOGO PAULO BAÍA: "O Flávio me ligou, é, e falou assim: 'Olha, professor, desculpa a hora'. 'Não, eu acordo seis horas da manhã, cinco horas da manhã. Ele falou assim: 'Está havendo uma rebelião e nós fomos acionados e eles estão querendo alguém dos direitos humanos'. A frase do Flávio: 'Já que os direitos humanos sempre atendem os bandidos, porque não atender os policiais que estão presos, sem culpa formada'. Eu falei assim: 'Não há problema nenhum. Vou agora para aí, vou reunir a equipe. Você me dá uma hora, que é o tempo que eu tenho de sair aqui do Flamengo, passar no centro da cidade e pegar a equipe para ir para lá'".
JULIANA DAL PIVA: Depois da ligação, o Paulo Baia disse que chamou um padre que costumava atuar nessas situações e foi até o presídio. Lá no presídio já estavam outros policiais e delegados tentando acabar com o motim.
PAULO BAÍA: "Então entrou eu, o Paulo Souto e o padre André para ter a primeira conversa com os entre aspas amotinados. Por que é que eu falo entre aspas amotinados? Porque eu acompanhei muitas rebeliões ao longo da vida. E, nessa situação de amotinados, os amotinados usam escudos humanos, crianças, mulheres, reféns, para se proteger. Eu nunca vi amotinados de peito aberto, sem uma proteção fora disso. Quando eu cheguei no presídio, já estavam lá o deputado Flávio Bolsonaro e o deputado Jair Bolsonaro. Eu conversei com os dois, mais com o Flávio do que com o Jair, o Flávio era deputado estadual e nós tínhamos uma relação grande porque o Flávio acompanhava os inquéritos, as sindicâncias".
ELENILCE BOTTARI PERGUNTA: "Com que oficiais ou praças o Flávio Bolsonaro conversava?".
PAULO BAÍA: "O principal interlocutor do Flávio Bolsonaro era o Adriano. E aí eu procurei saber: 'Quem é esse rapaz aí que fala com o Flávio?'. E a outra coisa também, todos com celulares. Todos com celulares, falando com todo mundo, enfim. Todo mundo com celular. Eu não posso afirmar, seria leviandade da minha parte, que eles falaram com Jair Bolsonaro. Porque o Jair Bolsonaro foi muito discreto. Ele ficou lá, mas ficou na dele. Conversou com o comandante de uma unidade do lado dos Bombeiros, ele ficou conversando com a unidade dos Bombeiros. Chegaram mais dois oficiais da Polícia Militar, capitãs ou tenentes, e conversaram com ele, mas ele não entrou nas celas de negociação. O Flávio entrou. Até porque o Flávio tinha uma função institucional. O Flávio era deputado estadual e era da comissão de controle. Já o Jair Bolsonaro era um deputado federal que não tinha jurisprudência, não tinha autoridade para intervir ali. O Flávio não, o Flávio tinha".
JULIANA DAL PIVA: E essa situação que o Paulo Baía tá contando se estendeu por 19 horas, até quando chamaram o coronel Meinicke, sempre ele, para resolver. A Elenilce vai ler para você a edição do jornal O Globo de 29 de outubro de 2004.
ELENILCE BOTTARI LÊ TRECHO DO GLOBO DE 2004: "Depois de 19 horas de tensão, terminou às 11h de ontem a rebelião de 77 PMs presos no antigo Ponto Zero, atual Prisão Militar de Benfica. O tumulto acabou minutos depois da entrada de policiais do Batalhão de Choque na unidade: duas explosões de bombas de efeito moral e muita fumaça encerraram o motim, levando de volta às celas os PMs acusados de crimes. Os amotinados foram, em seguida, transferidos para o quarto andar do prédio, que é parte da antiga Casa de Custódia de Benfica, porque a Prisão Militar foi destruída".
JULIANA DAL PIVA: Aquela situação no presídio só serviu para tumultuar. Mas também chamou bastante atenção para um deputado que estava em início de mandato, o Flávio. Os policiais presos continuaram lá em Benfica e não voltaram para a carceragem do Choque, como estavam antes.
A transferência dos militares presos para um batalhão prisional era defendida na cúpula da Polícia Militar para que fosse possível ter mais controle sobre aqueles presos.
