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Traições no tráfico já motivaram mortes brutais e rachas em facções no Rio

Ernaldo Pinto de Medeiros, o Uê, foi um dos principais chefes do tráfico de drogas durante a década de 90, no Rio. Expulso do CV por traição, ele criou uma facção rival - Carlos Moraes / Agência O Dia
Ernaldo Pinto de Medeiros, o Uê, foi um dos principais chefes do tráfico de drogas durante a década de 90, no Rio. Expulso do CV por traição, ele criou uma facção rival Imagem: Carlos Moraes / Agência O Dia

Hanrrikson de Andrade

Do UOL, no Rio

04/05/2017 04h00

Traições como as que motivaram os ataques a ônibus e caminhões no Rio, na última terça-feira (2), não são inéditas no submundo do tráfico de drogas das favelas cariocas. Desde que o crime organizado se consolidou na cidade, com o surgimento de facções como o CV (Comando Vermelho), na década de 80, episódios desse tipo já motivaram mortes brutais, rachas sangrentos entre ex-aliados e rebeliões em presídios.

O caso mais famoso de deslealdade no âmbito do narcotráfico carioca ocorreu em 1994, quando o então líder do CV, Orlando da Conceição, o Orlando Jogador, foi assassinado em emboscada articulada pelo antigo cúmplice Ernaldo Pinto de Medeiros, o Uê. Outros dez traficantes do Comando Vermelho foram mortos na mesma ação.

O próprio Orlando Jogador havia obtido protagonismo na estrutura hierárquica do tráfico, em 1990, depois de derrubar o então chefe, Amarílio da Glória Venâncio, o China. Com isso, ele herdou o controle da venda de drogas no Complexo do Alemão, na zona norte.

Segundo a Polícia Civil, Uê havia rompido com Orlando Jogador e passado a disputar com ele as 18 bocas de fumo do conjunto de favelas do Alemão. Para eliminar a concorrência, Uê simulou o próprio sequestro e pediu ajuda ao ex-aliado para pagar o resgate. Apesar do racha entre eles, Jogador ainda considerava Uê como um velho amigo.

orlando jogador - Reprodução - Reprodução
Orlando Jogador foi assassinado em uma emboscada no Complexo do Alemão
Imagem: Reprodução
Eles então marcaram um encontro no Complexo do Alemão para que o dinheiro fosse entregue. Quando o grupo de Jogador chegou ao local, deparou-se com mais de cem homens armados, todos fiéis a Uê. A chacina ocorrida naquela noite, em 13 de junho de 1994, mudou os rumos do tráfico de drogas no Rio.

Uê não conseguiu controlar as comunidades do Alemão por muito tempo. Expulso do CV e jurado de morte, buscou refúgio em Fortaleza, onde acabou sendo preso em 1996. Já encarcerado no Complexo Penitenciário de Bangu, na zona oeste do Rio, ele criou o grupo rival ADA (Amigos dos Amigos) junto com outro criminoso tido como traidor do Comando Vermelho: José Carlos dos Reis Encina, o famoso Escadinha.

A vingança viria anos mais tarde, em 2002, durante uma rebelião no presídio Bangu 1. Na ocasião, Uê foi assassinado e teve seu corpo carbonizado em uma ação de criminosos liderados por Fernandinho Beira-Mar, que havia assumido o posto de principal nome do CV e também estava detido no Complexo Penitenciário de Gericinó. O episódio simbolizou uma junção temporária entre as duas facções, ADA e Comando Vermelho.

À época, a rebelião no presídio espalhou pânico pelas ruas da capital fluminense. Em ao menos nove bairros, comerciantes fecharam as portas, escolas suspenderam as aulas e até mesmo igrejas interromperam suas atividades. Cerca de 2.000 policiais militares e quatro helicópteros foram mobilizados para minimizar os danos e o clima de guerra urbana na cidade.

Mudou de lado para não morrer

As 23 horas de rebelião em Bangu 1, em 2002, entraram para a história como a revolta mais expressiva na história do sistema prisional fluminense. Além de Uê, outros três líderes do ADA foram assassinados pelos rivais do CV: Wanderley Soares, o Orelha; Carlos Alberto da Costa, o Robertinho do Adeus; e Elpídio Rodrigues Sabino, o Robô.

