Topo

Muitos soldados, pouca sinalização, longas filas: a Rio-2016 por trás das câmeras de TV

Doug Mills/The New York Times
Imagem: Doug Mills/The New York Times

David Segal

No Rio de Janeiro

11/08/2016 10h54

Na final da prova de trampolim de 3 metros sincronizado feminino no domingo, pareciam estar acontecendo dois eventos simultâneos. Aquele sendo mostrado em uma grande tela na arena externa, e aquele ao vivo diante de seus olhos. Os eventos eram idênticos, exceto por um detalhe notável: na tela, o Sol parecia estar brilhando, e na vida real, não.

As Olimpíadas parecem diferentes de perto. A televisão não só tem um jeito de enquadrar e editar as ações, como também de acrescentar brilho e luminosidade. Os quadros exuberantes e imaculados mostrados pela NBC e outros canais são como rostos cuidadosamente maquiados. Eles parecem incríveis, mas escondem toda a singularidade, toda a textura.

Como é de fato estar aqui? A resposta é: esquisito, às vezes enlouquecedor, possivelmente perigoso e muitas vezes hilário.

Em primeiro lugar, a segurança. Houve muita ansiedade a respeito da criminalidade à medida que esses Jogos Olímpicos foram se aproximando, e houve relatos de roubos desde que os atletas chegaram. O que agora ficou claro é que o Rio é o lugar perigoso mais seguro que você pode visitar. Não há nenhuma sensação de ameaça quando você anda pelas ruas daqui, até que você anda pelas ruas com alguém do Rio.

Nesse momento, você descobre que está cercado por um leque aterrorizante de perigos, inclusive assaltantes munidos de facas. As praias de Copacabana parecem um paraíso de roupas de banho minimalistas. Então contam para você sobre os pivetes muito novinhos que de vez em quando invadem as areias e roubam tudo que não estiver escondido ou pregado no chão.

Ah, e aqueles simpáticos motoristas de táxi que têm transportado você de lá para cá? Alguns deles vão pegar seus R$50 e afirmar que eram R$5, então pode passar o resto do pagamento. Até mesmo algumas das máquinas são larápias. Os locais juram ter encontrado caixas eletrônicos que dizem ter soltado dinheiro, mas na verdade não entregaram nada.

Quanto menos você conversar com cariocas, como os nativos do Rio são chamados, mais você vai gostar deste lugar. O Estádio da Lagoa, onde as provas de remo estão sendo realizadas, está localizado perto do Leblon, uma das partes mais nobres da cidade. À sua volta, você só vê montanhas exóticas que se projetam para os céus. Parece um cenário de filme. Até que um local aponta para um prédio branco imenso e um tanto caído, a alguns quarteirões de distância, e explica que é um conjunto habitacional onde gangues de traficantes rivais às vezes lançam granadas caseiras umas contra as outras.

Como, aquele prédio ali?

“Bem ali”, diz um carioca. “Às vezes eles atiram uns nos outros no meio da rua, quando as crianças estão voltando da escola.”

A sensação geral de medo e perigo parece ter alcançado os torcedores antes mesmo de eles chegarem aqui. Um senhor de seus 50 e poucos anos, que estava saindo da Lagoa junto com sua mulher e alguns amigos, disse que deixou sua aliança de casamento em casa, só para garantir: “Pela primeira vez em 27 anos, não estou usando”, ele disse mostrando sua mão esquerda.

E todas as pessoas em seu pequeno grupo haviam decidido guardar sua grande reserva de dinheiro nas meias e uma pequena reserva nos bolsos.

7.ago.2016 - Visitantes do Parque Olímpico, no Rio de Janeiro; apenas 15% dos cartazes promocionais foram entregues a tempo da abertura dos jogos - James Hill/The New York Times - James Hill/The New York Times
Visitantes do Parque Olímpico; apenas 15% dos cartazes promocionais foram entregues a tempo da abertura dos jogos
Imagem: James Hill/The New York Times

Há cerca de 85 mil soldados a postos em toda a cidade, incluindo vários deles nas instalações olímpicas. Alguns deles carregam armas e mantêm os dedos no gatilho, do mesmo jeito que você vê guardas vigiando uma entrega de dinheiro perto de um carro blindado da Brinks. Alguns dos soldados andam em caminhões de transporte de tropas verde-escuros, associados a invasões em zonas de guerra.

A exibição de toda essa força só é reconfortante às vezes. A abundância de armas assumiu um aspecto assustador no sábado, quando uma bala de calibre grosso aterrissou na tenda da imprensa no Centro de Hipismo logo depois que jornalistas ouviram um estampido. Aparentemente foi um tiro dado a partir da favela, contra um dirigível da polícia usado para a segurança.

Em uma coletiva de imprensa, um porta-voz para os Jogos descreveu o episódio como um “acontecimento infeliz” e ressaltou que “todas as vidas são importantes, seja de cavalos, de cães ou de pessoas”.

