Não desconheço minha "imensa responsabilidade", diz Celso de Mello; leia a íntegra
Em um voto longo, de mais de duas horas de duração, o ministro Celso de Mello, do STF (Supremo Tribunal Federal), votou pelo acolhimento dos embargos infringentes, recursos que dão direito a réus com condenações apertadas terem direito a novo julgamento na Corte.
leia a íntegra do voto do decano:
O encerramento da sessão do dia 12 de setembro, quinta?feira, independentemente da causa que o motivou, teve, para mim, Senhor Presidente, um efeito virtuoso, pois me permitiu aprofundar, ainda mais, a minha convicção em torno do litígio ora em exame e que por mim fora exposta no voto que redigira – e que já se achava pronto – para ser proferido na semana passada.
Impõe?se registrar, ainda, Senhor Presidente, um significativo evento na nossa história constitucional vinculado, por uma feliz coincidência
de datas, a este julgamento, pois, como sesabe, há exatos 67 (sessenta e sete) anos, precisamente no dia 18 de setembro de 1946, também uma
quarta?feira, foi promulgada, na cidade do Rio de Janeiro, então Capital Federal, a Constituição de 1946, que restaurou a liberdade em nosso País e
que dissolveu a ordem autocrática fundada no regime político do Estado Novo, que considerava culpados, desde logo, os réus meramente acusados
de determinados delitos,fazendo recair sobre eles, em preceito compatível com a índole ditatorial do modelo então instituído, o ônus de comprovar a própria inocência.
Em consequência desse significativo evento, o Supremo Tribunal Federal, logo após esse ato de promulgação,reuniu-se para a sua primeira sessão de julgamento, agora sob a égide de uma ordem qualificada, no plano político?jurídico, pelo signo da legitimidade democrática.
Na ocasião, o Ministro JOSÉ LINHARES, então Presidente do Supremo Tribunal Federal, assim se pronunciou, saudando, em nome desta Corte Suprema, o surgimento de um novo tempo: “Antes de mais nada sejam as minhas primeiras palavras de congratulações com os ilustres colegas pela promulgação da nova Constituição, fato que vem de assinalar um marco destacado na vida jurídica do País.
Depois de termos atravessado uma longa estrada sombria, de indecisões e incertezas de um período ditatorial,é com grande alegria que o país readquire o seu poder de Nação livre regido por normas puramente democráticas.
Só a ordem jurídica constrói e fortalece as instituições sem o que a vida e os direitos de cada um ficam à mercê da vontade ou do arbítrio de quem por acaso detém o poder.
A hora presente é de regozijo nacional, principalmente para a Justiça com o restabelecimento de sua autoridade e independência tão necessárias ao exercício da sua nobre missão.
A Carta Magna foi promulgada sob a proteção de Deus e com ela confio em que possamos, no cumprimento do dever sagrado, interpretá-la e dar execução aos seus preceitos sob a inspiração dos sentimentos da mais pura justiça.”
Note-se, portanto, senhor presidente, a observação com que o eminentíssimo antecessor de Vossa Excelência na Presidência do Supremo Tribunal Federal, o Ministro JOSÉ LINHARES, enfatizou a importância e o alto significado da supremacia do Direito, da “rule of law”, na prática
jurisdicional desta Corte e no respeito incondicional às liberdades fundamentais.
Essencial, por isso mesmo, Senhor Presidente, que esta Suprema Corte sempre observe, em relação a qualquer acusado, independentemente do
crime a ele atribuído e qualquer que seja a sua condição política, social, funcional ou econômica, os parâmetros jurídicos que regem, em nosso sistema legal, os procedimentos de índole penal, garantindo às partes, de modo pleno, o direito a um julgamento justo, imparcial, impessoal, isento e
independente.
Atento a tais ponderações, ressalto que a profunda divisão do Supremo Tribunal Federal no exame da matéria ora em análise põe em evidência, ainda mais por se tratar de processo penal de índole condenatória, a altíssima relevância da questão jurídica em julgamento, especialmente se considerarmos, como efetivamente considero, a densidade e a excelência dos votos – de todos os votos – proferidos pelos eminentes Juízes desta Corte Suprema.
Não desconheço, por isso mesmo, a imensa responsabilidade que me incumbe, como Juiz do Supremo Tribunal Federal, na definição da
controvérsia ora em análise. Sabemos todos, Senhor Presidente, que a Constituição da República de 1988, passados quase 25 anos de sua promulgação, atribuiu ao Supremo Tribunal Federal um papel de imenso relevo no aperfeiçoamento das instituições democráticas e na afirmação dos princípios sob cuja égide floresce o espírito virtuoso que anima e informa a ideia de República.
O novo Estado constitucional brasileiro, fundado em bases genuinamente democráticas e plenamente legitimado pelo consenso dos governados, concebeu a Suprema Corte de nosso País – que sempre se caracterizou como solo historicamente fértil em que germinou e se desenvolveu a semente da liberdade – como verdadeiro espaço de defesa e proteção das franquias individuais e coletivas, além de representar, em sua atuação institucional como órgão de cúpula do Poder Judiciário nacional, um veto permanente e severo ao abuso de autoridade, à corrupção do poder, à prepotência dos governantes e ao desvio e deformação da ideia de Estado democrático de direito.
Se é certo, portanto, Senhor Presidente, que esta Suprema Corte constitui, por excelência, um espaço de proteção e defesa das liberdades fundamentais, não é menos exato que os julgamentos do Supremo Tribunal Federal, para que sejam imparciais, isentos e independentes, não podem expor-se a pressões externas, como aquelas resultantes do clamor popular e da pressão das multidões, sob pena de completa subversão do regime
constitucional dos direitos e garantias individuais e de aniquilação de inestimáveis prerrogativas essenciais que a ordem jurídica assegura a qualquer
réu mediante instauração, em juízo, do devido processo penal.
A questão da legitimidade do Poder Judiciário e do exercício independente da atividade jurisdicional foi bem analisada em brilhante artigo da lavra do eminente Juiz Federal PAULO MÁRIO CANABARRO T. NETO, que examinou o tema na perspectiva das manifestações populares e da opinião pública, sustentando, com razão, que “a legitimidade do Poder Judiciário não repousa na coincidência das decisões judiciais com a vontade de maiorias contingentes, mas na aplicação do direito sob critérios de correção jurídica, conforme as regras do discurso racional” (grifei).
Assim como a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem entendido qualificar?se como abusiva e ilegal a utilização do clamor público como fundamento da prisão preventiva, esse ilustre magistrado federal, no trabalho que venho de referir, também põe em destaque o aspecto relevantíssimo de que o processo decisório deve ocorrer em “ambiente institucional que valorize a racionalidade jurídica”, acentuando, ainda, com apoio no magistério de ROBERT ALEXY, o que se segue: “A questão da legitimidade do Poder Judiciário surge sempre que se pergunta sobre o alcance da norma constitucional expressa no enunciado de que ‘todo poder emana do povo, que o exerce por meio de seus representantes eleitos ou diretamente’ (art. 1º, parágrafo único). Se o poder judicial não é exercido pelo povo ‘diretamente’, nem por meio de ‘representantes eleitos’, impõe-se investigar o que torna justificável a aceitação das decisões dos juízes por parte da cidadania.
