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Paciente morre em SP após sofrer AVC e médico receitar xarope; hospital estava sem tomógrafo

Guilherme Balza

Do UOL, em São Paulo

12/04/2012 06h00

  • Zigomar Rodrigues Domingues, 62, morto no último dia 26, com a mulher


Uma sucessão de problemas na rede de saúde pública municipal e estadual de Osasco (Grande São Paulo) resultou na morte do aposentado Zigomar Rodrigues Domingues, 62, no último 26.

O paciente sofreu um AVC (Acidente Vascular Cerebral) na noite de 3 de fevereiro e foi levado ao pronto-socorro municipal da Vila Pestana. Lá, segundo a família de Domingues, um médico lhe receitou um xarope e o dispensou, ignorando a gravidade do caso. O aposentado era deficiente físico desde os sete anos, em decorrência de uma poliomielite, e tinha histórico de acidentes vasculares.

Segundo a jornalista Evelyn Rodrigues, filha de Domingues, a família ligou para o Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) por volta de 20h do dia 3 de fevereiro. A ambulância levou o paciente ao pronto-socorro mais próximo, como de praxe. “Ele não conseguia falar direito, nem se mexer e estava com falta de ar. Na ambulância, mediram a pressão dele e deu 28 por 15”, relata a filha.

Na unidade, o paciente foi encaminhado para a sala de emergência, onde foi analisado e medicado com vitaminas e soro fisiológico, segundo a direção do PS. Após quatro horas “em observação neurológica”, diz o hospital, o paciente foi reavaliado e recebeu alta. O médico que lhe atendeu apenas receitou um xarope para ajudar na respiração (Salbutamol) e o liberou.

  • Divulgação

    Receita mostra que médico receitou apenas um xarope (Salbutamol) para o paciente que havia acabado de sofrer um AVC

Em seguida, de acordo com Evelyn, a enfermeira do Samu, a mesma que havia removido Domingues de casa até o PS, recomendou que a família levasse o paciente para outro hospital, dada a gravidade do caso, contrariando a decisão do médico.

A família, então, levou de carro o aposentado até o Hospital Regional de Osasco Dr. Vivaldo Martins Simões, administrado pelo governo do Estado. “Meu pai não tinha forças sequer para sentar, não conseguia falar nada e estava completamente sem noção do que acontecia”, afirma Evelyn.

Em nota, a Secretaria de Saúde de Osasco afirmou que o hospital liberou Domingues porque ele “respirava normalmente, estava corado e ativo” e que as sequelas aparentes --glicemia e dificuldades motoras-- estavam “relacionadas aos episódios anteriores de AVC e a doenças preexistentes, como diabetes e glicemia."

“Ele nunca teve diabetes; a glicemia estava alterada por conta do AVC. A reavaliação só foi feita porque minha mãe foi cobrar o médico sobre o que estava acontecendo”, questiona a filha.

Segundo a secretaria, o xarope foi receitado porque “ruídos discretos” foram diagnosticados na caixa torácica de Domingues –posteriormente, no hospital regional, os médicos constataram que o paciente estava, na verdade, com enfisema pulmonar. O hospital justifica a alta alegando que o quadro do paciente era “estável”.

Osasco tem nota abaixo da média no Idsus

Vizinho à capital paulista, o município de Osasco (SP), com 668 mil habitantes, possui nota no Idsus --índicador do SUS (Sistema Único de Saúde) que considera 24 itens-- inferior à média nacional e da região sudeste. No Idsus de 2012, calculado a partir dados de 2007 a 2010, a cidade recebeu nota 4,79, contra 5,47 da média nacional e 5,56 da região Sudeste.

A administração municipal questiona a nota, alegando que a metodologia aplicada pelo Ministério da Saúde é falha. A pasta, por sua vez, afirma que o Idsus não é um ranking para comparar cidades, e sim um indicador para orientar políticas públicas.

Osasco possui três hospitais públicos --dois municipais e um estadual-- que, juntos, somam 566 leitos. O município conta com seis prontos-socorros e 35 unidades básicas de saúde. Segundo a Secretaria Municipal de Saúde, 30% do orçamento da cidade é aplicado em saúde --o dobro do determinado por lei.

