Descriminalizar drogas é remédio contra chacinas policiais em SP, RJ e BA
Com o voto do ministro Alexandre de Moraes, nesta quarta (2), o placar para descriminalizar o uso de maconha para fins recreativos está 4 a 0 no Supremo Tribunal Federal. Se a corte confirmar a tendência, teremos dado um passo, ainda que pequeno, contra a falida guerra às drogas - que produz, anualmente, montanhas de mortos pelo tráfico e chacinas policiais em série - como as desta semana em São Paulo, na Bahia e no Rio - sem conseguir reduzir o consumo de psicoativos.
Pequeno passo, claro, considerando que a questão está bem mais avançada em outros lugares. Nos "subversivos" Estados Unidos, por exemplo, a erva é legal na capital Washington, em Nova York ou na Califórnia. Em países "atrasados", como Alemanha, Espanha e Portugal, o uso pessoal de cocaína não é crime. Em nosso vizinho Uruguai, maconha pode ser comprada livremente por moradores. Em países como Argentina, Chile, Colômbia, Costa Rica, México e Peru, o usuário não é criminalizado.
Aqui estamos discutindo que o uso pessoal de maconha não seja crime.
As maiores batalhas do tráfico sempre acontecem longe dos olhos das classes média e alta, uma vez que a imensa maioria dos corpos contabilizados é de jovens, negros, pobres, que se matam na conquista de territórios para venda de drogas, pelas leis do tráfico e pelas mãos da polícia e das milícias. Os mais ricos sentem a violência, mas o que chega neles não é nem de perto o que os mais pobres são obrigados a viver no dia a dia.
Considerando que policiais, comunidade e traficantes são, não raro, de uma mesma origem social e, não raro, da mesma cor de pele, é uma batalha interna. E muita gente torce não para resolver o problema em definitivo, mas para que os conflitos voltem a ser contidos naquele território, gerando falsa sensação de segurança na parte "civilizada" da cidade.
A forma como o tráfico se organizou e a política adotada pelo poder público para combatê-lo estão entre as principais razões desse conflito armado organizado. Sim, o combate ao tráfico gera mais mortos que o consumo de drogas - até porque a droga que, estatisticamente, mais mata e provoca mortes se chama álcool. Você pode comprá-la no supermercado ou ver sua propaganda na TV. Mas ela não é proibida, apenas regulada. Tal como o tabaco.
Em seu voto, Moraes foi didático quanto ao fracasso dessa guerra
"Nixon [ex-presidente dos Estados Unidos], num discurso famoso, disse que o uso abusivo de drogas seria o inimigo publico número 1 dos EUA e lançou a guerra às drogas. Todos sabemos, independentemente de posicionamento, que de 1971 para cá, se fosse feito um ranking de quem ganhou a guerra as drogas certamente não foram as autoridades públicas", avaliou em seu voto o ministro Alexandre de Moraes.
"Infelizmente, os narcotraficantes conseguiram um poderio muito grande. Bilhões que o narcotráfico arrecada, unindo-se ao tráfico de armas. E a criminalidade violenta acabou aumentando muito."
Toda a expansão de mercado é conflituosa. Em uma sociedade que funciona dentro das normas legais, apela-se à Justiça para decidir quem tem razão em uma disputa. Mas quando se vive em um sistema ilegal, condenado pela própria Justiça, a solução é ter o maior poder bélico possível para fazer valer o seu ponto de vista sobre os demais, sobre a polícia, sobre os moradores de determinada comunidade.
Policiais honestos também são vítimas dessa situação, em detrimento dos que não seguem as regras e aos que criam milícias. Muitas dessas mortes não são de agentes de segurança em serviço. Eles morrem porque são descobertos com armas ou identidade policial em assaltos no bairro pobre onde moram. Como a maioria da população.