Um desafio logístico

Embora pela TV eles pareçam uma série de competições esportivas, os Jogos Olímpicos vistos de perto são o desafio logístico mais intimidante do universo. Quanto mais você vê deles, mais maluco parece que alguém queira voluntariamente assumir sua realização.

Para conseguir torná-los realidade é preciso criar uma cidadezinha em cima de uma cidade já existente, um reino com uma vida de três semanas com uma demanda imensa de comida, água e eletricidade, além de sistemas de transporte, remoção de lixo, bilheteria, gerenciamento de inúmeros funcionários e voluntários, e por aí vai.

É o quebra-cabeça mais complicado para um planejador de eventos, e a forma como cada país o resolve de certa forma reflete seu caráter nacional. Em Sochi, na Rússia, os Jogos tiveram uma estranha combinação de incompetência (alojamentos construídos de forma capenga e não terminados, por exemplo) e organização (transportes pontuais), o que é exatamente o que se espera de um regime autocrático infestado pela corrupção.

O Brasil se sai melhor no ranking da corrupção da World Democracy Audit, estando na 65ª posição enquanto a Rússia ocupa o 105º lugar (http://www.worldaudit.org/corruption.htm), mas ele não conta com um valentão de torso largo como Vladimir Putin para instilar o tipo de medo que força resultados. Em vez disso o país possui uma democracia, ainda que uma com 60% de seus parlamentares com problemas na Justiça atualmente.

O que quer que esteja motivando os funcionários da Olimpíada aqui não é medo. O clima é meio descontraído. Um repórter britânico que tentava chegar até seu hotel a partir de Deodoro, o centro de eventos na zona oeste, perguntou a uma voluntária das Olimpíadas segurando uma prancheta: “Quando a van vai chegar?”

“Em dez minutos,” ela disse.

“Faz uma hora que você está dizendo isso,” ele rebateu, revirando os olhos.

Às vezes essas Olimpíadas parecem uma receita elaborada onde alguns dos ingredientes principais estão faltando. Vamos falar sobre a sinalização. Não são só as traduções mal-feitas. (Uma lista de itens proibidos em um controle de segurança inclui uma proibição a “white weapons”. N.T.: o certo seria “cold weapons” para “armas brancas”). O que é estranho é a curiosa ausência de sinalizações básicas indicando direções, que acrescentou graus de dificuldade na orientação que me parecem totalmente desnecessários.

Como os ônibus, por exemplo. Eles são um meio essencial de transporte, mas nos primeiros dias havia pontos praticamente sem sinalização, exceto por um poste verde.

Filas enormes para entrar no Parque Olímpico - Geraldo Bubniak/AGB - Geraldo Bubniak/AGB
Filas enormes para entrar no Parque Olímpico
Imagem: Geraldo Bubniak/AGB

Não só isso, faltam sinalizações que simplesmente celebrem a presença dos Jogos. Uma cidade anfitriã geralmente fica tomada por bandeirolas e faixas nas ruas, tornando impossível andar um quarteirão sem lembrar que as Olimpíadas estão na cidade. No Rio, só 15% dos cartazes promocionais foram entregues a tempo da cerimônia de abertura, de acordo com os organizadores, que convocaram uma reunião de emergência com o fornecedor.

Além disso, você encontra muitos lugares com uma falta absurda de funcionários. De fato, até que algumas lembranças esportivas indeléveis sejam evocadas, uma imagem apropriada para marcar os jogos do Rio seria o tanto de pessoas passando mal de calor nas filas. 

Houve filas de 90 minutos para entrar nos locais dos eventos e filas para comprar comida tão longas que os organizadores anunciaram que aumentariam em dez vezes o número de funcionários, e tiraram do cardápio alguns itens que supostamente estariam entravando o serviço.

Na noite de domingo, a fila para entrar na megastore do Parque Olímpico, onde você pode comprar produtos com a marca das Olimpíadas, era tão longa que era difícil de ver onde ela começava.

Singularidade

Toda Olimpíada tem sua própria singularidade, mas captar a do Rio será difícil porque os eventos estão sendo realizados em lugares muito diferentes entre si. O vôlei de praia está sendo disputado em Copacabana, um bairro densamente povoado e que foi badalado por décadas. As provas de atletismo, uma atração popular dos Jogos Olímpicos, serão realizadas no Estádio Olímpico no Engenho de Dentro, cerca de 20 km a noroeste.

O Parque Olímpico em si não fica perto de nada disso, sendo que ele deveria ser o coração dos Jogos. Ele fica em uma área na zona oeste conhecida como Barra da Tijuca, um subúrbio relativamente novo para os ricos, uma região repleta de prédios residenciais genéricos e shopping centers. (Nova York é o tema de um dos maiores shoppings, que tem uma enorme réplica da Estátua da Liberdade).

Além disso há as concessionárias de carros para cada modelo que você pode imaginar, alguns deles até esquecidos. O que faz sentido, uma vez que este lugar não foi feito para se andar.

