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Sírios compram no Facebook o ingresso para o paraíso -- mas passam pelo inferno

Sandro Fernandes
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Sandro Fernandes

Colaboração para o UOL em Gevgelija (Macedônia)

10/09/2015 12h00Atualizada em 10/09/2015 15h15

Escapar de uma guerra e tentar recomeçar a vida em um novo país tem um preço alto - não sai por menos de US$ 3 mil (R$ 10,4 mil). A diferença é que o êxodo de refugiados no século 21 pode começar em uma simples conversa pelas redes sociais, especialmente pelo Facebook.

Essa é a maneira que muitos estão encontrando para escapar da tragédia da guerra civil em seu país e da fúria do Estado Islâmico, que domina grandes territórios da Síria e do Iraque.

Os milhares de refugiados que estão chegando todos os dias à Europa vivem um longo périplo e são obrigados a gastar seu dinheiro com subornos e propinas a atravessadores e contrabandistas de pessoas.

"Eu tinha um dinheiro economizado, vendi meu carro e peguei dinheiro emprestado com meus pais. Eu sabia que gastaria muito para chegar à Europa, mas eu também não podia ficar mais no meu país", relata o engenheiro sírio Feras, 35. Ele saiu há dois anos de Aleppo, segunda maior cidade da Síria, destruída pelo conflito que se arrasta por quase cinco anos.

"Meu primeiro desafio foi ter coragem de sair do meu país e deixar minha família e amigos", conta Feras.

"Não tínhamos dinheiro para que todos fugissem da guerra e meus pais acharam que eu deveria sair primeiro, por eu ser mais jovem e também por ter mais condições de trabalhar e voltar para levá-los até um lugar seguro que eu encontrasse."

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O engenheiro sírio Feras no centro de acolhimento na Macedônia
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O engenheiro conseguiu chegar à Turquia após pagar US$ 200 (cerca de R$ 760) a um turco que lhe prometeu que os oficiais de imigração fariam vista grossa e permitiriam sua entrada.

"Passei dois anos na Turquia, esperando alguma oportunidade para ir à Europa. Pela internet, descobri que muitos sírios estavam começando a atravessar da Turquia para a Grécia com a ajuda de contrabandistas."

Nas redes sociais, há diversos grupos em árabe e em inglês que oferecem o serviço de travessia ilegal da Turquia para a Grécia. E foi em um desses grupos que Feras negociou e montou parte do roteiro para chegar a norte da Europa.

"Fui até a cidade de Bodrum [Turquia], marquei tudo por Facebook e encontrei um homem que me explicou os detalhes da viagem."

Sem garantias

No submundo clandestino do tráfico humano, o desespero é o termômetro para "precificar" a passagem para o paraíso. As economias de uma vida inteira geralmente não são suficientes para garantir o sucesso da viagem. A única certeza que se tem é que não existem garantias: a figura do corpo do menino sírio Aylan, de três anos de idade em uma praia turca é o maior lembrete do perigo do "investimento".

O interessado entra em contato pelo Facebook, recebe parcas informações e a orientação de estar em um determinado local, em um determinado país, geralmente com o dinheiro em mãos, para iniciar a travessia. Tudo muito impessoal, muito frio e assustador, na maioria das vezes. 

A travessia de barco da Turquia pra Grécia é gratuita para menores de 10 anos. A viagem, quando consegue chegar ao destino, dura aproximadamente cinco horas. No caminho, muitas pessoas rezam, outras fumam, alguns tiram selfies.

Os botes infláveis são pequenos e muitas vezes antigos. Os coletes salva-vidas são comprados pelos próprios refugiados. "O preço do colete varia entre US$ 100 e US$ 200 dólares, mas o nosso agente disse que o barco era seguro."

Em terra firme, muitas vezes os "clientes" são amontoados nas carrocerias dos chamados caminhões-baús - semanas atrás, um desses foi parado em uma barreira de fiscalização, e sua carga tenebrosa escondia 72 corpos de imigrantes, provavelmente mortos por asfixia.

Superados os riscos de morte durante a jornada, surge o obstáculo que deveria ser o último, e que na maioria das vezes se torna intransponível - cruzar a fronteira de um país rico da Europa, uma jornada tão dramática e perigosa quanto a dos latino-americanos que se arriscam a entrar nos Estados Unidos nos buracos da fronteira mexicana com o Texas, com a Califórnia e com o Novo México.

Os refugiados atravessam as fronteiras sozinhos, com a ajuda do GPS dos smartphones e, às vezes, até mesmo com a ajuda de cidadãos locais, que indicam qual é o caminho para entrar no próximo país ilegalmente.

Há relatos de que até mesmo policiais indicaram aos refugiados por onde eles teriam de ir se quisessem entrar no país pela fronteira não-oficial.
 

Solidariedade na costa

O engenheiro sírio Feras negociou via Facebook e teve de pagar US$ 1,2 mil (cerca de R$ 4,5 mil) para atravessar da Turquia para a Grécia "em um barco com capacidade para 18 pessoas, mas que levava quase 50 (refugiados)". 

A travessia durou aproximadamente cinco horas.

