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"Droga já é descriminalizada para os ricos. Imagine um tanque em Ipanema"

Johann Hari, autor britânico de livro sobre o fracasso da guerra às drogas - Simon Plestenjak/UOL
Johann Hari, autor britânico de livro sobre o fracasso da guerra às drogas Imagem: Simon Plestenjak/UOL

Gabriela Fujita

Do UOL, em São Paulo

28/11/2018 04h00

Quando começou a pesquisar o vício em drogas, há oito anos, o escocês Johann Hari, 39, estava intimamente ligado ao assunto: pessoas que ele amava -- de sua família ou muito próximas a ele – enfrentavam consequências terríveis da dependência química. Hari queria entender como ajudá-las, o que realmente causava sua relação com entorpecentes, mas, em tudo o que lia, não conseguia respostas.

“Eu me lembro de escrever uma lista de perguntas para mim mesmo, porque eu sabia que estávamos chegando a cem anos desde que a guerra às drogas havia começado nos Estados Unidos, sendo depois imposta ao resto do mundo. As perguntas eram: por que entramos em guerra contra usuários de drogas, dependentes de drogas e vendedores de drogas cem anos atrás? Por que continuamos, se ela não está funcionando muito bem? Então, acabei nessa grande jornada pelo mundo, de mais de 48 mil km, incluindo o Brasil.”

O cientista político e jornalista britânico passou três anos viajando e conversando com uma gama variada de pessoas em nove países: políticos, usuários de drogas, traficantes, pesquisadores e vítimas da violência provocada pelo comércio ilegal de narcóticos. A pesquisa no Brasil foi realizada em 2017, no Rio de Janeiro e em São Paulo. O trabalho resultou na conclusão de que “tudo o que sabemos sobre drogas está errado” e foi transformado em um livro sucesso de vendas, traduzido para diversos idiomas.

Hari esteve em São Paulo, no fim de novembro, para lançar a versão em português, com o título “Na Fissura: Uma História do Fracasso no Combate às Drogas”, da editora Companhia das Letras. Em entrevista à reportagem do UOL, o escritor afirma que o Brasil se inspira em um modelo que, comprovadamente, não deu certo em outros lugares, e que o país “é um dos piores no mundo na guerra às drogas”.

Quando eu estive no Brasil na última vez, eu saí pela praia de Ipanema [no Rio] e um cara viu que era um ‘gringo’, chegou perto de mim e me falou: 'Ei, amigo, você quer comprar cocaína?'

No dia seguinte, eu estava no Complexo do Alemão com um ativista que documenta os terríveis abusos que acontecem com as pessoas lá. Muitos dos seus amigos foram mortos pela polícia. E eu pensei naquela diferença, ele diz. “Tem muitos usuários de drogas na praia de Ipanema. [O uso] já está descriminalizado para as pessoas ricas no Brasil, mesmo não sendo legal."

Se um dia o Estado brasileiro fizesse em Ipanema o que faz todo dia no Alemão, seria a maior notícia no mundo. Imagine se a polícia do Rio começasse a atirar nas pessoas na praia ou mandasse um tanque para Ipanema, é impensável. E isso tem sido verdade na guerra às drogas

Veja abaixo os principais trechos da entrevista.

UOL – Por que o Brasil está entre os países que você pesquisou?

Johann Hari - Um dos motivos de eu ter vindo ao Brasil especificamente é porque o Brasil está experimentando alguns dos piores efeitos da guerra às drogas. É um dos lugares onde a guerra às drogas tem sido muito devastadora, onde todo ano está matando o maior número de pessoas, e é o lugar onde as alternativas que eu conheci em outros países são desesperadamente mais necessitadas.

O que você tem a dizer sobre o alto número de pessoas encarceradas no Brasil por envolvimento com o tráfico de drogas?

Há muito a dizer sobre isso, eu passei bastante tempo nas favelas do Complexo do Alemão e da Maré, no Rio de Janeiro, para aprender mais sobre isso.

Quando eu comecei a investigar a guerra às drogas globalmente, eu percebi que o que fazemos com dependentes e usuários não é a maior questão. É importante, mas não é a maior. A maior questão é a violência causada pela proibição às drogas.

Operação do Bope no Complexo do Alemão - Antônio Scorza/Agência O Globo - Antônio Scorza/Agência O Globo
Em maio de 2017, operação do Bope (elite da polícia carioca) no Complexo do Alemão deixou ao menos três mortos e quatro feridos
Imagem: Antônio Scorza/Agência O Globo

Imagine se estivéssemos em Chicago (EUA) e decidíssemos que íamos roubar uma garrafa de vodca. Nós entramos em uma loja, pegamos a garrafa e a loja nos descobre. Eles chamam a polícia e a polícia nos leva embora. A loja não precisa ser violenta, não precisa ser intimidadora. Ela tem o poder da lei e do Estado para defender os direitos da sua propriedade. Agora, imagine se nós decidirmos que vamos roubar um pacote de maconha ou de cocaína. Obviamente, o cara que vende isso não pode chamar a polícia. Ele tem que lutar contra nós. Ele tem que estabelecer seu lugar na vizinhança por meio da violência, pelo terror, lutando contra seus rivais. A guerra contra as drogas cria uma guerra pelas drogas. O ato de proibição cria uma guerra pelas drogas.

