Uso medicinal de cannabis não é "invenção de maconheiros"
Em março, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) reeditou o anexo da Lei Antidrogas, que classifica as substâncias controladas ou proibidas no país. A medida introduziu adendos que autorizam a prescrição e a importação de produtos de Cannabis sativa que contenham THC (Tetrahidrocannabinol), seu componente psicotrópico. Obedecendo a uma determinação judicial, a agência alterou sua portaria após ação do Ministério Público do Distrito Federal, mas promete recorrer da decisão.
Ao contrário de seu pressuposto institucional, a Anvisa trabalha contra o bem da saúde pública brasileira e da nossa economia. Explico por que com uma breve história e uma contextualização internacional do tema.
No início da década de 1960, o químico Raphael Mechoulam foi a uma delegacia de Jerusalém. Saiu de lá com uma doação de cinco quilos de haxixe, uma resina produzida pela cannabis. Voltou de ônibus direto para o seu laboratório com a droga na mochila e sob o olhar curioso de outros passageiros que sentiam o forte odor. O haxixe seria a matéria-prima de sua tese de doutorado, cuja proposta era identificar o princípio ativo da cannabis.
O cientista me contou essa história por telefone, em 2014, quando eram comemorados os 50 anos da descoberta do THC. Ao longo de cinco décadas de investigação, Mechoulam fez a Cannabis sativa repetir, metaforicamente, aquela improvável viagem de ônibus do departamento de polícia para o das ciências da saúde.
Raphael Mechoulam é considerado o pai da ciência canabinoide. Suas pesquisas levaram à descoberta do sistema endocanabinoide, um conjunto de neurotransmissores que é fundamental para a regulação do sono, do humor, da dor e de outros processos fisiológicos.
No mundo inteiro, cientistas percebem que estão diante de algo que pode dar novo impulso à medicina. Inclusive, o número de estudos publicados sobre o tema aumentou consideravelmente nos últimos 20 anos –de 9, em 1995, para 359, em 2015.
Conto essa história para mostrar que o uso medicinal da cannabis não é uma “invenção de maconheiros”, como alegam seus detratores. É muito mais uma vanguarda científica. Ainda que não existam estudos clínicos suficientes para uma aplicação irrestrita de todo seu potencial terapêutico, sobram estudos que justifiquem tanto o seu uso em determinadas situações como maiores investimentos em pesquisas.
Em vez disso, autoridades e médicos alegam que a maconha não é remédio e que apenas alguns de seus compostos podem ajudar pacientes com raras enfermidades. Dizem que o THC não deveria ser usado como remédio por “dar barato” e porque causa dependência. Falácias.
Em Israel, onde o Ministério da Saúde mantém um programa de cannabis medicinal que atende mais de 15 mil pacientes, pessoas com câncer inalam vapores das flores da planta –a maconha em si– para tratar náuseas e vômitos causados pela quimioterapia. Na Holanda, outro país com um programa federal de cannabis, cerca de cinco mil pacientes usam Cannabis flos (maconha in natura). Lá, os pacientes compram a droga na farmácia e são reembolsados por seus planos de saúde. Um estudo mostra que 53% deles recorrem ao tratamento para aliviar dores crônicas.
Estudos mostram que o THC é o componente fundamental para o alívio dos sintomas dessas doenças. Essa substância pode ser obtida diretamente a partir de chás ou da inalação de vapores da planta. Portanto, a maconha é remédio sim, isso precisa ser dito. Quando, em março, a imprensa falou sobre a reedição da portaria da Anvisa, as reportagens dos principais jornais e emissoras de TV não explicaram por que se reivindica o uso terapêutico do THC. Isso revela uma grande resistência em admitir que ele, de fato, pode ajudar muitas pessoas com doenças nada raras.
Temos cerca de 600 mil novos casos de câncer por ano e, aproximadamente, 40% da população brasileira sofre com dores crônicas em algum momento da vida. Boa parte dessas pessoas poderia ter alívio com a cannabis medicinal.
Já o argumento de que o THC é um psicotrópico que causa dependência é no mínimo desonesto. Afinal, o fato de uma substância ter essas características nunca foi impedimento para seu uso terapêutico –vide a febre nacional de Rivotril. E vale lembrar que falamos de pacientes crônicos e, em muitos casos, terminais.
País nega vocação agrícola
Voltando à liminar concedida em março, o juiz que julgou a ação do MP não deixou claro se atendeu ao pedido de autorização da importação de sementes e de cultivo com fins medicinais. Assim, a medida é importante simbolicamente, porque se reconhece a utilidade terapêutica do THC pela primeira vez no país. Porém, ela é inócua na prática, porque as convenções internacionais impedem a exportação de produtos com essa substância.
Com uma autorização para o cultivo, milhares de pacientes seriam, automaticamente, beneficiados e com custos baixíssimos. Sem ela, essas pessoas dificilmente terão acesso à terapia, pois, mesmo que possam lidar com a burocracia e com os altos custos desse procedimento, elas não têm de quem importar. Enquanto nem a Anvisa nem o Poder Legislativo enfrentam o tema, o Brasil repete a sua vocação de ser colônia e nega a sua vocação agrícola ao importar produtos que poderiam ser produzidos por aqui sem dificuldades.
Na Alemanha, maior economia da Europa, o Executivo já editou um decreto para regulamentar o cultivo nacional de maconha para fins medicinais. No Chile, o governo já produz, fornece e pesquisa o uso da cannabis medicinal. No México, diversos projetos de lei tramitam para regulamentar a matéria. Na Colômbia, já foi publicado um decreto para investir na cannabis medicinal, inclusive com vistas à exportação. Estão de olho no Brasil. Vamos acabar comprando dos nossos vizinhos?
Por todas essas razões, não podemos mais adiar a criação de uma regulamentação ampla e específica para se produzir cannabis com fins terapêuticos e para garantir o acesso dessa terapia à população. Enquanto isso não existir, estaremos insistindo no atraso e negando a milhares de pacientes seu direito constitucional à saúde.
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