A única possibilidade de conciliar a jurisdição com a democracia consisteem compreendê-la também como representação do povo. Não se trata, obviamente, de um mandato outorgado por meio do sufrágio popular, mas de uma representação ideal que se dá no plano discursivo, é dizer, uma ‘representação argumentativa’. Essa representação argumentativa é exercida não no campo das escolhas políticas – cujas deliberações versam (predominantemente) sobre o que é bom, conveniente ou oportuno –, mas no campo da aplicação do direito, sob as regras do discurso racional por meio do qual se sustenta e se declara o que é correto, válido ou devido.”
O que mais importa, neste julgamento sobre a admissibilidade dos embargos infringentes, é a preservação do compromisso institucional desta
Corte Suprema com o respeito incondicional às diretrizes que pautam o “devido processo penal” e que compõem, por efeito de sua natural vocação
protetiva, o próprio “estatuto constitucional do direito de defesa”, que representa, no contexto de sua evolução histórica, uma prerrogativa
inestimável de que ninguém pode ser privado, ainda que se revele antagônico o sentimento da coletividade!
O dever de proteção das liberdades fundamentais dos réus, de qualquer réu, representa encargo constitucional de que este Supremo
Tribunal Federal não pode demitir?se, mesmo que o clamor popular se manifeste contrariamente, sob pena de frustração de conquistas históricas
que culminaram, após séculos de lutas e reivindicações do próprio povo, na consagração de que o processo penal traduz instrumento garantidor de
que a reação do Estado à prática criminosa jamais poderá constituir reação instintiva, arbitrária, injusta ou irracional.
Na realidade, a resposta do poder público ao fenômeno criminoso, resposta essa que não pode manifestar-se de modo cego e instintivo, há de
ser uma reação pautada por regras que viabilizem a instauração, perante juízes isentos, imparciais e independentes, de um processo que neutralize
as paixões exacerbadas das multidões, em ordem a que prevaleça, no âmbito de qualquer persecução penal movida pelo Estado, aquela velha (e
clássica) definição aristotélica de que o Direito há de ser compreendido em sua dimensão racional, da razão desprovida de paixão!
Nesse sentido, o processo penal representa uma fundamental garantia instrumental de qualquer réu, em cujo favor – é o que impõe a própria Constituição da República – devem ser assegurados todos os meios e recursos inerentes à defesa, sob pena de nulidade radical dos atos de persecução estatal.
O processo penal figura, desse modo, como exigência constitucional (“nulla poena sine judicio”) destinada a limitar e a impor contenção à vontade do Estado e à de qualquer outro protagonista formalmente alheio à própria causa penal.
O processo penal e os Tribunais, nesse contexto, são, por excelência, espaços institucionalizados de defesa e proteção dos réus contra
eventuais excessos da maioria, ao menos, Senhor Presidente, enquanto este Supremo Tribunal Federal, sempre fiel e atento aos postulados que
regem a ordem democrática, puder julgar, de modo independente e imune a indevidas pressões externas, as causas submetidas ao seu exame e decisão.
É por isso que o tema da preservação e do reconhecimento dos direitos fundamentais daqueles que sofrem persecução penal por parte do
Estado deve compor, por tratar-se de questão impregnada do mais alto relevo, a agenda permanente desta Corte Suprema, incumbida, por efeito de
sua destinação institucional, de velar pela supremacia da Constituição e de zelar pelo respeito aos direitos que encontram fundamento legitimador
no próprio estatuto constitucional e nas leis da República.
Com efeito, a necessidade de outorgar?se, em nosso sistema jurídico, proteção judicial efetiva à cláusula do “due process of law” qualifica-se, na
verdade, como fundamento imprescindível à plena legitimação material do Estado democrático de direito.
Nesse contexto, e jamais deixando de reconhecer que todos os cidadãos da República têm direito à livre expressão de suas ideias e pensamentos,
6torna?se necessário advertir que, sem prejuízo da ampla liberdade de crítica que a todos é garantida por nosso ordenamento jurídico?normativo,
os julgamentos do Poder Judiciário, proferidos em ambiente de serenidade, não podem deixar-se contaminar, qualquer que seja o sentido pretendido, por
juízos paralelos resultantes de manifestações da opinião pública que objetivem condicionar o pronunciamento de magistrados e tribunais, pois, se tal pudesse ocorrer, estar?se?ia a negar, a qualquer acusado em processos criminais, o direito fundamental a um julgamento justo, o que constituiria manifesta ofensa não só ao que proclama a própria Constituição, mas, também, ao que garantem os tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil ou aos quais o Brasil aderiu.
De outro lado, Senhor Presidente, não constitui demasia rememorar antiga advertência, que ainda guarda permanente atualidade, de JOÃO
MENDES DEALMEIDAJÚNIOR, ilustre Professor das Arcadas e eminente Juiz deste Supremo Tribunal Federal, no sentido de que a persecução penal, que se rege por estritos padrões normativos, traduz atividade necessariamente subordinada a limitações de ordem jurídica, tanto de natureza legal quanto de ordem constitucional, que restringem o poder do Estado, a significar, desse modo, tal como enfatiza aquele Mestre da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, que o processo penal só pode ser concebido – e assim deve ser visto – como instrumento de salvaguarda da liberdade jurídica do réu.
É por essa razão que o processo penal condenatório não constitui instrumento de arbítrio do Estado. Ao contrário, ele representa poderoso
meio de contenção e de delimitação dos poderes de que dispõem os órgãos incumbidos da persecução penal. Não exagero ao ressaltar a decisiva
importância do processo penal no contexto das liberdades públicas, pois – insista-se – o Estado, ao delinear um círculo de proteção em torno da
pessoa do réu, faz do processo penal um instrumento que inibe a opressão judicial e o abuso de poder.
Daí, Senhor Presidente, a corretíssima observação do eminente Professor ROGÉRIO LAURIA TUCCI (“Direitos e Garantias Individuais no Processo Penal Brasileiro”, p. 33/35, item n. 1.4, 2ª ed., 2004, RT), no sentido de que o processo penal há de ser analisado em sua precípua condição de “instrumento de preservação da liberdade jurídica do acusado em geral”, tal como entende, também em preciso magistério, o Professor HÉLIO TORNAGHI (“Instituições de Processo Penal”, vol. 1/75, 2ª ed., 1977, Saraiva), cuja lição bem destaca a função tutelar do processo penal: “A lei processual protege os que são acusados da prática de infrações penais, impondo normas que devem ser seguidas nos processos contra eles instaurados e impedindo que
eles sejam entregues ao arbítrio das autoridades processantes.”
Nesse contexto, Senhor Presidente, é de registrar-se – e acentuar-se – o decisivo papel que desempenha, no âmbito do processo penal
condenatório, a garantia constitucional do devido processo legal, cuja fiel observância condiciona a legitimidade jurídica dos atos e resoluções
emanados do Estado e,em particular, das decisões de seu Poder Judiciário.
O magistério da doutrina, por sua vez, ao examinar a garantia constitucional do “due process of law”, nela identifica, no queserefere ao seu
conteúdo material, alguns elementos essenciais à sua própria configuração, dentre os quais avultam, por sua inquestionável importância,
as seguintes prerrogativas: (a) direito ao processo (garantia de acesso ao PoderJudiciário); (b) direito à citação e ao conhecimento prévio do teor da
acusação; (c) direito a um julgamento público e célere, sem dilações indevidas; (d) direito ao contraditório e à plenitude de defesa (direito à
autodefesa e à defesa técnica); (e) direito de não ser processado e julgado com base em leis “ex post facto”; (f) direito à igualdade entre as partes;
(g) direito de não ser processado com fundamento em provas revestidas de ilicitude; (h) direito ao benefício da gratuidade; (i) direito à
observância do princípio do juiz natural; (j) direito ao silêncio (privilégio contra a autoincriminação); (l) direito à prova; e (m) direito ao recurso.