Para você entender, sabe o que acontecia? No tempo em que o Adriano estava preso no Batalhão de Choque, a mulher dele naquela época, a Daniele, chegou a passar algumas noites na carceragem junto com Adriano sem autorização da polícia. Isso gerou até uma sindicância interna.
Mesmo assim, nessa época, o Flávio ficava defendendo os interesses do Adriano e, claro, indo no Batalhão Especial Prisional. Quem também me contou sobre essas visitas do Flávio na prisão foi o Ítalo Ciba. Ele é um policial que também integrava a Guarnição do Mal. Ele foi preso junto com o Adriano pela morte do Leandro. No processo, o Ítalo Ciba foi identificado como o responsável pelos tiros que mataram o Leandro. Alguns anos depois, o Ítalo virou vereador e me deu uma entrevista junto com o meu colega Bernardo Mello, do jornal O Globo, em fevereiro de 2020.
ÍTALO CIBA AO JORNAL GLOBO: "Um detalhe que você não sabe. Quando ele se separou da Rogéria, eles ficaram brigados, eles, em família. Eu que uni".
JULIANA DAL PIVA: "O senhor uniu, o Carlos...".
ÍTALO CIBA AO JORNAL GLOBO: "O Carlos Bolsonaro, o Flávio e o Eduardo, que moravam com a mãe. Eles não se davam. Eu fiz um futebol, fiz um churrasco no meu terreno e, hoje graças a Deus, fiz um campo de grama sintética e tem piscina. Chamei ele para o churrasco e chamei os garotos para jogar bola. Quando acabou o futebol, o pai estava lá, e eles chegaram e aí voltaram a se falar dali. Foi onde o Flávio veio candidato".
JULIANA DAL PIVA: "E como é que o Adriano conheceu o Bolsonaro, o senhor não sabe?".
ÍTALO CIBA AO JORNAL GLOBO: "Aí, eu não sei. Eu sei que eles se davam muito bem com o Flávio".
JULIANA DAL PIVA: "Com quem? O Adriano se dava bem...".
ÍTALO CIBA AO JORNAL GLOBO: "Através do Queiroz. O Adriano se dava muito bem com Flávio, devido o Queiroz. O Queiroz que trabalhou com Adriano lá atrás. Quando nós tivemos preso, o Flávio foi visitar a gente".
JULIANA DAL PIVA: "O Flávio foi visitar o senhor lá?".
ÍTALO CIBA AO JORNAL GLOBO: "Foi. Foi".
JULIANA DAL PIVA: "Mais de uma vez?".
ÍTALO CIBA AO JORNAL GLOBO: "Mais de uma vez. Bateu de frente quando fomos transferidos naquela covardia lá com a gente. Eu tava no Choque. Eu fiquei três meses no BEP só. Aí criaram o BEP, que não tinham criado ainda. E o Flávio tomou a frente".
JULIANA DAL PIVA: A segunda vez que o Bolsonaro foi visitar o Adriano na prisão foi em 9 de setembro de 2005. Isso aconteceu quando o Flávio foi levar a medalha Tiradentes, que é a maior honraria do estado do Rio de Janeiro.
Junto com o Flávio estava o Jair e os pais do Adriano. Uma pessoa muito próxima ao Adriano chegou a me contar que o momento foi filmado e, por anos, o Adriano guardou aquelas gravações em casa. Mas, naquela época da prisão, a medalha foi usada pelo Adriano como uma tentativa de ajudar a construir uma imagem de um herói injustiçado. Quem me explicou isso foi o Rodrigo Pimentel, para quem o Adriano ligava na época enquanto estava preso
RODRIGO PIMENTEL EM ENTREVISTA A JULIANA DAL PIVA: "Ele preso, não sei como, ele estava no batalhão de Choque. A unidade carcerária da Polícia Militar era dentro do batalhão de Choque. É como se fosse um batalhão prisional. Ele conseguiu um telefone e ele me ligou dezenas de vezes à noite, às vezes para bater papo sobre qualquer assunto, sobre depressão, sobre tristeza, sobre a decepção dele com a polícia. E eu ainda tinha tanta admiração por ele, por ele ser um bom oficial, que a imagem que eu tinha da academia e do próprio Bope era de um cara muito valente".
JULIANA DAL PIVA: "O Flávio chegou a levar a medalha Tiradentes, né?".
