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À espera da bebê Bianca, 4 gerações de mulheres se encontram em Salvador

As quatro gerações de mulheres da família Motta: Edna, 96, Celina, 70, Leila, 47, e Larissa, 17; Bianca ainda está na barriga da mãe Larissa - Arquivo pessoal
As quatro gerações de mulheres da família Motta: Edna, 96, Celina, 70, Leila, 47, e Larissa, 17; Bianca ainda está na barriga da mãe Larissa Imagem: Arquivo pessoal

Carlos Ohara

Colaboração para o UOL, em Curitiba

20/12/2015 06h00

Na orla da Baia de Todos os Santos, em uma casa do bairro Paripe, em Salvador (BA), quatro mulheres aguardavam ansiosas a chegada de Bianca. Quando vier ao mundo, o bebê será a quinta geração de uma família, onde as mulheres compartilham experiências de quase um século de vida, lideradas por Edna Soares Motta, 96. A pequena nasceu na sexta-feira (18).

Reunidas desde a semana passada para celebrar o nascimento da menina e o aniversário de Edna, ocorrido no sábado (12), na casa do subúrbio ferroviário da capital baiana estão Celina Motta Rodrigues, 70, Leila Cristina Motta, 43, e Larissa Maria Motta, 17. Edna é mãe de Celina, avó de Leila, bisavó de Larissa e trisavó de Bianca.

Entre gargalhadas e discussões mais acaloradas, as quatro mulheres revivem o passado e analisam a evolução dos direitos conquistados por elas ao longo das últimas décadas. O encontro é especial. Leila, que havia seis anos não visitava a Bahia, deixou seus afazeres como supervisora de vendas em São José dos Pinhais, na região metropolitana de Curitiba (PR), para estar ao lado da filha e com a avó Edna.

Em 1919, ano de nascimento de Edna, o pensamento vigente na Bahia (e no resto do Brasil) era dominado pela doutrina de um catolicismo conservador determinando que as lei divinas haviam reservado naturalmente o papel da mulher apenas para o desempenho de atividades domésticas, enquanto ao homem estava reservado o lugar de provedor. O oposto deste dogma, representava o desmoronamento da sociedade civil. Foi nesse ambiente que Edna foi criada para ser a atual matriarca de uma família que reúne 17 filhos, 33 netos, 54 bisnetos e 17 trinetos, já contando com Bianca. 

Com lucidez e desempenho físico invejáveis mesmo com a idade avançada - "Eu adoro dançar, meu filho" - Edna não tem dificuldade para relembrar de fatos da infância e da juventude. Criada em uma família pobre, a nonagenária cumpriu o papel que lhe foi reservado pela sociedade da época. Casou com 15 anos, após o namoro, de início escondido dos pais. "Depois a gente namorava na sala, com mamãe e papai espiando. Não havia qualquer liberdade para ousadias. Mas acho que era um tempo melhor. Hoje a liberdade passou dos limites e elas próprias não sabem o que fazer com essa liberdade", diz.

Não havia liberdade para ousadias. Mas acho que era um tempo melhor. Hoje a liberdade passou dos limites
Edna Soares Motta, 96 anos, mãe de Celina, avó de Leila e bisavó de Larissa

Edna acompanhou notícias sobre as conquistas das mulheres, como o direito de mulheres casadas trabalhar, instituído em 1962, quando já tinha 43 anos. Até então, elas só teriam acesso ao emprego com permissão dos maridos, de acordo com o Código Civil de 1916. "Eu nunca trabalhei depois que casei. Meu marido trabalha na política como assessor. Ficava desempregado, depois das eleições, mas nunca deixou faltar nada. Eu o ajudei, mas sempre me submetendo a ele, como tinha que ser. Não senti opressão. Na verdade, nem pensava nisso. Eu vivi todo esse tempo feliz".