Vê-se, daí, na abordagem tradicional do tema, que o direito ao recurso qualifica-se como prerrogativa jurídica intimamente vinculada ao direito do
8interessado à observância e ao respeito, pelo Poder Público, da fórmula inerente ao “due process of law”, consoante adverte expressivo magistério
doutrinário, valendo observar, ainda, que alguns autores situam o direito de recorrer na perspectiva da Convenção Americana de Direitos Humanos, como o faz GERALDO PRADO, ou, até mesmo, invocam, como suporte dessa prerrogativa fundamental, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, a que o Brasil aderiu em 1992 (ANDRÉ NICOLITT, “Manual de Processo Penal”, p. 42/44, item n. 3.7.5, 2ª ed., 2010, Campus Jurídico).
Esses, portanto, Senhor Presidente, são o contexto normativo e as premissas que orientarão o meu voto a ser proferido em torno da controvérsia pertinente à subsistência, ou não, dos embargos infringentes nos processos penais originários instaurados perante esta Corte, na forma instituída e regulada no inciso I do art. 333 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal.
Entendo, bem por isso, Senhor Presidente, assentadas as premissas que venho de referir, mostrar-se de fundamental importância
proclamar, sempre, que nada se perde quando se respeitam e se cumprem as leis e a Constituição da República, pois, como não se pode desconhecer, tudo se tem a perder quando a Constituição e as leis são transgredidas e desconsideradas por qualquer dos Poderes do Estado.
9Antes de pronunciar?me, Senhor Presidente,sobre a questão pertinente à admissibilidade, ou não, dos embargos infringentes, entendo necessário
relembrar, até mesmo para o específico efeito de explicitar o alcance do julgamento que se está a realizar, que a teoria geral dos recursos, ao tratar
da utilização do sistema recursal, destaca a existência de 02 (dois) momentos distintos referentes a qualquer recurso (ordinário ou
extraordinário) que venha a ser interposto.
No contexto dessa ordem ritual, o primeiro momento a ser considerado impõe ao Poder Judiciário a formulação de um juízo prévio
(positivo ou negativo) de admissibilidade da espécie recursal utilizada, que constitui, precisamente, a fase que ora se examina neste caso. Prematuro
discutir, por isso mesmo, neste primeiro momento, o mérito subjacente ao recurso em questão. Uma vez admitido (e conhecido, portanto) o recurso
interposto, será ele, então, submetido a regular processamento, para, alcançada a segunda fase, poder o Tribunal examinar?lhe o pedido
central, ou seja, apreciar o mérito da causa. Torna-se claro, desse modo, que o juízo de mérito sobre a acusação criminal (a ocorrer somente em momento ulterior) nada tem a ver, na presente fase processual, com o juízo (meramente preliminar) de admissibilidade do recurso.
Somente após superado, positivamente, esse estágio inicial, em que se analisam, tão somente, os pressupostos recursais (objetivos e subjetivos), é
que se examinará, uma vez ouvida a parte contrária (o Ministério Público, no caso), o fundo da controvérsia penal, vale dizer, o próprio mérito do
recurso!
O Supremo Tribunal Federal, neste instante, ainda se acha no primeiro momento, ou seja, ainda examina se o recurso interposto é
cabível ou não! Essa, pois, é a questão a ser resolvida. Sob tal perspectiva, e adstringindo-me ao contexto normativo ora em exame, tenho para mim, Senhor Presidente, na linha do voto que proferi, 10em 02/08/2012, no julgamento de questão de ordem que havia sido então suscitada pelo eminente Revisor desta causa, que ainda subsistem, no âmbito do Supremo Tribunal Federal, nas ações penais originárias, os embargos infringentes a que se refere o art. 333, inciso I, do Regimento Interno desta Corte, que não sofreu, no ponto, derrogação tácita ou
indireta em decorrência da superveniente edição da Lei nº 8.038/90, que se limitou a dispor sobre normas meramente procedimentais concernentes às
causas penais originárias, indicando-lhes a ordem ritual e regendo-as até o encerramento da instrução probatória, inclusive, para, a partir daí,
submeter o julgamento ao domínio regimental, abstendo?se, no entanto, em silêncio eloquente, típico de lacunas normativas conscientes, voluntárias ou
intencionais (NORBERTO BOBBIO, “Teoria do Ordenamento Jurídico”, p. 144, 1989, Polis/Ed.UnB), de regular o sistema de recursos internos já
extensamente disciplinado em sede regimental.
Ao reconhecer a viabilidade jurídico-processual de utilização, nesta Suprema Corte, dos embargos infringentes em matéria processual penal,
salientei que a garantia da proteção judicial efetiva acha-se assegurada, nos processos penais originários instaurados perante o Supremo Tribunal
Federal, não só pela observância da cláusula do “due process of law” (com todos os consectários que dela decorrem), mas, também, pela possibilidade
que o art. 333, inciso I, do RISTF enseja aos réus, sempre que o juízo de condenação penal apresentar-se majoritário.
Referi-me,então, no voto por mim proferido, à previsão regimental de utilização, nos processos penais originários instaurados perante o Supremo
Tribunal Federal, dos “embargos infringentes”, privativos do réu, porque somente por este oponíveis a decisão “não unânime” do Plenário que tenha
julgado “procedente a ação penal”.
Cabe registrar, no ponto, que a norma inscrita no art. 333, n. I, do RISTF, embora formalmente regimental, qualifica?se como prescrição de
caráter materialmente legislativo, eis que editada pelo Supremo Tribunal Federal com base em poder normativo primário que lhe foi
expressamente conferido pela Carta Política de 1969 (art. 119, § 3º, “c”).
É preciso ter presente que a norma regimental em questão,institutiva de espécie recursal nominada, embora veiculasse matéria de natureza
processual, revelava?se legítima em face do que dispunha, então, o art. 119, § 3º, “c”, da Carta Federal de 1969 (correspondente, na Carta
Política de 1967, ao art. 115, parágrafo único, alínea “c”), que outorgava ao Supremo Tribunal Federal, como já anteriormente mencionado, poder
normativo primário, conferindo-lhe atribuição para, em sede meramente regimental, dispor sobre “o processo e o julgamento dos feitos de sua
competência originária ou recursal(...)”
Vê-se, portanto, que o Supremo Tribunal Federal, no regime constitucional anterior, dispunha, excepcionalmente, de competência para
estabelecer, ele próprio, normas de direito processual em seu regimento interno, não obstante fosse vedado aos demais Tribunais judiciários o
exercício dessa mesma prerrogativa, cuja prática – considerado o sistema institucional de divisão de poderes – incumbia, exclusivamente, ao Poder
Legislativo da União (RTJ 54/183 – RTJ 69/138, v.g.). Essa excepcional competência normativa primária permitiu ao Supremo Tribunal Federal prescrever, em sede formalmente regimental, normas de caráter materialmente legislativo (RTJ 190/1084, v.g.), legitimando?se, em consequência, a edição de regras como aquela consubstanciada no art. 333, inciso I, doRISTF.
Com a superveniência da Constituição promulgada em 1988, o
Supremo Tribunal Federal perdeu essa extraordinária atribuição
normativa, passando a submeter?se, como os demais Tribunais judiciários,
em matéria processual, ao domínio normativo da lei em sentido formal (CF,
art. 96,I, “a”).
