Delação de Cid sobre o golpe se encaixa no roteiro de Bolsonaro
O que há de mais assustador no capítulo da delação de Mauro Cid sobre a tentativa de golpe é que as revelações do ex-ajudante de ordens sobre os planos de Bolsonaro são inacreditavelmente críveis. Ligando-se os segredos testemunhados por Cid com episódios que marcaram o isolamento de Bolsonaro após a derrota para Lula, constata-se que o Palácio da Alvorada foi convertido numa espécie de chocadeira do ovo da serpente que tentou dar o bote no dia 8 de janeiro.
No final de novembro, após visitar Bolsonaro, o general Braga Netto, vice na chapa derrotada, parou o carro no cercadinho para conversar com um grupo de bolsonaristas. "Vocês não percam a fé, é só o que eu posso falar para vocês agora", declarou o general, enigmático. Ele pediu "paciência". Ficou entendido que o bunker do Alvorada planejava um Apocalipse.
Um dia depois, Valdemar Costa Netto, o dono do Partido Liberal, disse ter sido pressionado por Bolsonaro num encontro no Alvorada para ingressar com ação no TSE questionando cerca de 250 mil urnas antigas usadas nas eleições de 2022. Protocolada na semana seguinte, a ação foi rejeitada. Rendeu uma multa de R$ 22,9 milhões ao PL. Ficou claro que o plano golpista passava pelo questionamento do resultado das urnas.
Na live que levou ao ar na véspera de sua fuga para a Flórida, Bolsonaro soou como se lamentasse não ter conseguido apoio para o golpe que evitaria a posse de Lula: "Eu busquei dentro das quatro linhas se tinha alguma alternativa para isso aí", disse ele. "Certas medidas têm que ter apoio do Parlamento, do Supremo, de outros órgãos e instituições", desconversou.
Na sua delação, Mauro Cid coloca uma minuta golpista nas mãos de Bolsonaro. Previa a prisão de adversários e a convocação de novas eleições. Coisa muito parecida com o documento apreendido na casa do ex-ministro Anderson Torres. Cid contou que, em dezembro, Bolsonaro sondou a cúpula militar sobre a viabilidade da virada de mesa. Descobriu que as "minhas Forças Armadas" não eram tão suas como imaginava. Apenas o então comandante da Marinha, almirante Almir Garnier, aderiu explicitamente ao golpe. Daí o timbre lamurioso da live que antecedeu a fuga.
A Polícia Federal não poderia dispor de um roteiro de investigação tão nitidamente esboçado. Encurtam-se os horizontes de Bolsonaro. Inelegível, ele já não via 2026. Agora, começa a enxergar as grades.
Às voltas com a síndrome do que está por vir, faz declarações esquisitas. "Eu posso discutir qualquer coisa, posso pensar qualquer coisa, mas se não botar em prática não tem problema", declarou dias atrás.
Bolsonaro se comporta mais ou menos como o sujeito que, flagrado no instante em que tentava assassinar os pais, pede ao juiz na hora do julgamento perdão para um pobre quase órfão.
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