Todo mundo sabe quem era Al Capone [gângster que comandou a venda ilegal de bebidas alcoólicas nos EUA, nos anos 1920 e 1930] e quem era Pablo Escobar [líder de um cartel colombiano de narcotráfico nos anos 1980 e 1990]. Ninguém sabe o nome do chefe da Budweiser [fabricante americana de cerveja]. A droga não mudou. O que mudou foi o status legal da droga.

Como você acha que a legalização poderia ter um início no Brasil?

A opinião pública ainda não chegou lá, mas ela pode mudar rapidamente. De formas positivas e negativas. Quando George W. Bush se tornou presidente [dos EUA, em 2001], 15% dos americanos apoiavam a legalização da maconha. Hoje, está em 70%, em um período muito curto de tempo. Minhas avós não eram autorizadas a ter conta em banco [por serem mulheres] quando se casaram. Não vai ocorrer em curto prazo, isso é para médio prazo.

Johann Hari, autor britânico sobre o fracasso da guerra às drogas - Simon Plestenjak/UOL - Simon Plestenjak/UOL
Johann Hari, autor britânico e pesquisador da guerra às drogas
Imagem: Simon Plestenjak/UOL

Os brasileiros estão comprando uma solução falsa para o problema da violência. É uma solução que, na verdade, vai tornar o problema pior. E parte da maneira como devemos responder a isso é não só condená-la. As pessoas estão certas em estarem extremamente bravas, aborrecidas e tristes com o índice de assassinatos, mas há soluções reais, que vão genuinamente reduzir o número de mortes no Brasil. Elas foram tentadas em outros países, podemos ver os resultados em Portugal, Uruguai, Suíça. Esse é o coração do trabalho que precisa ser feito agora.

O argumento falso é aquele usado no mundo todo na guerra às drogas e que tem vários aspectos. Um deles é que o problema da violência provocada pelo tráfico de drogas pode ser combatido com repressão violenta. Isso foi tentado em alguns países e não deu certo, como nos EUA e nas Filipinas. O que você faz é: não se livra da droga, mas a transfere para comércios legalizados, tira das gangues criminosas violentas, que vão para a guerra pelo controle do tráfico. O debate não é se você gosta de drogas, incluindo álcool, ou se você quer que as pessoas usem. Isso é um dado. O debate é se você quer ser controlado por criminosos violentos ou por negócios legalizados que pagam impostos e obedecem a lei. É a única opção que temos.  

Criminosos respondem a incentivos. Nós transferimos uma das indústrias mais valiosas do mundo, que é de 3% a 5% do PIB global, para criminosos. Alguém vai pegar isso, vai responder a esse incentivo.

O que o Brasil tem de diferente, em relação a outros países, quando falamos sobre a guerra às drogas?

O Brasil tem um dos piores índices de mortos na guerra pelas drogas no mundo. Só fica atrás do México. Trinta mil pessoas por ano é o equivalente, na Argentina, à Guerra Suja inteira [repressão violenta durante o regime militar, de 1976 a 1983].

Johann Hari, autor britânico que analisa a guerra às drogas - Simon Plestenjak/UOL - Simon Plestenjak/UOL
O escritor Johann Hari, em São Paulo, onde conversou com o UOL
Imagem: Simon Plestenjak/UOL

O oposto do vício não é a sobriedade, é a conexão. Eu pensei muito nisso quando estive na cracolândia em São Paulo. Por muito tempo, o Estado só respondeu com punição. O núcleo da dependência é sobre não querer estar presente na própria vida, porque sua vida é um lugar muito doloroso para se estar. Quando se entende isso, é possível ver por que infligir mais dor e mais sofrimento fracassa tanto. E, na verdade, adiciona combustível à dependência e a faz pior. É por isso que todas as tentativas de repressão na cracolândia não alcançaram nada, tornaram o problema pior. Até agora, quando se trata de guerra às drogas, o Brasil tem copiado os países que falharam.

Devíamos levar o PCC à falência

O seu presidente eleito [Jair Bolsonaro, PSL] tem proposto que a melhor resposta para a guerra pelas drogas e a violência que ela causa é a supressão violenta do comércio de drogas. Eu estive nos lugares que tentaram isso. E podemos ver os resultados. Não há um lugar na Terra onde isso já funcionou.

Nos EUA, fizeram isso por cem anos, gastaram US$ 1 trilhão, mataram centenas de milhares de pessoas, aprisionaram milhões de cidadãos, destruíram países inteiros, como a Colômbia, e no final de tudo isso, não conseguem nem manter as drogas fora de seu sistema penitenciário.

O PCC se estabeleceu por meio da dominação violenta do tráfico de drogas em São Paulo. Quando você prende ou mata a liderança, as pessoas ainda querem drogas, a demanda do mercado ainda está lá. O que acontece é que você desencadeia uma guerra pelo controle do território que o PCC dominava. Isso não quer dizer que a gente deve deixar o PCC e outros grupos no controle do tráfico, mas deveríamos reivindicar o comércio e leva-los à falência, em vez de tentar suprimi-los com violência.