Em virtude desse novo contexto jurídico, essencialmente fundado na
Constituição da República (1988) – que não reeditou regra com o mesmo
12conteúdo daquele preceito inscrito no art. 119, § 3º, “c”, da Carta Política
de 1969 –, veio o Congresso Nacional, mesmo tratando?se de causas
sujeitas à competência do Supremo Tribunal Federal, a dispor, uma vez
mais, em plenitude, do poder que historicamente sempre lhe coube, qual
seja, o de legislar, amplamente, sobre normas de direito processual.
E foi precisamente no exercício dessa atribuição constitucional que o
Congresso Nacional editou, com inteira validade, diplomas legislativos
como aqueles consubstanciados, por exemplo, na Lei nº 8.038/90, na
Lei nº 8.950/94 e, também, na Lei nº 9.756/98, posto que cessara, “pleno
jure”, com o advento da Constituição de 1988, a excepcional competência
normativa primária que permitira a esta Suprema Corte, sob a égide da
Carta Política de 1969 (art. 119, § 3º, “c”), prescrever normas de direito
processual relativamente às causas incluídas em sua esfera de
competência.
Não se trata, portanto, de discutir se a prescrição regimental
reveste?se de maior eficácia, ou não, que a regra legal no plano hierárquico?
?normativo, porque essa matéria há de ser analisada em função do que
estabelece a Constituição, que claramente separa e distingue dois domínios:
o da lei e o do regimento interno dos Tribunais. Vale dizer, há que se
examinar o tema à luz de dois critérios: o da reserva constitucional de lei, de
um lado, e o da reserva constitucional deregimento, de outro.
O eminente Ministro PAULO BROSSARD, em um de seus luminosos
votos proferidos neste Tribunal (ADI 1.105?MC/DF), bem equacionou o
problema resultante da tensão normativa entre a regra legal e o preceito
regimental, chamando a atenção para o fato – juridicamente relevante – de
que a existência, a validade e a eficácia de tais espécies normativas hão de
resultar do que dispuser o próprio texto constitucional:
“Em verdade, não se trata de saber se a lei prevalece sobre o
regimento ou o regimento sobre a lei. Dependendo da matéria
regulada, a prevalência será do regimento ou da lei (JOSÉ CELSO DE
MELLO FILHO, Constituição Federal Anotada, 1986, p. 368;
13RMS 14.287, ac. 14.VI.66, relator Ministro PEDRO CHAVES,
RDA 87?193; RE 67.328, ac. 15.X.69, relator Ministro AMARAL
SANTOS, RTJ 54?183; RE 72.094, ac. 6.XII.73, relator ANTONIO
NEDER, RTJ 69?138). A dificuldade surge no momento de fixar as
divisas entre o que compete ao legislador disciplinar e o que
incumbe ao tribunal dispor. O deslinde não sefaz por uma linha reta,
nítida e firme de alto a baixo; há zonas cinzentas e entrâncias e
reentrâncias a revelar que, em matéria de competência, se verificam
situações que lembram os pontos divisórios do mundo animal e
vegetal. (…).
O certo é que cada Poder tem a posse privativa de
determinadas áreas. (…).
Alega?se que a matéria é processual e por lei há de ser
regulada. A assertiva envolve um círculo vicioso: dá?se como certo o
que devia ser demonstrado. A recíproca é verdadeira. Também não
basta afirmar que o assunto é regimental para que seja regulado pelos
tribunais, com exclusão do legislador. No caso vertente, cuida?se de
saber se estava na competência do legislador interferir no ato do
julgamento ou se a Constituição o reservou ao Poder Judiciário,
mediante norma regimental. Esta a questão.
A propósito, vale reproduzir esta passagem de JOSÉ
FREDERICO MARQUES,
‘A votação dos regimentos internos é um dos
elementos da independência do Poder Judiciário, diz
PONTES DE MIRANDA, ‘porque, se assim não
acontecesse, poderiam os legisladores, com a aparência de
reorganizar a justiça, alterar a ordem dos julgamentos e
atingir a vida interna dos tribunais’. (…) O Supremo
Tribunal Federal, em julgamento memorável, firmou
essa diretriz, fulminando de inconstitucional a Lei nº
2.790, de 24 de novembro de 1956, que reformava o art.
875 do Código de Proc. Civil, para admitir que as partes
interviessem no julgamento depois de proferido o voto
do relator. Como disse, na ocasião, o ministro EDGAR
COSTA, a citada lei contrariava frontalmente ‘a
própria autonomia interna dos tribunais, no que diz
respeito à sua competência privativa para estabelecer as
14normas a seguir na marcha dosseustrabalhos, através dos
seus regimentos, que, por preceito constitucional (art. 97,
nº II), lhes cabe, livre da interferência de outros poderes’.
(…).’
Insisto no que me parece fundamental. A questão não está
em saber se o regimento contraria a lei ou se esta prevalece
sobre aquele; a questão está em saber se, dispondo como dispôs, o
legislador podia fazê?lo, isto é, se exercitava competência legítima
ou se, ao contrário, invadia competência constitucionalmente
reservada aos tribunais; da mesma forma, o cerne da questão está em
saber se o Judiciário, no exercício de sua competência legislativa, se
houve nosseuslimites ou se osexcedeu.” (grifei)
Em suma, Senhor Presidente, é a própria Constituição que delimita o
campo de incidência da atividade legislativa, vedando ao Congresso
Nacional a edição de normas que visem a disciplinar matéria que a
Constituição reservou, com exclusividade, à competência normativa dos
Tribunais.
Foi por tal razão que o Supremo Tribunal Federal, em face dessa
precisa delimitação material de competências normativas resultante da
discriminação constitucional de atribuições, julgou inconstitucionais
regras legais que transgrediram a cláusula de reserva constitucional de
regimento, por permitirem, p. ex., a sustentação oral, nos Tribunais, após o
voto do Relator (ADI 1.105/DF), em julgamento que se apoiou em antigo
precedente desta Corte, que declarara a inconstitucionalidade,
em 30/11/56, da Leifederal nº 2.970, de 24/11/56 (“LeiCastilhoCabral”).
Na realidade, a reserva constitucional de regimento transforma o texto
regimental em verdadeira “sedes materiae” no que concerne aos temas
sujeitos ao exclusivo poder de regulação normativa dos Tribunais.
Essa posição jurídica do regimento interno na veiculação
instrumental das matérias sujeitas ao estrito domínio normativo dos
Tribunais foi bem ressaltada por THEMÍSTOCLES BRANDÃO
15CAVALCANTI, que, enfatizando a impossibilidade de ingerência do Poder
Legislativo no regramento dessas mesmas questões, observou que os
órgãos do Judiciário, ao editarem os seus regimentos internos, “exercem
uma função legislativa assegurada pela Constituição,restritiva da função exercida
pelo Poder Legislativo” (“A Constituição Federal Comentada”, vol. II/312,
1948, Konfino).
A mesma visão doutrinária do tema é compartilhada por JOSÉ
FREDERICO MARQUES (“Nove Ensaios Jurídicos”, p. 83/84, 1975, Lex
Editora), que, em texto monográfico intitulado “Dos Regimentos
Internos dosTribunais”, observa:
“É que, tirando da própria Lei Maior a sua força de regra
imperativa, o regimento não está vinculado à lei formal naquilo
que constitua objeto da vida interna do Tribunal. No campo do ‘ius
scriptum’, tanto a lei como o cânon regimental ocupam a mesma
posição hierárquica. A lei não se sobrepõe ao regimento naquilo que a
este cumpre disciplinar: ‘ratione materiae’é que a Leie o Regimento se
distinguem, no plano dasfontesformais do Direito Objetivo.