"Enquanto atravessávamos, vimos corpos boiando. Eu não sabia se rezava, se chorava. Eu só tinha a certeza de que eu tinha de chegar à Grécia para continuar a minha vida e ajudar aos meus pais."

Feras chegou. O barco em que estava foi ajudado por pescadores gregos assim que foi avistado da costa.

Já na Grécia, Feras tentou chegar à Itália duas vezes, com um passaporte italiano falso, em um barco regular para turistas. O passaporte – comprado na Turquia – havia custado US$ 500 (R$ 1,9 mil). A viagem em um barco turístico custou 63 euros (R$ 267). Mas os italianos desconfiaram.

"Eles vieram falar comigo em italiano e eu não falo o idioma".

Feras decidiu então fazer a rota dos Bálcãs, saindo da Grécia e seguindo para a Macedônia e Sérvia antes de, finalmente, chegar à Hungria.

Mais desespero nas fronteiras

Na fronteira entre a Grécia e a Macedônia, os refugiados são identificados pela polícia da Macedônia em um campo de acolhimento, onde recebem um documento que lhes permite viajar até a fronteira da Macedônia com a Sérvia. Quando são liberados do centro, são vítimas de mais pessoas que se aproveitam da situação de desespero dos refugiados.

"Não tem trem. Não tem ônibus", gritam dezenas de taxistas, em inglês. Na verdade, há trem e há ônibus. Mas os refugiados acabam sendo, mais uma vez, reféns de oportunistas.

Antes mesmo de que os refugiados encontrem os taxistas, algumas pessoas aparecem perto do centro de acolhimento, escondidos por trás de arbustos, tentando oferecer ônibus de excursão ou vans para os grupos maiores.

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Taxistas aguardam refugiados na fronteira da Macedônia; corrida é superfaturada
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"A gente colocou cartazes aqui no centro de acolhimento com os valores máximos que eles devem pagar aos taxistas, mas a gente sabe que há muita gente que não respeita esses valores. Eles sabem que os refugiados estão cansados e só querem chegar à Alemanha", explica um voluntário da Cruz Vermelha.

A passagem de ônibus da fronteira da Grécia com a Macedônia até a fronteira da Macedônia com a Sérvia custa aproximadamente seis euros (R$ 25). Os taxistas chegam a cobrar 50 euros (R$ 212) por pessoa, mas o valor foi fixado pelas autoridades macedônias entre 25 euros (R$ 106) e 100 euros (R$ 424) pelo carro com quatro adultos e uma criança.

Quando chegam a Kumanovo, cidade ao norte da Macedônia, na fronteira com a Sérvia, os refugiados são mais uma vez abordados por contrabandistas de pessoas. O contato também é estabelecido inicialmente por meio das redes sociais.

"Você está vendo aquelas pessoas lá sentadas no posto de gasolina? São eles", aponta Feras. "A gente já combinou o valor pela internet. São mil euros (R$ 4,2 mil) por táxi para que eles nos levem da cidade de Roszke, na fronteira da Sérvia com a Hungria, para a cidade de Hegyeshalom, na fronteira da Hungria com a Áustria."

Metade do valor é pago em espécie do lado sérvio, sem nenhuma garantia, apenas com o nome de quem estará esperando por eles do lado húngaro. A outra metade é paga ao motorista do carro no lado húngaro.

A travessia da fronteira é feita pelos próprios refugiados, sem nenhum auxílio dos contrabandistas. Eles atravessam a pé por uma linha de trem abandonada, no meio da noite, para evitar serem pegos pela polícia húngara.

"Essa é uma das partes mais tensas da rota. A polícia húngara não gosta da gente. Colocaram a cerca de arame e agora vão mudar a lei. Mas se a gente conseguiu atravessar o oceano, vamos conseguir atravessar aqui também", narra o refugiado sírio.

A partir do dia 15 de setembro, cruzar a fronteira húngara ilegalmente passa a ser crime, com punição prevista de até três anos de reclusão.

Alívio e esperança

Feras sabe o que outros colegas passaram na Hungria.

"Falo por WhatsApp com amigos meus que já estão na Alemanha. Não tivemos muitos problemas nos outros países, mas sei que muita gente está tendo problema na Hungria. Foram meus amigos que me deram os contatos destas pessoas que nos ajudam aqui na fronteira e nos levam direto para a Áustria."

Um amigo de Feras que prefere não se identificar confirma a ansiedade de atravessar pela Hungria. "Queremos chegar à Áustria sem ser identificados na Hungria. Se não, teremos de ficar aqui. Por isso pagamos para que a gente chegue com segurança à próxima fronteira".

O amigo pede para não aparecer em fotos. "Tenho medo de sair nos jornais e depois ter meu pedido de asilo recusado por causa disso."

A viagem até Hegyeshalom é a última parte do trajeto. Alguns refugiados completam o percurso caminhando, enquanto outros são ajudados por ativistas alemães e austríacos que os levam da Hungria para a Áustria, desafiando a lei.

"Você me adiciona depois no Facebook? Podemos marcar para tomar um chá em Munique", despede-se Feras.

Dias depois, Feras informou à reportagem do UOL que conseguiu chegar em Viena, na Áustria. "Alive and happy" (Vivo e feliz), escreveu.