Ao comparar sua experiência com a vida das mulheres atuais, Edna diz não entender bem a educação. "Os próprios pais permitem hoje que os filhos saiam e voltem a hora que quiser, sem cobranças", diz. Ela, no entanto, ressalta a importância do direito ao voto, estendido às mulheres em 1932, no decreto 21.076 do Código Eleitoral Provisório. "Acho que isso foi bom, porque ajudou as mulheres a participarem da formação da sociedade com seu jeito de pensar. Eu era pequena [13 anos] quando isso ocorreu. Não me lembro quando votei pela primeira vez, mas já votei várias vezes e acho importante."

Vinte e seis anos mais nova que a mãe, o pensamento de Celina não difere muito de Edna. "Casei cedo também, com 17 anos. Mas, tudo certinho, na igreja. Era virgem. Fui criada presa, sem muitos direitos, mas na família havia maior respeito. Apanhei de palmatória, quando pequena. Mas minhas melhores recordações são daquele tempo. Hoje tenho tristeza de ver como está. Hoje não existe amor verdadeiro nas relações. A humanidade está agressiva", afirma.

Fui criada presa, sem muitos direitos, mas na família havia maior respeito
Celina Motta Rodrigues, 70 anos, filha de Edna, mãe de Leila e avó de Larissa

 

Celina lembra que teve que trocar uma saia várias vezes para sair, quando era casada. Ela era nova, ele achava que estava muito curta, na altura dos joelhos. "Eu fiquei brava. A mulher era submissa na minha época. Quando separei, aos 25 anos, tive que correr atrás. Ir à luta. Fui para o Rio de Janeiro e São Paulo. Tive um bar e restaurante. Mas a vida já ficou mais difícil: tive que ser pai e mãe e sustentar a família. Quando voltei a casar, 12 anos depois, acho que reatei os laços com a família de forma mais tranquila", diz.

 

Leila, filha de Celina, aos 47 anos acredita que as gerações de sua avó e da mãe foram mais felizes. "Fui uma mãe ausente. Não soube controlar, sempre cedendo ao que ela queria. Fui muito mais amiga do que mãe. Minha filha colocou piercing na língua com 16 anos, fez tatuagem. Me separei quando ela tinha quatro anos. Tive que assumir os direitos, mas também as responsabilidades, Hoje a mulher é muito cobrada. Ela tem que ser boa profissional, sustentar a casa, educar os filhos, tudo ao mesmo tempo." 

Hoje a mulher é muito cobrada. Ela tem quer boa profissional, sustentar a casa, educar os filhos, tudo ao mesmo tempo

Leila Cristina Motta, 43 anos, neta de Edna, filha de Celina e mãe de Larissa

 

Aos 17 anos, solteira, Larissa é voz destoante das outras mulheres da casa. Para ela, os direitos alcançados pela mulheres deram maior liberdade para escolha de uma vida. A jovem acredita que, no passado, as mulheres eram muito presas e tinham apenas que obedecer aos maridos. "Hoje as mulheres podem decidir. Eu vou ser mãe porque quis isso. Acho inclusive que minha filha vai ser mais feliz, porque terá uma mãe nova que vai poder discutir os problemas com ela, de igual para igual. Não tem mais aquele modelo de família, isso não é muito legal. Mas não tenho medo da pressão da sociedade. Acho que a mulher tem que ter mesmos os mesmos direitos dos homens e,também os deveres", diz ela.

Hoje as mulheres podem decidir. Eu vou ser mãe porque quis isso. Minha filha vai ser mais feliz, porque terá uma mãe nova que discutir com ela

Larissa Maria Motta, 17 anos, bisneta de Edna, neta de Celina, filha de Leila e mãe de Bianca

 

O encontro transgeracional revelou um dos mais importantes direitos alcançados pelas mulheres: o de se expressar livremente. Como relata Edna, aos 96 anos: "No meu tempo, mulher não podia ficar de conversa. Agora pode. Isto é bom, mas tem que se manter reservada".