Como bem explica o ministro MÁRIO GUIMARÃES, o
regimento interno, que ?é a lei interna do Tribunal?, tem por escopo
regular ?o que ocorreese processa portas a dentro?, tal como se dá com
osregulamentos do Poder Legislativo. Por isso mesmo, os tribunais
?podem legislar sobre a organização de seu trabalho, pois que
essa é matéria regimental?. E conclui:
‘Não há dizer que a lei prevalece sobre o regimento. Lei e
regimento têm órbitas distintas. Dentro desuas áreasrespectivas,
soberanos o são, respectivamente, o Legislativo e o Judiciário.’”
(grifei)
Da mesma forma, esta Suprema Corte, ao julgar a
Representação nº 1.092/DF, Rel. Min. DJACI FALCÃO, declarou
inconstitucionais determinadas prescrições constantes do Regimento
Interno do Tribunal Federal de Recursos, por entender que a
instituição, por aquela Corte judiciária, do instrumento processual da
16Reclamação, viabilizada em sede meramente regimental, ofendia a cláusula da
reserva constitucional de leiformal(RTJ 112/504?567).
A norma inscrita no art. 333, inciso I, do RISTF, contudo, embora
impregnada de natureza formalmente regimental, ostenta, desde a sua
edição, como precedentemente por mim enfatizado, o caráter de prescrição
materialmentelegislativa, considerada a regra constante do art. 119, § 3º, “c”,
da Carta Federal de 1969.
Com a superveniência da Constituição de 1988, o art. 333, n. I, do
RISTF foi recebido, pela nova ordem constitucional, com força, valor, eficácia
e autoridade de lei, o que permite conformá?lo à exigência fundada no
postulado da reserva delei.
Não se pode desconhecer, neste ponto, que se registrou, na espécie,
com o advento da Constituição de 1988, a recepção, por esse novo estatuto
político, do mencionado preceito regimental, veiculador de norma de
direito processual, que passou, a partir da vigência da nova Lei
Fundamental da República, como já assinalado, a ostentarforça, valor, eficácia
e autoridadedenorma legal, consoante tem proclamado a jurisprudência do
Supremo Tribunal Federal (RTJ 147/1010, Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI –
RTJ 151/278?279, Rel. Min. CELSO DE MELLO – RTJ 190/1084, Rel. Min.
CELSO DE MELLO).
O fenômeno da recepção, bem o sabemos, assegura a preservação do
ordenamento infraconstitucional existente antes da vigência do novo texto
fundamental, desde que com este guarde relação de estrita fidelidade no
plano jurídico?material, em ordem a garantir a prevalência da continuidade
do direito, pois, conforme decidiu o Supremo Tribunal Federal, “a
Constituição, porsisó, não prejudica a vigência dasleis anteriores(...), desde que
não conflitantes com o texto constitucional (…)” (RTJ 71/289?293).
Esta Suprema Corte, fazendo aplicação do mecanismo da recepção,
proclamou permanecerem válidas e eficazes as regras ordinárias
anteriores à Constituição, “desde que não contrastantes com os seus princípios
17e normas, ou com o seu espírito” (RTJ 77/657?659).
É certo que falece, agora, ao Supremo Tribunal Federal o poder de
derrogar normas regimentais veiculadoras de conteúdo processual, pois
estas – porque consubstanciadoras de prescrições materialmente
legislativas – somente poderão ser alteradas mediante leiem sentido formal,
observado, em sua elaboração, o devido processo legislativo, tal como
disciplinado no texto da vigente Constituição da República.
Não foi por outra razão que o então Presidente Fernando Henrique
Cardoso, acolhendo Exposição de Motivos subscrita pelo Ministro da
Justiça Iris Rezende e pelo Ministro?Chefe da Casa Civil da Presidência da
República Clovis Carvalho, encaminhou, pela Mensagem nº 43/98, projeto
de lei ao Congresso Nacional, propondo alterações legislativas no Código
de Processo Civil, na Consolidação das Leis do Trabalho e na
Lei nº 8.038/90.
Uma das propostas veiculadas em referido projeto de lei (que
tomou o nº 4.070/98 na Câmara dos Deputados) consistia na pretendida
abolição, pura e simples, dos embargos infringentes em todas as hipóteses
previstas no art. 333 do RISTF, como decorria do art. 7º de mencionada
proposição legislativa, que possuía o seguinte teor:
“Art. 7º Acrescentam?se à Lei nº 8.038, de 1990, os seguintes
artigos,renumerando?se ossubseqüentes:
Art. 43. Não cabem embargos infringentes contra
decisão do plenário do Supremo Tribunal Federal.” (grifei)
As razões subjacentes ao projeto de lei em questão, invocadas pela
Presidência da República para justificar a proposta de extinção dos
embargos infringentes contra acórdãos do Plenário do Supremo Tribunal
Federal, foram assim explicitadas pelos Ministros de Estado subscritores
da Exposição de Motivos:
“Seguindo na mesma esteira de desafogamento dos órgãos de
18cúpula do Poder Judiciário, o acréscimo de novo art. 43 à
Lei nº 8.038/90 visa à redução dos embargos infringentes no
âmbito do Supremo Tribunal Federal, uma vez que as matérias quesão
levadas ao Plenário já são de tal relevância, que os debates verificados
para a fixação de posicionamento da Corte raramente ensejariam a
revisão de posturas por parte daqueles que já se pronunciaram a favor
ou contra as teses veiculadas em recursos ou ações apreciadas em
Plenário.” (grifei)
Essa proposta do Poder Executivo da União, contudo, não foi
acolhida pela Câmara dos Deputados, que se apoiou, para rejeitar a
pretendida extinção dos embargos infringentes no Supremo Tribunal
Federal, nas razões apresentadas, “em voto em separado”, pelo então
Deputado Federal Jarbas Lima, que assim justificou a manutenção dos
embargos infringentes no sistema recursal validamente instituído por esta
Suprema Corte no art. 333 de seuRegimento Interno:
“5 ? Sugere?se, por fim, a supressão da proposta de criação
do art. 43 na Lei nº 8.038/90, constante no artigo 3º do substitutivo.
Isso porque a possibilidade de embargos infringentes contra
decisão não unânime do plenário do STF constitui importante canal
para a reafirmação ou modificação do entendimento sobre temas
constitucionais, além dos demais para os quais esse recurso é
previsto. Perceba?se que, de acordo com o Regimento Interno da
Suprema Corte(artigo 333, par. único), são necessários no mínimo
quatro votos divergentes para viabilizar os embargos. Se a
controvérsia estabelecida tem tamanho vulto, é relevante que se
oportunize novo julgamento para a rediscussão do tema e a
fixação de um entendimento definitivo, que depois dificilmente
chegará a ser revisto. Eventual alteração na composição do
Supremo Tribunal no interregno poderá influir no resultado afinal
verificado, que também poderá ser modificado por argumentos
ainda não considerados ou até por circunstâncias conjunturais
relevantes que se tenham feito sentir entre os dois momentos. Não se
afigura oportuno fechar a última porta para o debate judiciário
de assuntos da mais alta relevância para a vida nacional.”