RODRIGO PIMENTEL EM ENTREVISTA A JULIANA DAL PIVA: "É uma comenda, talvez a comenda mais importante do estado. O Flávio usou essa medalha, possivelmente, para sinalizar à cúpula da corporação de que ele era inocente, tá? E essa medalha para o Adriano também é importante, porque ele chega no conselho de disciplina dele para ser expulso e ele diz: 'Olha, eu sou um cara tão bom que eu tenho uma comenda do deputado'. Então você juntar essas medalhas, esses elogios é algo muito forte na sua defesa".
JULIANA DAL PIVA: Os advogados do Adriano também juntaram um documento sobre a medalha no processo do julgamento pela morte de Leandro. E o Adriano chegou no dia do júri popular com aquela condecoração. Era 24 de outubro de 2005. E foi aí que o Bolsonaro se envolveu ainda mais. Como ele próprio contou, chegou a ir num julgamento pela primeira vez.
JAIR BOLSONARO EM DISCURSO EM 2005: "Senhor presidente, pela primeira vez eu compareci integralmente a um tribunal do júri na segunda-feira próxima passada".
JULIANA DAL PIVA: E lá no tribunal, o Bolsonaro viu o Adriano ser condenado a 19 anos de prisão pela morte do Leandro.
Um dos principais fatores para a condenação foi justamente o depoimento do coronel Meinicke. O coronel vinha investigando o caso há dois anos e tinha reunido diversas provas sobre o Adriano e os outros policiais.
Como o Meinicke não quis gravar entrevista, a gente seguiu o conselho dele. Nós fomos atrás do depoimento que ele prestou no processo pra ver o que o Meinicke tinha dito em juízo sob os olhos do Bolsonaro. Para poder achar, eu e a Elenilce desarquivamos vários documentos no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.
[SOM AMBIENTE]
JULIANA DAL PIVA: E, depois de várias idas na 2ª Vara Criminal do Rio de Janeiro, nós conseguimos. O Meinicke contou para os jurados as agressões nos mínimos detalhes e ainda contou que o Leandro, que o Bolsonaro tanto acusou de ser envolvido com o tráfico, morreu sem nenhum antecedente criminal. A Elenilce vai ler um trecho do depoimento do Meinicke.
ELENILCE BOTTARI LÊ TRECHO DE DEPOIMENTO TRANSCRITO DO CORONEL MEINICKE: "A vítima desses autos foi atingida no braço e caiu e, após cair, tomou dois disparos fatais. Um na nuca e outro no abdômen, que transfixou para as nádegas. Que os policiais disseram que estava armado, mas as testemunhas do local disseram que não. Que as cápsulas não foram apreendidas no local e, sim, dentro do armário do acusado. Que pelo GPS das viaturas se verificou se estiveram nos dias e locais correspondentes às extorsões. Que pelo que apurou no IPM a incursão dos implicados neste fato só tinha como real objetivo matar as testemunhas das extorsões mediante sequestro, sendo certo que todos os implicados estavam irmanados para realização disto".
JULIANA DAL PIVA: O depoimento do Meinicke foi realmente contundente. O coronel falou para os jurados que tinha juntado 18 volumes de documentos e que acreditava que a auditoria militar iria denunciar os policiais por crime militar.
Na ficha disciplinar do Adriano, ficou registrado até um trecho de uma escuta telefônica que foi obtida nas investigações do caso. A mulher e a mãe do Ítalo Ciba foram flagradas conversando no dia 1º de janeiro de 2004. Uma delas disse: "Se Deus quiser, o Ítalo sai dessa e vai começar tudo de novo aqui fora: 'as matanças'".
Só que o Adriano e o grupo de policiais dele recorreram da condenação e, na segunda instância, o julgamento foi anulado por uma questão processual.
Os policiais foram julgados de modo separado e o Ítalo Ciba, que tinha sido apontado como o atirador, foi absolvido, porque o autor do tiro foi outro policial. E essa situação fez com que todos os policiais fossem absolvidos pelo caso. Uma decisão apesar de todas as provas que mostravam que os policiais realmente atiraram no Leandro e dos exames que comprovavam a tortura que ele sofreu.
Aí, o Adriano saiu da cadeia em 2006 e começou a trilhar um outro caminho. O que algumas pessoas próximas do Adriano me contaram é foi dentro da cadeia que ele foi cooptado pelo jogo do bicho, por uma indicação do próprio pai dele. O Rodrigo Pimentel me contou as desconfianças que ouviu de um amigo em comum, dele e do Adriano.
