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Relatório final sobre o acidente do voo AF 447 aponta falhas mecânicas, erros dos pilotos e falta de treinamento

Alain Bouillard, responsável pela investigação do acidente com o voo AF 447, divulga relatório final do caso - Patrick Koravik/AFP
Alain Bouillard, responsável pela investigação do acidente com o voo AF 447, divulga relatório final do caso Imagem: Patrick Koravik/AFP

Do UOL, em São Paulo

05/07/2012 10h02Atualizada em 05/07/2012 15h42

O relatório final do inquérito sobre o acidente com o voo AF 447 da Air France, em 2009, foi divulgado nesta quinta-feira (5), em Paris, e mostrou que a tragédia foi provocada por erros dos pilotos e falta de treinamento da tripulação, que não soube agir frente a um problema mecânico apresentado pela aeronave. Outras falhas do avião podem ainda ter colaborado com a resposta equivocada dos pilotos. O documento foi apresentado pelo Escritório de Investigação de Acidentes Aéreos da França (BEA, na sigla em francês), em uma coletiva de imprensa.

O Airbus A330 fazia o trajeto entre o Rio de Janeiro e Paris e caiu no oceano Atlântico no dia 1º de junho de 2009. Todos os 228 ocupantes morreram. 

O relatório mostrou o trajeto da aeronave, repetindo o que já havia sido divulgado em relatórios anteriores. Segundo o BEA, a tripulação não identificou a situação de queda em nenhum momento e não atuou para recuperar a trajetória do voo. “Os pilotos nunca entenderam que estavam caindo”, afirmou Alain Bouillard, responsável pela investigação. “Só uma tripulação que tivesse compreendido a situação poderia retomar o plano de voo.”

Assim como havia sido exposto em relatórios preliminares, o BEA confirmou que as sondas Pitot (que medem a velocidade do avião) foram obstruídos por cristais de gelo quando a aeronave passava por uma zona de turbulência, o que deixou a tripulação sem saber a real velocidade da aeronave. Após o acidente, foi recomendada a troca das sondas nas aeronaves.

Acidente matou 228 pessoas

  • Arte

    Os problemas no avião começaram poucos minutos depois de o principal piloto começar o seu descanso regulamentar. Segundo o BEA, o comandante foi descansar sem deixar "claras recomendações" aos dois copilotos que ficaram no controle.

    Os documentos mostraram que os pilotos levaram o Airbus para uma região de tempestades --apesar dos copilotos terem feito um desvio de 12º na rota-- e a baixa temperatura acabou por congelar os sensores de velocidade, dificultando o trabalho da tripulação.

    A incoerência nas informações de velocidade provocou o desativamento do piloto automático. Segundo os documentos, o copiloto mais jovem iniciou uma manobra equivocada --elevando o bico da aeronave, quando o recomendado é abaixá-lo. De volta à cabine, o piloto não conseguiu reverter a situação. Falhas mecânicas podem ter dificultado as respostas da tripulação.

    A aeronave caiu durante três minutos e trinta segundos antes de tocar a superfície do oceano. Em nenhum momento a tripulação avisou os passageiros sobre os problemas enfrentados na cabine, segundo relatórios anteriores.

A incoerência nas informações de velocidade, causada pelo congelamento das sondas, provocou o desativamento do piloto automático.

Segundo os documentos, o copiloto mais jovem do Airbus A330, que assumiu o controle enquanto o comandante efetuava seu repouso regulamentar, iniciou uma manobra equivocada --elevando o bico da aeronave-- depois que o piloto automático se desativou. Sinais sonoros de alerta, que indicavam a falta de sustentação da aeronave (estol), foram ativados.

Uma vez de volta à cabine, poucos minutos após o desativamento do piloto automático, o comandante também não adotou as decisões adequadas, o que teria feito com que o avião perdesse paulatinamente altura até cair, de barriga, no Atlântico, a uma velocidade final de 200 km/h --segundo indicado em um dos documentos preliminares.