(grifei)
19É importante assinalar que esse entendimento foi aprovado pelo
Plenário da Câmara dos Deputados, que assim rejeitou a pretendida
abolição dos embargos infringentes no âmbito do Supremo Tribunal Federal,
em votação queteve o apoio dos Líderes do PSDB, do PMDB, do PT, do PTB,
do PPS, do PPB e do PFL.
O Senado Federal, por sua vez, aprovou o texto oriundo da Câmara
dos Deputados,fazendo?o com pequenas alterações, que sequer cuidaram
do tema pertinente à abolição dos embargos infringentes.
Em decorrência da aprovação bicameral da proposição legislativa
referida, resultou promulgada, mediante sanção presidencial, a Lei nº 9.756,
de 17/12/98, que “Dispõe sobre o processamento de recursos no âmbito dos
tribunais”.
Vê?se, portanto, que a questão pertinente aos embargos infringentes
no âmbito do Supremo Tribunal Federal constitui, agora, sob a égide da
vigente Constituição, matéria que se submete, por inteiro, à cláusula de
reserva constitucional de lei formal, cabendo ao Poder Legislativo, por
tratar?se de típica questão de política legislativa, a adoção de medidas que
eventualmente possam resultar, até mesmo, na supressão definitiva dos
embargos infringentes no âmbito interno do Supremo Tribunal Federal.
Matéria “delegeferenda”, portanto!
Tais observações, contudo, não descaracterizam a legitimidade
constitucional da norma inscrita no art. 333, I, do RISTF, pois, como
anteriormente enfatizado, essa prescrição normativa foi recepcionada pela
vigente ordem constitucional (RTJ 147/1010 – RTJ 151/278?279 –
RTJ 190/1084, v.g.), que lhe atribuiu força e autoridade de lei,
viabilizando?lhe, desse modo, a integral aplicabilidade por esta Suprema
Corte.
É por isso que entendo, não obstante a superveniente edição da
Lei nº 8.038/90, que ainda subsiste, com força de lei, a regra
20consubstanciada no art. 333, I, do RISTF, plenamente compatível com a
nova ordem ritual estabelecida para os processos penais originários
instaurados perante o Supremo Tribunal Federal.
O fato, Senhor Presidente, é que não se presume a revogação tácita das
leis, especialmente se se considerar que não incide, no caso ora em exame,
qualquer das hipóteses configuradoras de revogação das espécies
normativas, na forma descrita no § 1º do art. 2º da Lei de Introdução às
Normas do Direito Brasileiro.
Com efeito, a regulação normativa veiculada no novo estatuto
legislativo não abrangeu a totalidade da disciplina inerente ao processo
penal originário no Supremo Tribunal Federal, mesmo porque a
Lei nº 8.038/90, ao instituir “normas procedimentais para os processos que
específica, perante o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal”,
limitou?se, no plano da persecução penal originária, a dispor sobre a ordem
ritual do respectivo procedimento até a conclusão da fase de instrução
probatória (art. 12),relegando ao domínio regimental a normação concernente
ao próprio julgamento da causa penal.
Na realidade, o diploma legislativo em questão, embora pudesse
fazê?lo, absteve?se de disciplinar o sistema recursal interno do Supremo
Tribunal Federal, o que representou, na perspectiva do § 1º do art. 2º da
Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, a preservação do
conteúdo eficacial da regra inscrita no inciso I do art. 333 doRISTF.
Esse silêncio do texto legal, tal como a ele mereferiem passagem anterior
deste voto, não é de ser equiparado a uma lacuna normativa involuntária (ou
inconsciente), assim entendida aquela que decorre “de um descuido do
legislador” (NORBERTO BOBBIO, “Teoria do Ordenamento Jurídico”,
p. 144, 1989, Polis/Ed.UnB). Ao contrário, trata?se detípica lacuna intencional
(ou voluntária) do legislador ordinário, que, embora tendo presente a
realidade normativa emergente do novo modelo constitucional, quis,
conscientemente, deixar de regular a questão pertinente aos embargos
infringentes, por entender desnecessário desarticular o sistema integrado
21de recursos fundado, validamente, no próprio Regimento Interno do
Supremo Tribunal Federal.
Ao assim proceder, deixando de disciplinar, inteiramente, a matéria
tratada no Regimento Interno desta Corte, o legislador não deu causa a
uma situação de revogação tácita, implícita ou indireta do inciso I do art. 333
do diploma regimental, eis que – insista?se – essa modalidade de
revogação somente ocorre em 02 (duas) hipóteses: (a) quando a lei
posterior for totalmente incompatível com a espécie normativa anterior e
(b) quando a nova lei regular, inteiramente, a matéria de que tratava a
legislação anterior.
Esse entendimento foi exposto, de maneira clara, pelo eminente
Ministro HAMILTON CARVALHIDO, que integrou o E. Superior
Tribunal de Justiça, e que, ao discorrer sobre o tema, acentuou que a
Lei nº 8.038/90 não extinguiu osembargosinfringentes previstos no art. 333,
inciso I, doRegimento Interno do Supremo Tribunal Federal.
Eis, no ponto, a valiosa lição desse eminente magistrado e antigo
Chefe do Ministério Público do Estado doRio de Janeiro:
“Cuida?se de norma regimental, que reproduz norma
regimental anterior, e antecedeu à Constituição de 1988, com a
qual se harmoniza plenamente, em especial com a sua
disciplina dos direitos fundamentais, fazendo?se indiscutível a
sua recepção pela nova ordem constitucional. E foi
recepcionada como norma materialmente legislativa, eis
que editada pelo Supremo Tribunal Federal no exercício da
competência para disciplinar o processo e o julgamento dosfeitos
de sua competência originária ou de recurso, que lhe foi
atribuída, com exclusividade, pela Emenda Constitucional 1, de
1969.
A questão, enquanto pura de Direito, não se submete a
critérios outros que não os que se pode extrair da Lei de
22Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que, no seu
artigo 2º, parágrafo 1º, preceitua a revogação da lei anterior pela
posterior, quando a lei nova expressamente o declare; quando seja
com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de
quetratava a lei anterior(Decreto Lei 4.657, de 4 desetembro de
1942).
Sendo essa a lei de regência do conflito de normas no
tempo, a solução da questão é a da declaração positiva da
vigência da norma regimental anterior, qual seja, a do
cabimento dos embargos infringentes do acusado contra acórdão
do Pleno do Supremo Tribunal Federal, quando condenatório e
assentado por maioria contra, no mínimo, quatro votos
divergentes.
É que a Lei 8.038/90 não revogou expressamente o
artigo 333, inciso I, do Regimento Interno do Supremo Tribunal
Federal; nada dispõe em contrário à norma regimental e não
disciplina inteiramente nem o processo da ação penal
originária, nem taxativamente os recursos da competência do
Excelso Pretório.
Com efeito, primeiro, a Lei 8.038/90, no seu artigo 44,
revogou expressamente apenas os artigos 541 a 546 do Código
de Processo Civil de 1973, e a Lei 3.396, de 2 de junho de 1958,
referentes os primeiros aos recursos extraordinários e especial e a
última aos artigos 863 e 864 do Código de Processo Civil de 1939
e 622 a 636 do Código de Processo Penal. Segundo, quanto ao
Supremo Tribunal Federal e aos recursos da sua competência,
apenas disciplinou o recurso extraordinário, assim nada
dispondo em contrário ao artigo 333, inciso I, do Regimento
Interno do Supremo Tribunal Federal. Por fim, tratou tão
somente da fase de conhecimento do processo da ação penal
originária e o fez não completamente, pois que também se
remete ao Regimento do Tribunal, com vistas à disciplina do
julgamento da causa.