O parque em si é uma vastidão árida de asfalto. Em Jogos Olímpicos anteriores, os organizadores melhoraram seus parques olímpicos com entretenimento, esculturas ou bancos. Aqui, não. Este é um lugar para se ir do ponto A ao ponto B sem se preocupar em ir parar no ponto C. Há lugares para se comprar comida, algumas mesas, um McDonald’s que vende sorvete e a megastore. No meio, há o estúdio da Globo, a gigante da mídia brasileira. E só.

Em compensação, quando você sai da arena de vôlei de praia em Copacabana, encontra uma vida urbana rica e alegre. Homens vendendo caipirinhas, o drink nacional; uma mulher vestida de mímica, soprando bolhas enormes com um balde e barbante; um cara aceitando apostas de qualquer um que pense que ele pode chutar uma bola de futebol sobre duas garrafas cuidadosamente posicionadas. (Assim como um joão-bobo, essas garrafas balançaram mas nunca caíram). Pregadores distribuíam a Bíblia.

O Copacabana Palace, que fica praticamente em frente à arena de vôlei, ofereceu um show high-tech no qual borboletas pareciam flutuar na sua fachada, com suas asas retratando as bandeiras de diferentes países, enquanto uma versão moderna de Vivaldi saía de enormes alto-falantes do outro lado da rua. Isso por um breve momento paralisou todas as pessoas que passavam, que, boquiabertas, aplaudiram quando o show acabou.

Faixas olímpicas provocam caos no trânsito do Rio pelo 2º dia consecutivo - Marcelo D. Sants/Framephoto - Marcelo D. Sants/Framephoto
Faixas olímpicas provocam caos no trânsito do Rio
Imagem: Marcelo D. Sants/Framephoto

O Rio não é o primeiro anfitrião de Olimpíadas a espalhar os locais dos eventos pela cidade. Mas é o primeiro a colocar uma dessas instalações em um lugar com gente demais e outra em um lugar sem ninguém. A menos que consertem o problema do transporte, essa pode ser a primeira Olimpíada onde você simplesmente não consegue chegar aonde precisa dentro de um período de tempo minimamente razoável. Agora mesmo, o aplicativo de transportes para os jogos do Rio está dizendo aos usuários que se eles quiserem ir de Copacabana até o Centro de Hipismo, a cerca de 40km de distância, terão de enfrentar um trajeto de duas horas.

Mas a Olimpíada é como um organismo vivo, ou seja, ele aprende. A mesma viagem poderá levar metade desse tempo daqui a alguns dias.

Quanto aos locais dos eventos, nenhum deles parece opulento. Não há nenhum destaque de arquitetos estrelados, como o Ninho de Pássaro de Pequim. Essa é a Olimpíada do mínimo suficiente. Você vê vários andaimes por aí, inclusive na entrada do Parque Olímpico. É como se os organizadores não quisessem ofender os sentimentos dos brasileiros que já estão irritados com o preço desse show, de muitos bilhões de dólares.

As poucas sinalizações anunciando a Olimpíada que você consegue ver trazem o lema “Um Novo Mundo”. É uma frase infeliz, considerando que o novo mundo em questão era o Brasil efervescente e em expansão econômica que conquistou o direito de sediar os Jogos em 2009, um lugar onde o PIB havia dobrado em uma década. A última versão do novo mundo do país é tanto de pânico quanto de recessão.

Isso daria aos cariocas muitos motivos para ficarem furiosos, já que boa parte do declínio econômico da nação pode ser atribuída às manobras de autoridades estatais. Mas os habitantes locais que você conhece aqui parecem ansiosos por conversar e felizes por você estar aqui.

Talvez se eles soubessem do rumo que sua economia estava tomando alguns anos atrás, eles tivessem cancelado essa festa. Mas já que o mundo todo está de visita, os cariocas querem que todos saiam com uma boa impressão.

“Temos muito orgulho do nosso país”, disse uma mulher que jantava em um restaurante por quilo no domingo. “Queremos que as pessoas vejam isso.”

Ela disse que a maioria de seus amigos recebeu três semanas de férias, para que eles pudessem ficar em casa e manter as ruas com o mínimo de trânsito possível. Esse não foi exatamente um sacrifício, mas pistas exclusivas para a Olimpíada foram criadas em toda a cidade, para ajudar os atletas e a imprensa a se deslocarem pelas ruas já saturadas do Rio, o que acabou transformando as pistas não-olímpicas em atoleiros.

Além disso, os efetivos policiais ficaram concentrados nos Jogos, o que inevitavelmente levou a uma elevação na criminalidade em áreas que não estão perto dos eventos.

Mais engarrafamentos e aumento na criminalidade são de fato sacrifícios, e um dos motivos pelos quais falar mal da sinalização, dos ônibus e do trânsito parece quase rude. Custou muito aos brasileiros nos propiciar esta festa, então o mínimo que podemos fazer é apreciá-la.