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Testemunhas-chave do caso Guilherme não foram a julgamento que absolveu PM

Guilherme Silva Guedes, morto após ser sequestrado na Vila Clara - Arquivo Pessoal
Guilherme Silva Guedes, morto após ser sequestrado na Vila Clara Imagem: Arquivo Pessoal

Marcos Hermanson Pomar

Colaboração para o UOL

28/10/2021 04h00

As principais testemunhas do caso Guilherme Guedes não foram ouvidas no tribunal do júri que terminou com a absolvição do principal suspeito do crime, o sargento da PM Adriano Fernandes Campos.

Ao UOL, o promotor de Justiça responsável pelo caso, Neudival Mascarenhas, confirma que o depoimento delas "seria importante para o conhecimento dos jurados", já que relataram à polícia ter presenciado o sequestro de Guilherme. O jovem foi levado da frente da casa da avó e encontrado sem vida com dois tiros na cabeça em junho de 2020. Dias após a absolvição do PM, viaturas foram flagradas em vídeo rondando a casa da família.

Para o promotor do MP-SP, a absolvição de Adriano foi um "erro judiciário". Ele já recorreu da decisão. "O veredito foi manifestamente contrário à prova dos autos."

Por razões sanitárias, a imprensa teve a presença vetada no julgamento, em 14 de outubro. Cinco familiares de Guilherme presentes afirmaram à reportagem que nenhum dos menores de idade que estiveram com o jovem momentos antes de seu sequestro compareceu para depor. Vídeos de câmeras de segurança de instantes antes do desaparecimento dele mostram ao menos dois meninos e uma menina junto com ele.

O promotor Neudival Mascarenhas confirma a ausência dos rapazes porque "não puderam ser localizados". Afirma ainda que a presença dos rapazes que estavam com Guilherme logo antes do sequestro teria sido positiva. No julgamento foram ouvidas a mãe e duas tias de Guilherme, mas nenhuma das três tem informações relevantes sobre o crime.

Além dos garotos que aparecem junto com Guilherme no vídeo, há um menor de idade que procurou a família logo após o crime, ainda de madrugada, dizendo ter testemunhado o sequestro de Guilherme. Na versão contada pelo garoto, Guilherme teria sido espancado e colocado dentro de um carro preto, sob resistência.

O menino chegou a ter o depoimento tomado pelos investigadores do Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP) da Polícia Civil na casa da avó de Guilherme, Vera Guedes. Segundo Mascarenhas, ele também não foi localizado. A reportagem procurou o delegado Rodolpho Chiarelli, do DHPP, mas o responsável por conduzir as investigações do caso Guilherme preferiu não responder. Por nota, a Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo se limitou a informar que o DHPP investigou o caso e o relatou à Justiça, que decretou a prisão preventiva dos dois suspeitos.

A estratégia a partir de agora, conta Mascarenhas, é tentar garantir a presença de mais testemunhas na audiência de instrução do julgamento do outro suspeito, o ex-PM Gilberto Eric Rodrigues, marcada para o dia 17 de novembro. Os processos de Gilberto e Adriano correm em separado na Justiça.

Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020 (levantamento mais recente feito pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, com dados do ano de 2019), 74,4% das vítimas de homicídio no Brasil eram pessoas negras. Entre as pessoas mortas por policiais, 79,1% são pessoas negras. Na esfera do poder público, não existe uma divulgação transparente de dados oficiais nacionais sobre homicídios ou sobre mortes provocadas por policiais em todo o Brasil. O governo brasileiro também não disponibiliza dados nacionais sobre as investigações e punições de homicídios.

Testemunhas no dia do crime

Os garotos vistos com Guilherme nas imagens e a criança que alega ter testemunhado o crime foram responsáveis pela invasão de um terreno da Sabesp vizinho ao local de onde Guilherme foi raptado, alguns minutos antes do crime acontecer.

Os menores utilizavam o terreno da Sabesp como local de passagem para o estacionamento de uma unidade do atacadista Roldão, onde "roubavam" comida descartada.

Na madrugada de 14 de junho de 2020, o vigia do galpão avistou os meninos e ligou para Adriano Campos, dono da firma de segurança Campos Forte Portarias Ltda. Ele foi ao local junto do outro acusado, o ex-PM Gilberto Eric Rodrigues.

A empresa Campos Forte estava registrada como prestadora de serviços de zeladoria, mas, na prática, prestava serviços de segurança, o que é proibido pela Lei Orgânica da Polícia — uma vez que era administrada diretamente pelo policial militar.

Em imagens de câmeras de segurança recuperadas pela família é possível ver Guilherme saindo do portão da casa da avó, que fica nas imediações do terreno da Sabesp, e parando para conversar com os rapazes logo ao lado, em frente a uma viela.