RODRIGO PIMENTEL EM ENTREVISTA A JULIANA DAL PIVA: "Eu perguntei para o Betinho agora. Falei: 'Betinho, você percebia algum sinal de que ele trabalhava para contravenção?'. Falou: 'Cara, de vez em quando ele falava: 'Puxa vida, vou estar com o patrão hoje'". Patrão é uma referência a jogo do bicho, né?".
JULIANA DAL PIVA: E, junto dos bicheiros, o Adriano se transformou em um integrante da máfia da contravenção, num matador de aluguel para o Escritório do Crime e, como denunciou o Ministério Público, em um miliciano com diversos imóveis irregulares em Rio das Pedras. Essa caminhada começou um pouco depois que o Adriano deixou a prisão e que o Fabrício Queiroz tinha deixado a polícia para virar assessor do Flávio Bolsonaro.
Nessa mesma época, o clã Bolsonaro estava focado em combater o deputado Marcelo Freixo, que tinha levantado uma pauta: o enfrentamento das milícias. Mas, para o Jair e para o Flávio, milícia não era problema. Ouve só o que o Flávio disse em fevereiro de 2007.
Eu procurei o senador Flávio Bolsonaro e o presidente Jair Bolsonaro para falar sobre esse episódio do motim e as homenagens aos policiais. A equipe de assessoria deles enviou uma nota que eu vou ler pra você:
"A pauta da segurança pública é e sempre foi uma bandeira importante para a família Bolsonaro. Ao longo de anos na política, sempre fizemos homenagem a policiais que se destacaram pelos serviços prestados à população. À época das homenagens, era impossível prever que alguns desses policiais pudessem desonrar a farda. Sobre o trabalho feito junto à Unidade Prisional da Polícia Militar, as ações foram públicas e amplamente divulgadas. Como a própria reportagem mostra, trabalhamos para resolver um conflito e evitar que a situação se desdobrasse em algo mais grave. Trabalhar para resolver uma crise e evitar prejuízos ao Estado não configura irregularidade, pelo contrário".
O Flávio e o presidente Jair Bolsonaro dizem que era impossível prever que os policiais condecorados fossem desonrar a PM.
Mas, lá em 2007, o clã Bolsonaro não estava preocupado com os crimes das milícias.
Eles estavam focados em combater o deputado Marcelo Freixo que justamente tinha levantado a pauta: o enfrentamento das milícias. Mas para Jair e Flávio, milícia não era problema. Escuta o discurso do Flávio em fevereiro de 2007.
FLÁVIO BOLSONARO EM DISCURSO EM 2007: "Não se pode, simplesmente, estigmatizar a milícia, em especial os policiais que estão envolvidos nesse novo tipo aí, de policiamento, vamos dizer assim".
JULIANA DAL PIVA: E, sobre essa visão que os Bolsonaro tinham ou ainda têm sobre as milícias, eu vou te falar no próximo episódio. E, claro, sobre a escalada do Adriano Nóbrega no mundo do crime.
CRÉDITOS: Este episódio usou áudios da Câmara dos Deputados, do podcast "Nós Tentamos", do Jornal da Cultura, do podcast "Mais ou Menos" e da TV Alerj.
O UOL Investiga: Polícia Bandida e o Clã Bolsonaro é apresentado por mim, Juliana Dal Piva. A reportagem e pesquisa foram feitas por mim, Juliana Dal Piva, pela Elenilce Bottari e pela Naomi Matsui. A Elenilce também fez algumas narrações desse episódio. O roteiro foi escrito por mim, Juliana Dal Piva, com revisão de Juliana Carpanez.
O desenho de som e a montagem são do João Pedro Pinheiro. A produção é da Natália Mota. O design é do Eric Fiori. A direção de arte é da Gisele Pungan e do René Cardillo. A coordenação é da Juliana Carpanez, da Lúcia Valentim Rodrigues, do Graciliano Rocha e do Flávio Costa. O projeto também conta com Alexandre Gimenez e Antoine Morel, gerentes de conteúdo, e Murilo Garavello, diretor de conteúdo do UOL. Agradecimentos a Pedro Cappeti, Claudia Cotes e Flávio Costa.