Um dos principais fundadores do Amigos dos Amigos, Celso Luiz Rodrigues, o Celsinho da Vila Vintém, só não foi morto porque mudou de lado antes do motim. De acordo com a polícia, à época, Celsinho traiu o aliado e alertou Beira-Mar sobre os planos de Uê, que pretendia eliminar os rivais do Comando Vermelho na cadeia.

Por esse motivo, relatam as investigações, Beira-Mar buscou se antecipar ao adversário e realizar o ataque. Finda a carnificina, constatou-se que Celsinho não havia sofrido sequer um arranhão.

Facções têm 'mecanismos punitivos violentos', diz coronel

Ao UOL, o coronel da Polícia Militar Mário Sérgio Duarte, que foi comandante-geral da corporação entre 2009 e 2011, afirmou que as três grandes facções em atividade no Rio, o CV, o ADA e o TCP (Terceiro Comando Puro), possuem "mecanismos punitivos violentos" para aqueles que são declarados traidores.

Por esse motivo, disse ele, muitos "pensam duas vezes" antes de mudar de facção. Até porque, quando ocorre rotatividade, o criminoso já se apresenta à sua nova quadrilha com a pecha de desleal.

"Eventualmente se faz uma aliança ou outra, mas a traição é uma coisa que, dentro da ética criminosa desses grupos, está entre as atitudes mais graves. (...) Nós vivemos em uma cidade que já absorveu a estética de uma guerra civil, mas sem estar em uma guerra civil. As facções possuem mecanismos punitivos muito violentos para os traidores. Muitos acabam pensando duas vezes."

Duarte declarou ainda que, atualmente, os traficantes são norteados basicamente por interesses econômicos ou por acúmulo de poder, consolidando a "geopolítica do crime" na capital fluminense. Nas favelas, buscam controlar não somente a venda de entorpecentes, mas também o acesso a determinados locais, a atividade comercial, entre outras coisas.

Para o coronel, não há mais um "compromisso moral" em relação à defesa do próprio bando. "Eles estão 'linkados' por interesses próprios, e não por uma visão nostálgica e compromisso moral de defender o companheiro, por exemplo. Eles praticam relações muito mais por interesse financeiro e pelo controle do poder, por isso ora mantêm relações diplomáticas entre as facções, ora estão estão em guerra", finalizou.

Confrontos na Cidade Alta

Com objetivo de invadir a Cidade Alta, favela da zona norte carioca, o Comando Vermelho orquestrou ataques a ônibus e caminhões em diversas partes da cidade nesta terça-feira (2), informou a Polícia Militar. A comunidade é considerada pelo tráfico como local estratégico, pois está situada em meio à avenida Brasil e à rodovia Washington Luís, duas das principais vias da região metropolitana, e que permitem acesso à Baixada Fluminense, Minas Gerais e São Paulo.

Pelo menos nove ônibus e dois caminhões foram incendiados a mando dos criminosos. Depois dos ataques, moradores, entre eles, mulheres e crianças, fizeram saques a veículos. A Tropa de Choque e a divisão de elite da corporação, o Bope (Batalhão de Operações Especiais), agiram para reprimir o tráfico na região. Ao menos dois suspeitos foram mortos.

Em entrevista, o chefe de Polícia Civil do Rio, Carlos Augusto Leba, afirmou que a disputa pelo controle da Cidade Alta se acirrou depois que o chefe do narcotráfico "virou a casaca" e passou do Comando Vermelho para a facção rival TCP (Terceiro Comando Puro) no fim do ano passado.

Na empreitada, o CV contou com ajuda de criminosos de outras favelas, como Borel e Formida, na Tijuca (zona norte carioca), Salgueiro, em São Gonçalo (região metropolitana do Estado), entre outras. Apesar dos atentados em vias da cidade e dos intensos confrontos na Cidade Alta, a tentativa de invasão não foi bem-sucedida. A PM reforçou o efetivo e o patrulhamento na região a fim de evitar novos episódios de violência.