As imagens mostram que eles permanecem no local por alguns minutos, até que todos saem, menos Guilherme, que entra na viela.

Após 23 segundos, o ex-PM Gilberto Eric Rodrigues aparece pegando um objeto no chão, na entrada do local. Passados outros 15 segundos, o sargento Adriano surge na imagem. Ele caminha em direção à rua com o que parece ser uma arma na mão, olha em redor e desaparece na viela novamente.

O corpo de Guilherme foi encontrado horas depois, em Diadema, com dois tiros na cabeça e sinais de tortura. A morte gerou protestos no bairro por dois dias seguidos. Principal suspeito, o sargento Adriano Campos foi preso pelo DHPP três dias depois, em 17 de junho.

Os familiares ouvidos pela reportagem confirmam que, em seu depoimento ao tribunal do júri, o sargento Adriano se identificou nas imagens da câmera, mas alegou nunca ter visto Guilherme.

Ele também disse que na época desconhecia a real identidade de Gilberto Eric Rodrigues, que estava foragido do presídio Romão Gomes, onde cumpria pena por homicídio, desde 2015. Adriano alega que Gilberto se apresentava como "Roberto".

Segundo o DHPP, Gilberto atuava como matador e está implicado em mais de 70 homicídios. Ele foi localizado e preso pelo DHPP em maio deste ano.

Vigia também não foi ouvido

Responsável por chamar Adriano ao local após a invasão, o vigia do terreno, identificado apenas como Fábio, também não foi ouvido no julgamento.

Em depoimento ao DHPP, o funcionário disse que Adriano teria deixado com ele o seu celular. Para o MP, essa seria uma manobra do PM para evitar o rastreamento do aparelho durante o sequestro de Guilherme.

Sem a senha do aparelho, ele disse que ligou diretamente para a Polícia Militar por meio da função "ligação de emergência" ao avistar os meninos responsáveis pela primeira invasão entrarem no terreno novamente. Daquela vez, porém, eles procuravam por Guilherme.

Isso ocorreu por volta de 3h da manhã, uma hora depois de as imagens de câmeras de segurança registrarem a presença de Guilherme com vida pela última vez.

No tribunal do júri, o sargento Adriano alegou que deixou o celular com o vigia porque o aparelho do funcionário não estava funcionando, e diz que o ensinou a desbloquear o seu aparelho.

Um homem chamado Marcílio, também funcionário de Adriano, afirmou ao DHPP que foi ao local no dia seguinte do crime recolher o celular. Ele também não compareceu ao julgamento.

Em conversa com a reportagem, o promotor do caso lamentou a ausência de Fábio e de Marcílio e diz que apenas leu o depoimento dos dois para os jurados.

Família expulsa da sala de audiência

Joice Santos, mãe de Guilherme, conta que apesar da proibição inicial de que qualquer pessoa alheia ao processo entrasse no julgamento, ela conseguiu ingressar com quatro familiares na sala de audiência.

Por ordem do juiz, ela e os acompanhantes foram retirados por esboçarem reação às fotos do cadáver de Guilherme, exibidas durante a sustentação oral do promotor.

Eu entrei em desespero naquele momento, comecei a chorar e saí da sala por conta própria. Então minha sobrinha e minha prima vieram me amparar, no corredor
Joice Santos, mãe de Guilherme

Luara dos Santos, prima de Joice, conta que uma agente de segurança pediu que se retirassem quando tentaram voltar para a sala. "No corredor, outra agente nos explicou que o juiz tinha ordenado nossa saída, por termos 'esboçado reação'. Ela disse que esboçar reação não era apenas gritar, como tinha feito a Joice, mas também chorar", conta Luara.

O juiz Luis Gustavo Esteves Ferreira, da 1ª Vara do Júri da Capital, que presidiu a sessão, foi procurado pela reportagem. A assessoria de imprensa do Tribunal de Justiça de São Paulo respondeu que magistrados não podem se manifestar sobre processos em andamento.

Intimidação

Três dias após a sentença, policiais militares foram gravados tirando fotos e vídeos da casa da avó de Guilherme, Vera Guedes, e interrogando a família. O local é o mesmo de onde Guilherme foi raptado, em junho do ano passado.

Procurada, a PM-SP informou que havia reforço no efetivo policial na região para coibir um baile funk e informou que o caso será apurado pela corregedoria da corporação.

Familiares ouvidos pela reportagem relataram medo e revolta após o veredito. "Me sinto ameaçada", diz a mãe de Guilherme, Joice Silva. "Tenho medo pela minha família".