A decisão do copiloto de elevar o bico do avião para ganhar altitude, após o início da pane, não corresponde aos procedimentos normalmente seguidos nesse caso –especialistas apontam que o correto seria abaixar o nariz da aeronave para que ela recuperasse a velocidade e retomasse a sua sustentação.

Nenhum deles --comandante e dois copilotos--, segundo o BEA, identificou formalmente a situação de perda de sustentação e tomou atitudes para revertê-la. 

Porém, tanto especialistas quanto o BEA indicam que informações contraditórias fornecidas pela aeronave podem ter confundido os pilotos e os induzido ao erro.

Durante a coletiva de imprensa, os investigadores reconheceram que algumas ações dos pilotos foram motivadas por dados errôneos nos equipamentos do avião. É o que ocorreu com o diretor de voo, que fornece a posição da aeronave para que o piloto siga determinados parâmetros. Em algumas situações, o instrumento orientou os pilotos a continuarem subindo no momento em que o avião perdia a velocidade. Nesse caso, a orientação deveria ter sido o contrário.

Mas em momento algum durante a coletiva, o BEA, ligado ao governo francês, acionista da Air France e da Airbus, criticou a ação dessas duas empresas. 

Segundo o BEA, o acidente resultou de seis eventos:

1) A temporária inconsistência entre as velocidades medidas, presumivelmente como resultado da obstrução das sondas Pitot por cristais de gelo, o que, entre outras coisas, resultou na desconexão do piloto automático e na reconfiguração para Alternate Law;

2) Os inapropriados comandos aplicados nos controles, o que desestabilizou a trajetória de voo;

3) A falta de qualquer ligação estabelecida, pela tripulação, entre a perda das informações de velocidade indicada e o procedimento previsto;

4) A identificação tardia, pelo copiloto, do desvio da trajetória de voo e a correção insuficiente comandada pelo piloto;

5) A falha da tripulação em identificar a aproximação do estol [perda de sustentação aerodinâmica], a falta de resposta imediata e a saída do envelope de voo;

6) A falha da tripulação em identificar a situação de estol e, por consequência, a ausência de comandos que permitissem a recuperação da aeronave.

Ainda segundo o BEA, estes eventos podem ser explicados pela combinação de falhas técnicas e falha dos pilotos, entre elas:

- A falta de um modelo de risco que incluísse o congelamento dos tubos de Pitot e suas consequências;

- A falta de treinamento prático de pilotagem manual em altitude elevada e no procedimento previsto para falhas de indicação de velocidade;

- Incompreensão da situação quando do desligamento do piloto automático e mau gerenciamento do efeito surpresa, que resultou em alto nível de estresse dos dois copilotos;

- A falta de uma indicação clara, na cabine de pilotagem, da inconsistência na indicação de velocidades, identificada pelos computadores;

- A falha da tripulação em levar em consideração o alarme de estol [falta de sustentação], que pode ter sido causado por, entre outros fatores: falha na identificação do alarme sonoro; falta de informação visual que permitisse confirmar a aproximação do estol após a perda de indicação de velocidade; uma possível confusão sobre as condições de velocidade; falha dos equipamentos, que podem ter confirmado à tripulação que seus comandos estavam corretos, apesar de inapropriados

Veja aqui a íntegra do resumo do relatório, em português.

Situação inédita e tensão na cabine

Segundo o diretor do BEA, Jean-Paul Troadec, a situação final enfrentada pela tripulação era inédita e nunca foi enfrentada em voos comerciais. "Dois acontecimentos levaram ao acidente: a obstrução das sondas de velocidade Pitot e o não reconhecimento do descontrole do avião", afirmou Jean-Paul Troadec, falando à imprensa. "Se o BEA achasse que este acidente foi devido somente à tripulação, não teria feito recomendações sobre os sistemas, sobre a formação etc. O que quer dizer que este acidente poderia ter acontecido com outras tripulações."

Segundo os técnicos, se após o desligamento do mecanismo automático de voo a trajetória tivesse sido mantida, a tragédia poderia ter sido evitada. Embora seja "muito difícil de estabelecer", em casos similares, após a perda do piloto automático, a tripulação não fez nada e os aviões não se acidentaram, acrescentaram.