Por conta disso, a secretaria diz que o número de atendimentos realizados no município aumentou de 2,2 mil em 2005 para 4,1 mil em 2011. Em 2011, o município contou com R$ 392 milhões para gastos com saúde, compostos por R$ 326 milhões de recursos municipais, R$ 64,7 milhões de repasses do governo federal e R$ 1,4 milhão do governo do Estado.

Na avaliação da administração municipal, a cidade tem uma infraestrutura ideal para o atendimento da população, mas enfrenta problemas para fazer tratamentos de média complexidade, por conta da dificuldade na contratação de médicos, endocrinologistas, reumatologistas e neurologistas.

“Ele estava com dois problemas graves [AVC e enfisema] que não foram diagnosticados corretamente”, diz Evelyn. “Os médicos do PS não o encaminharam para lugar nenhum, nem solicitaram tomografia ou um exame mais completo. Se eles tivessem preocupados com a integridade do paciente, ele não teria deixado o hospital com uma receita de xarope”, afirma.

Hospital de referência não tinha tomógrafo

O diagnóstico do quadro de Domingues realizado no Hospital Regional Dr. Vivaldo Martins Simões confirmou que o caso era grave. “O paciente foi diagnosticado com AVC muito extenso, de alta gravidade”, afirmou a Secretaria de Saúde do Estado, em nota. Apesar de identificar a gravidade do caso, o atendimento a Domingues no Hospital Regional também foi falho.

Apesar de ser a unidade do município referência em UTI neurológica, o hospital regional estava sem tomógrafo --equipamento indicado para detectar o AVC-- quando Domingues foi internado. O único tomógrafo da unidade não estava funcionando, porque uma peça havia quebrado dias antes, e a peça substituta ficou apreendida na alfândega.

O equipamento só voltou a funcionar cerca de 25 dias após a internação do aposentado. Durante todo esse tempo os médicos não tinham como saber a dimensão do AVC, nem a área cerebral afetada.

Nesse período, Domingues foi levado para o setor de internação, onde ficou por dois dias. De lá, foi transferido para a UTI (Unidade de Terapia Intensiva), onde foi entubado por apresentar insuficiência respiratória e passou a se alimentar e a urinar por sondas. Na UTI, o aposentado contraiu uma infecção pulmonar, que, em pouco tempo, fez com que seu quadro evoluísse para “coma vigil”, condição que deixa o paciente em estado vegetativo.

Após finalmente Domingues fazer a tomografia, foi detectado que o paciente realmente havia sofrido um AVC no dia 3 de fevereiro e que sofreu outro acidente, na artéria basilar, três dias antes da tomografia. Os dois acidentes afetaram todo o tronco cerebral do aposentado.

Segundo Evelyn, seu pai ficou entubado por mais de 20 dias, quando a recomendação é retirar os tubos após no máximo dez dias e fazer uma traqueostomia. A jornalista afirma que a traqueostomia não foi feita por não haver cirurgiões no hospital, fato negado pela Secretaria de Saúde. “Temos equipes diurnas e noturnas de cirurgiões.”

A filha do paciente afirma ainda que faltou acompanhamento médico ao seu pai durante os dias de internação. A secretaria, mais uma vez, nega: “o paciente foi assistido por equipe multidisciplinar, recebendo antibióticos adequados para seu quadro clínico, além de fisioterapia respiratória.”

Sobre o tomógrafo, a secretaria afirma que “o equipamento realiza, em média, 1.000 tomografias por mês e, apesar das manutenções periódicas, teve uma peça danificada, sem possibilidade de troca imediata pela empresa Toshiba, sendo necessária sua importação.”

Uma saída para o problema seria a transferência do paciente, mas o procedimento não foi realizado por conta do alto risco que poderia oferecer ao aposentado. “O Hospital Regional é o único da região com UTI neurológica. Como pode ter ficado sem tomografia por mais de 28 dias por causa de uma peça presa na alfândega?”, questiona Evelyn.

Domingues acabou morrendo por uma série de fatores --parada cardíaca e respiratória, edema do pulmão, insuficiência renal, AVC isquêmico e choque séptico. Ele deixou a mulher e três filhos.

A Corregedoria de Saúde de Osasco e o Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) abriram sindicância para investigar o caso, após solicitação da filha do paciente. Evelyn também fez boletim de ocorrência.