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Reinaldo Azevedo

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Vetos derrubados melhoram Lei Anticrime. Cadê juiz de garantias? Fux comeu!

Cadê o juiz de garantias que estava aqui? O gato comeu! E cadê o gato? Está no mato do monocratismo,,, - Reprodução
Cadê o juiz de garantias que estava aqui? O gato comeu! E cadê o gato? Está no mato do monocratismo,,, Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

20/04/2021 06h41

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O Senado confirmou, por 50 votos a 6, a derrubada de 16 vetos de Jair Bolsonaro ao pacote anticrime, endossando decisão já tomada na Câmara no dia 17 de março, com 439 votos a favor. Com a derrubada, a lei fica melhor, embora seja necessário fazer algumas correções pontuais, como veremos abaixo. Antes que chegue a alguns dos pontos resgatados, precisamos voltar os olhos para o Supremo.

O FATOR LUIZ FUX DE ATAQUE AO ESTADO DE DIREITO
Um dos avanços civilizatórios mais importantes do pacote anticrime, que fundiu propostas elaboradas por Alexandre de Moraes, hoje ministro do Supremo, e por uma comissão de deputados federais é a criação do juiz de garantias.

Nos termos do texto que virou lei aprovada:
"O juiz das garantias é responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário".

Esse juiz de garantias não é o mesmo que condena ou absolve. Ele zela pelo estrito cumprimento do devido processo legal, de modo que acusação e defesa exerçam seus respectivos papéis — direitos, deveres e prerrogativas — nos limites estritos do que dispõe a lei. O juiz que dará a sentença vai se ater apenas aos autos, com risco muito diminuído de ou estar apaixonado pela causa ou de se deixar contaminar por um dos lados da contenda.

Pois bem: o pacote anticrime foi sancionado por Jair Bolsonaro no dia 24 de dezembro de 2019, ignorando, felizmente, sugestões de vetos feitas por Sergio Moro, seu então ministro da Justiça. O agora empresário Moro queria justamente impedir a criação do juiz de garantias. Não conseguiu. Nem precisou. Luiz Fux, hoje presidente do Supremo, cumpriu esse papel. No dia 22 de janeiro do ano passado, expediu uma liminar e suspendeu a medida. E nunca mais voltou ao assunto.

O curioso é que este senhor vive a pregar por aí que o Supremo precisa pôr fim às decisões monocráticas. Como sabem, ele decidiu acabar com o julgamento de novas ações penais nas turmas. E o fez alegando apreço pela colegialidade.

Pelo visto, a regra que ele quer para os outros não vale para ele, não é mesmo? O doutor, que fala como se procurador da Lava Jato fosse, é contra essa garantia democrática. E, se ele é contra, então manda às favas a vontade explícita do Congresso. A recusa é, digamos, expressão do seu lava-jatismo.

E quando ele vai levar a questão ao pleno? Só Deus sabe. Se repetir o que fez com a liminar que estendeu auxílio-moradia a todos os membros do Judiciário e do Ministério Público, pode ficar sentado sobre a liminar por uns quatro anos...

A propósito: ele, que ama tanto a Lava Jato, certamente se comove com os alegados R$ 4 bilhões que a operação teria restituído aos cofres públicos. Nem vou tratar aqui do desastre econômico que ela provocou. Já o fiz muitas vezes. O ponto é outro: aquela liminar de Fux sobre o auxílio-moradia custou algo em torno de R$ 5 bilhões aos pobres e desdentados.

O prejuízo de estar retendo agora a liminar que suspendeu o juiz de garantias não se conta em dinheiro, mas em déficit de direitos e de devido processo legal.

Leve a liminar ao pleno, senhor Fux. Cumpra a sua obrigação.

Vamos a alguns dos vetos derrubados. Destaco em negrito o texto que voltou a valer.

QUEM PODE GRAVAR O QUÊ E PARA QUAL FIM
"A captação ambiental feita por um dos interlocutores sem o prévio conhecimento da autoridade policial ou do Ministério Público poderá ser utilizada, em matéria de defesa, quando demonstrada a integridade da gravação."