Em julho do ano passado, o relatório do BEA mostrou pela primeira vez a tensão na cabine nos últimos minutos da tragédia, por meio da transcrição das caixas-pretas. As conversas mostram que a tripulação mal teve tempo de entender o que estava acontecendo.

Os investigadores assinalaram que a tripulação não estava preparada tecnicamente para enfrentar uma situação desse tipo em grande altitude e que os pilotos não tinham recebido treinamento em caso de perda de sustentação do Airbus e falta de informações confiáveis de velocidade.

Depois da divulgação do terceiro relatório, a Air France defendeu o "profissionalismo" de seus tripulantes e questionou a "confiabilidade do alarme depois da perda de sustentação" do Airbus A330.

Recomendações

A conclusão do caso será usada, principalmente, como medida para prevenir futuros acidentes aéreos. O BEA apresentou 25  novas recomendações de segurança (que se somam a outras 16 divulgadas anteriormente), entre elas mudanças técnicas nas aeronaves e a necessidade de melhorar a formação prática e teórica dos pilotos e a integração entre as equipes, para que saibam como agir em situações de emergência. 

O relatório também vai servir de base para apontar as responsabilidades penais no caso, já que a Justiça francesa mantém aberto um processo pelo acidente, no qual são acusados a Air France e a Airbus, fabricante da aeronave.

O diretor do BEA lembrou que a investigação do órgão não tem o propósito de condenar responsáveis, o que será determinado por um processo realizado pelo Ministério Público francês.

Outro lado

Após a divulgação do relatório, a empresa Airbus comprometeu-se nesta quinta-feira a adotar "todas as medidas necessárias" para melhorar as condições de segurança aérea. "A Airbus adotará todas as medidas que permitirão contribuir para este esforço coletivo em favor da otimização da segurança aérea", segundo um comunicado. O grupo "já começou a trabalhar em nível industrial a fim de reforçar as exigências relativas à resistência das sondas Pitot", acrescentou.

A companhia aérea Air France, por sua vez, elogiou o "trabalho minucioso" do BEA e ressaltou que a tripulação estava formada segundo a regulamentação e que o aparelho funcionou com base na certidão.

"Nenhuma recomendação se dirige particularmente à Air France", mas "ao conjunto da comunidade aeronáutica", acrescentou o porta-voz da companhia aérea, que destacou que seu objetivo é fazer com "que a segurança seja melhor amanhã do que ontem". 


Indiciamentos e relatório judicial

A Justiça francesa, que também investiga o acidente para determinar as responsabilidades penais da tragédia, já indiciou a Airbus e a Air France por homicídio culposo.

O relatório judicial foi finalizado no último dia 30 de junho e será apresentado aos familiares no dia 10 de julho, cinco dias após a divulgação do relatório final do BEA.

A agência AFP adiantou, na quarta-feira (4), informações sobre o relatório judicial, repassadas por uma fonte. As conclusões apontam a perda de dados sobre o voo causadas principalmente pelo congelamento das sondas Pitot –considerado um procedimento inadequado–, mas aponta também a falta de resposta adequada da tripulação ao que ocorria com a aeronave e ainda a inexistência de um acompanhamento dos incidentes registrados desde 2004. 

As vítimas

As equipes de resgate retiraram 154 corpos do oceano –ao todo, 228 pessoas estavam no voo AF 447, sendo 58 brasileiros. Cinquenta corpos foram resgatados nas duas primeiras semanas após o acidente.

Após essa operação, foram quase dois anos até que se localizassem mais corpos e outros destroços da aeronave. Em todo o ano de 2011 foram resgatados 104 corpos ou restos mortais, totalizando 154 vítimas encontradas.

As autoridades francesas decidiram retirar os últimos corpos do avião após comprovar que eram identificáveis a partir de testes de DNA, apesar de estarem há quase dois anos em uma profundidade de cerca de 4.000 metros. Em novembro do ano passado, foi anunciada a identificação de 103 das 104 vítimas.

Já as caixas pretas foram localizadas entre abril e maio de 2011, entre os destroços do avião a uma profundidade de 3.900 metros. (Com agências internacionais)