Em uma semana, contamos 16 cadáveres de uma chacina policial com cara de vingança após a morte do soldado Patrick Bastos Reis no Guarujá (SP). Mas também 19 mortes na Bahia em três operações policiais em Salvador (4 óbitos), Camaçari (7) e Itatim (8) - o Estado foi, no ano passado, o campeão brasileiro de letalidade policial.
E na Vila Cruzeiro, no Complexo da Penha, no Rio, outros dez foram mortos. O local já havia sido, em maio do ano passado, palco de outra chacina policial, com 23 mortos.
Não há saída para a violência armada organizada que não passe pela discussão da interrupção da atual política, o que passa pela descriminalização e legalização de psicoativos, estrangulando os recursos que chegam às mãos das organizações criminosas.
Outros países têm avançado nesse sentido como uma das soluções para reduzir a disputa armada por territórios. Sabem que a "guerra às drogas" falhou, servindo apenas para controle político e para fortalecer grupos de poder locais e o tráfico de armas. Por aqui, infelizmente, o STF ainda tem que debater que 3 gramas de maconha não fazem de alguém um traficante perigoso.
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Quero receberGuerra às drogas mata mais do que as drogas em si
Em seu discurso na Assembleia Geral das Nações Unidas, em 2017, o então presidente da Colômbia Juan Manuel Santos criticou a "guerra às drogas" e defendeu que eram necessários outros enfoques e novas estratégias. "É preciso entender o consumo de drogas como um assunto de saúde pública e não de política criminal", disse.
Foi uma resposta ao ex-presidente norte-americano Donald Trump, que demandou que a Colômbia aumentasse o combate à produção e ao comércio de cocaína. Santos lembrou que, enquanto houver consumo, haverá oferta, e pediu aos outros chefes de Estado que conhecessem as experiências de regulação de produção, comércio e uso de drogas que estão sendo implementadas ao redor do mundo.
"A guerra contra o narcotráfico ceifou muitas vidas, e, na Colômbia, estamos pagando um preço muito alto, talvez o mais alto entre as nações, e o que estamos vendo é que o remédio está sendo pior que a doença", afirmou o presidente colombiano, um dos responsáveis pelo acordo de paz que pôs fim à guerra contra as Farc.
Isso cai como uma luva para São Paulo, para a Bahia, para o Rio de Janeiro de hoje: o remédio está sendo pior que a doença.
No intuito de combater o tráfico, estamos matando milhares de pessoas todos os anos - a maioria, moradoras de áreas pobres, policiais ou traficantes. Negros e pobres. Ou seja, gente considerada dispensável.
E, ao mesmo tempo, vamos mantendo a indústria do medo em curso e promovendo o controle de determinadas classes sociais através da justificativa de conter a violência que grassa em seu território. As mutações teratogênicas de policiais, as milícias, aprenderam com o tráfico que o controle desses locais dá muito dinheiro.
Tudo isso é muito mais danoso à sociedade do que a liberação controlada e regulamentada de drogas.
Há, neste momento, debates sendo realizados nas comunidades sobre as soluções para a violência na disputa de territórios controlados pelo crime organizado. Os governos estaduais precisam participar disso, e não apenas chegar distribuir balas perdidas que matam crianças a caminho da escola.
Assumir um planejamento legal e de saúde pública para a legalização e a regulamentação das drogas, desidratando o tráfico de drogas e o tráfico de armas através do fim de seu mercado ilegal.
Por fim, se o Estado brasileiro quisesse resolver a bomba-relógio do sistema carcerário, legalizaria paulatinamente as drogas, começando pela maconha. Isso quebraria as pernas do tráfico, reduzindo o número de jovens que hoje são enviados aos presídios para aprender a roubar e matar e desidratando o poder econômico das facções criminosas.
Acreditamos que desconectando os presídios do restante do tecido social, tornando-os uma espécie de limbo para onde vai quem atentou contra a sociedade, tudo será resolvido. O aprendizado de presos durante sua estada no inferno, por tudo o que viram e viveram, será levado para fora. E quem sofre as consequências dessa política burra somos todos nós.