Não é diverso o entendimento do Supremo Tribunal
Federal, como exsurge, por todos, do voto condutor do
23acórdão no Agravo Regimental nos Embargos Infringentes no
Habeas Corpus 77.664/SP, da lavra do ilustre ministro Carlos
Velloso, relator, ‘verbis’: ‘no Supremo Tribunal Federal, os
embargos infringentes são cabíveis da decisão não unânime do
Plenário (…), que julgar procedente a ação penal (…),
sendo certo que, tratando?se de decisão do plenário, o
cabimento dos embargos infringentes depende da existência,
no mínimo, de quatro votos divergentes (RI/STF, art. 333, e
seu Parágrafo Único)’.
É de se afirmar, portanto, a vigência da norma regimental
que prevê os embargos infringentes como recurso oponível a
acórdão condenatório não unânime, do Pleno do Supremo
Tribunal Federal, com divergência de pelo menos quatro votos.
Trata?se, como convém averbar em remate, o artigo 333,
inciso I, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, de
norma do devido processo legal, garantia individual,
titularizada por todos os membros da Sociedade Civil, de
observância absoluta, pena de irreparável ofensa ao Pacto
Social ele mesmo. A exceção, que o atinja, jamais será
individual ou particular, mas, porforça de natureza, coletiva e
geral, gravíssima e permanente, enquanto ofensa aos direitos
fundamentais, com comprometimento intenso da sua
efetividade.” (grifei)
Enfatize?se, portanto, e no que concerne aos embargos infringentes –
cuja base normativa reside no art. 333, n. I, do RISTF –, que não se
registrou, presente o próprio conteúdo da Lei nº 8.038/90, hipótese de
incompatibilidade ou situação de inteira regulação normativa da matéria, o
que torna absolutamente inaplicável ao caso ora em exame a regra
inscrita no art. 2º, § 1º, da Lei deIntrodução às Normas do Direito Brasileiro.
Subsiste, portanto, íntegra a regra consubstanciada no inciso I do
art. 333 do RISTF, considerada a circunstância – juridicamenterelevante – de
que a Lei nº 8.038/90 não operou, no contexto mais amplo dos processos penais
originários instaurados perante esta Suprema Corte, revogação global ou
24sistêmica da matéria.
E, como se sabe, quando tal ocorre, passam a coexistir, em relação de
plena harmonia jurídica, diplomas normativos impregnados de conteúdo
temático próprio, valendo rememorar a lição do eminente Professor
ALFREDO BUZAID (“Estudos de Direito”, vol. I/200?201, item n. 18, 1972,
Saraiva), saudoso Ministro desta Suprema Corte que, ao examinar o
sentido da cláusula constitucional que deferiu, em 1967/1969, poder
normativo primário ao Supremo Tribunal Federal em matéria processual,
enfatizou, com a reconhecida autoridade de haver sido um dos mais
brilhantes jurisconsultos deste País, que referida atribuição legitimava a
instituição, por este Tribunal, em sede regimental, de recursos pertinentes
às matérias sujeitas à sua competência:
“O Supremo Tribunal Federal legisla, nas matérias de sua
competência, através do ‘regimento interno’. (…). Este preceito
outorgou ao Supremo Tribunal Federal a atribuição privativa para
estabelecer o processo e o julgamento, bem como os recursos nos
casos de sua competência originária (…). Em uma palavra, o
regimento tem o valor delei.” (grifei)
De outro lado, há a considerar, ainda, um outro aspecto que tenho por
pertinente no exame da controvérsia ora em julgamento e que se refere ao
fato de que a regra consubstanciada no art. 333, inciso I, do RISTF busca
permitir, ainda que de modo incompleto, a concretização, no âmbito do
Supremo Tribunal Federal, no contexto das causas penais originárias, do
postulado do duplo reexame, que visaria amparar o direito consagrado na
própria Convenção Americana de Direitos Humanos, na medida em que
realiza, embora insuficientemente, a cláusula convencional da proteção
judicial efetiva (Pacto de São José da Costa Rica,Art. 8º, n. 2, alínea “h”).
A adoção do critério do duplo reexame nos julgamentos penais
condenatórios realizados pelo Supremo Tribunal Federal, possibilitando a
utilização dos embargos infringentes na hipótese singular prevista no
art. 333, inciso I, do RISTF, permitirá alcançar solução, não obstante
limitada, nos casos em que o Supremo Tribunal Federal, atuando
25originariamente como instância judiciária única, proferir, por votação
majoritária, julgamentos penais desfavoráveis ao réu.
Na realidade, não se pode deixar de reconhecer que os embargos
infringentes, tais como instituídos no inciso I do art. 333 do RISTF,
mostram?se insuficientes à plena realização de um direito fundamental
assegurado pela Convenção Americana de Direitos Humanos (Artigo 8º,
n. 2, “h”) e que consiste na prerrogativa jurídico?processual de o
condenado “recorrer da sentença a juiz ou tribunalsuperior”.
Esse direito ao duplo grau de jurisdição, consoante adverte a Corte
Interamericana de Direitos Humanos, é também invocável mesmo nas
hipóteses de condenações penais em decorrência de prerrogativa de foro,
decretadas,em sede originária, por Cortes Supremas de Justiça estruturadas
no âmbito dos Estados integrantes do sistema interamericano que hajam
formalmente reconhecido, como obrigatória, a competência da Corte
Interamericana de Direitos Humanos em todos os casos relativos à
interpretação ou aplicação do Pacto de São José da Costa Rica.
Não custa relembrar que o Brasil, apoiando?se em soberana deliberação,
submeteu?se à jurisdição contenciosa da Corte Interamericana de Direitos
Humanos, o que significa – considerado o formal reconhecimento da
obrigatoriedade de observância e respeito da competência da Corte
(Decreto nº 4.463/2002) – que o Estado brasileiro comprometeu?se, por
efeito de sua própria vontade político?jurídica, “a cumprir a decisão da Corte
em todo caso” de que é parte (Pacto de São José da Costa Rica, Artigo 68).
“Pacta suntservanda”...
Com efeito, o Brasil, no final do segundo mandato do Presidente
Fernando Henrique Cardoso (Decreto nº 4.463, de 08/11/2002),reconheceu
como obrigatórias a jurisdição e a competência da Corte Interamericana de
Direitos Humanos, “em todos os casos relativos à interpretação ou aplicação
desta Convenção” (Pacto de São José da Costa Rica, Artigo 62), o que
legitima o exercício, por esse importante organismo judiciário de âmbito
regional, do controle de convencionalidade, vale dizer, da adequação e
26observância, por parte dos Estados nacionais que voluntariamente se
submeteram, como o Brasil, à jurisdição contenciosa da Corte
Interamericana, dos princípios, direitos e garantias fundamentais
assegurados e proclamados, no contexto do sistema interamericano, pela
ConvençãoAmericana de Direitos Humanos.
É importante ter presente, no ponto, o magistério, sempre autorizado,
dos eminentes Professores LUIZ FLÁVIO GOMES e VALERIO DE
OLIVEIRA MAZZUOLI, cuja lição, no tema, a propósito do duplo grau de
jurisdição no sistema interamericano de direitos humanos, notadamente após a
Sentença proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no
caso Barreto Leiva vs. Venezuela, vale rememorar:
“As duas exceções ao direito ao duplo grau, que vêm sendo
reconhecidas no âmbito dos órgãos jurisdicionais europeus
[europeus!], são as seguintes: (a) caso de condenação imposta em
razão de recurso contra sentença absolutória; (b) condenação
imposta pelo tribunal máximo do país. ([1]) Mas a sistemática do
direito e da jurisprudência interamericana é distinta.