Vale dizer: esse tipo de captação, sem prévia autorização judicial, não pode servir à acusação. Uma pessoa, no entanto, pode usar esse expediente para se defender. O fundamento está correto, mas existe uma lacuna grave aí. Como ficou, alguém que esteja sendo vítima de alguma forma de assédio não poderá apresentar a evidência em juízo. Como melhorar? É simples. Basta estabelecer uma exceção: no caso de a captação caracterizar a autodefesa de quem a praticou, pode servir também à acusação.

GRAVAÇÕES
"A instalação do dispositivo de captação ambiental poderá ser realizada, quando necessária, por meio de operação policial disfarçada ou no período noturno, exceto na casa, nos termos do inciso XI do caput do art. 5º da Constituição Federal."

Bolsonaro havia vetado a expressão "exceto na casa". O governo argumentou que uma pessoa pode estabelecer mais de um domicílio, o que dificultaria o trabalho de investigação. Distinga-se o domicílio da propriedade.

ARMA DE USO RESTRITO
"Se a violência ou grave ameaça é exercida com emprego de arma de fogo de uso restrito ou proibido, aplica-se em dobro a pena prevista no caput deste artigo."

Em seu veto, Bolsonaro alegou que tal dispositivo poderia prejudicar as carreiras ligadas à área de segurança. Trata-se, obviamente, de uma bobagem que só lustra a truculência. Afinal, o texto trata de crime, não do uso da arma de uso restrito para autodefesa. Não havendo o crime, não há pena -- e, pois, nem a majoração. O veto não fazia sentido.

CRIMES CONTRA A HONRA
"Se o crime é cometido ou divulgado em quaisquer modalidades das redes sociais da rede mundial de computadores, aplica-se em triplo a pena."

Os crimes contra a honra — calúnia, difamação e injúria — podem ter a pena triplicada se cometidos por meio das redes sociais. Bolsonaro havia vetado. As milícias digitais que lhe dão apoio podem se dar mal nesse caso, já que fazem da ofensa uma profissão de fé. A condenação máxima por calúnia, hoje, é de dois anos. Pode chegar a seis, com risco de o cumprimento da pena se dar em regime semiaberto.

AUDIÊNCIA EM 24 HORAS, SEM VIDEOCONFERÊNCIA
"O preso em flagrante ou por força de mandado de prisão provisória será encaminhado à presença do juiz de garantias no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, momento em que se realizará audiência com a presença do Ministério Público e da Defensoria Pública ou de advogado constituído, vedado o emprego de videoconferência."

O governo alegou, para vetar, que a proibição de videoconferência implica dispêndio inútil de recursos e recusa a meios técnicos que agilizam a ação do Estado. Vamos lá: a lei deve excetuar, creio eu, os momentos de epidemia, pandemia ou ocorrência de monta que justifique o meio alternativo. Mas, em regra, o espírito do texto tem de ser mantido; Para que o Estado retire alguém de circulação, é preciso que se cumpram as formalidades com o máximo rigor: na presença de um juiz.

DADOS GENÉTICOS
"O condenado por crime doloso praticado com violência grave contra a pessoa, bem como por crime contra a vida, contra a liberdade sexual ou por crime sexual contra vulnerável, será submetido, obrigatoriamente, à identificação do perfil genético, mediante extração de DNA (ácido desoxirribonucleico), por técnica adequada e indolor, por ocasião do ingresso no estabelecimento prisional."

Volta a valer o texto acima. O veto do governo era incompreensível. Segundo se entende, a alegação é que falta incluir na lista alguns crimes graves. Por que não se pensou, então, em acrescentá-los ao rol, por meio de projeto de lei, em vez de vetar o que foi aprovado?

DESCARTE DA AMOSTRA
"Uma vez identificado o perfil genético, a amostra biológica recolhida nos termos do caput deste artigo deverá ser correta e imediatamente descartada, de maneira a impedir a sua utilização para qualquer outro fim."

O governo vetou o descarte sob a alegação de que isso poderia prejudicar a defesa, que estaria impedida, então, de solicitar um novo teste probatório. A alegação não faz sentido porque, uma vez estabelecido o perfil genético, estabelecido está. Não parece prudente que material genético fique à disposição de um Estado nem sempre gerido por Varões de Plutarco...

CONCLUO
O texto, no geral, fica melhor com a derrubada dos vetos -- os mais importantes estão destacados acima.

O Congresso, nesse caso, cumpre o seu papel.

Agora é preciso que Fux cumpra a sua obrigação.