Diferentemente do que se passa com o sistema europeu, vem o
sistema interamericano afirmando que o respeito ao duplo grau de
jurisdição é absolutamente indispensável, mesmo que se trate de
condenação pelo órgão máximo do país. Não existem ressalvas
no sistema interamericano em relação ao duplo grau dejurisdição.
A Corte Interamericana não é um tribunal que está acima do
STF, ou seja, não há hierarquia entre eles. É por isso que ela não
constitui um órgão recursal. Porém, suas decisões obrigam o país
que é condenado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa. ‘Pacta sunt
servanda’: ninguém é obrigado a assumir compromissosinternacionais.
Depois de assumidos, devem ser cumpridos.
De forma direta, a Corte não interfere nos processos que
tramitam num determinado Estado membro sujeito à sua jurisdição
(em razão de livre e espontânea adesão), porém, deforma indireta,
sim. (…).
No caso ‘Barreto Leiva contra Venezuela’, a Corte, em sua
decisão de 17.11.09, apresentou duas surpresas: a primeira é que fez
27valer em toda a sua integralidade o direito ao duplo grau de
jurisdição (direito de ser julgado duas vezes, de forma ampla e
ilimitada) e a segunda é que deixou claro que esse direito vale para
todos osréus, inclusive os julgados pelo Tribunal máximo do país,
em razão do foro especial por prerrogativa de função ou de conexão
com quem desfruta dessa prerrogativa.
A obrigação de respeitar o duplo grau de jurisdição deve ser
cumprida pelo Estado, por meio do seu Poder Judiciário, em prazo
razoável. De outro lado, também deve o Estado fazer as devidas
adequações no seu direito interno, de forma a garantir sempre o
duplo grau de jurisdição, mesmo quando se trata de réu com foro
especial por prerrogativa defunção.
De outro lado, quando o julgamento acontece na Corte
Máxima, a única interpretação possível do art. 8º, II, ‘h’, da CADH,
é que este mesmo tribunal é o competente para o segundo
julgamento. Foi isso que determinou a CIDH no caso ‘Barreto Leiva’.
Quando não existe outro juiz ou Corte ‘superior’, é a mesma Corte
máxima que deve proceder ao segundo julgamento porque, no âmbito
criminal, nenhum réu jamais pode ser tolhido desse segundo
julgamento (consoante a firme e incisiva jurisprudência da CIDH).”
(grifei)
Nem se diga que a soberania do Estado brasileiro seria oponível à
autoridade das sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos,
quando proferidas no exercício de sua jurisdição contenciosa.
A questão central, neste tema, considerada a limitação da soberania
dos Estados (com evidente afastamento das concepções de JEAN BODIN),
notadamente em matéria de Direitos Humanos, e a voluntária adesão do
Brasil a esses importantíssimos estatutos internacionais de proteção regional
e global aos direitos básicos da pessoa humana, consiste em manter
fidelidade aos compromissos que o Estado brasileiro assumiu na ordem
internacional, eis que continua a prevalecer, ainda, o clássico dogma –
reafirmado pelo Artigo 26 da Convenção de Viena sobre o Direito dos
Tratados, hoje incorporada ao ordenamento interno de nosso País
28(Decreto nº 7.030/2009) –, segundo o qual “pacta suntservanda”, vale dizer,
“Todo tratado em vigor obriga as partes e deve ser cumprido porelas de boa fé”,
sendo?lhe inoponíveis, consoante diretriz fundada no Artigo 27 dessa
mesma Convenção de Viena, as disposições do direito interno do Estado
nacional, que não poderá justificar, com base em tais regras domésticas, o
inadimplemento de suas obrigações convencionais, sob pena de cometer
grave ilícito internacional.
Essa compreensão do tema – notadamente em situações como a ora
em exame em que o Supremo Tribunal Federal se vê dividido na exegese de
um dado preceito normativo – permite realizar a cláusula inscrita no
art. 29 da Convenção Americana de Direitos Humanos, que confere, no
domínio de interpretação dos direitos e garantias fundamentais, primazia à
norma mais favorável, consoante tem enfatizado a própria jurisprudência
desta Suprema Corte (HC 90.450/MG,Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.):
“HERMENÊUTICA E DIREITOS HUMANOS: A NORMA
MAIS FAVORÁVEL COMO CRITÉRIO QUE DEVE REGER A
INTERPRETAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO.
? Os magistrados e Tribunais, no exercício de sua atividade
interpretativa, especialmente no âmbito dos tratados internacionais
de direitos humanos, devem observar um princípio hermenêutico
básico (tal como aquele proclamado no Artigo 29 da Convenção
Americana de Direitos Humanos), consistente em atribuir
primazia à norma queserevele mais favorável à pessoa humana, em
ordem a dispensar?lhe a mais ampla proteção jurídica.
? O Poder Judiciário, nesse processo hermenêutico que
prestigia o critério da norma mais favorável (que tanto pode ser
aquela prevista no tratado internacional como a que se acha
positivada no próprio direito interno do Estado), deverá extrair a
máxima eficácia das declarações internacionais e das proclamações
constitucionais de direitos, como forma de viabilizar o acesso dos
indivíduos e dos grupos sociais, notadamente os mais vulneráveis, a
sistemas institucionalizados de proteção aos direitos fundamentais da
pessoa humana, sob pena de a liberdade, a tolerância e o respeito à
alteridade humana tornarem?se palavras vãs.
? Aplicação, ao caso, do Artigo 7º, n. 7, c/c o Artigo 29,
29ambos da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São
José da Costa Rica): um caso típico de primazia da regra mais
favorável à proteção efetiva do ser humano.”
(HC 96.772/SP,Rel. Min. CELSO DE MELLO)
É de observar?se, ainda, por relevante, que, opostos os embargos
infringentes, “serão excluídos da distribuição o Relator e o Revisor” (RISTF,
art. 76), o que permitirá, até mesmo, uma nova visão sobre o litígio penal
ora em julgamento.
Cabe relembrar, neste ponto, considerado o fato de que os embargos
infringentes permitirão, embora de modo pontual, porque limitados ao
objeto da divergência, uma nova visão sobre a controvérsia penal, a
observação de PONTES DE MIRANDA (“Comentários ao Código de
Processo Civil”, tomo VII, p. 330 e 339, 1975, Forense) no sentido de que
essa modalidade recursal, ainda que havida por inconveniente por alguns
processualistas, pode, no entanto, servir à causa da Justiça, como o revela
esse eminente jurisconsulto brasileiro ao justificar a razão de ser dos
embargos infringentes:
“Os melhores julgamentos, os mais completamente
instruídos e os mais proficientemente discutidos são os
julgamentos das Câmaras de embargos. (…) muita injustiça se
tem afastado com osjulgamentosem grau deembargos.
O interesse precipuamente protegido pelo art. 530 do
Código de 1973 não é o individual. É o interesse público em que
haja a mais completa aplicação de todas as leis que presidiram à
formação das relações jurídicas, isto é, de todas as leis que
incidiram.”
Cabe assinalar, finalmente, que a existência de votos vencidos
qualifica?se como pressuposto necessário para a admissibilidade dos
embargos infringentes, pois, como ninguém o ignora, a finalidade dessa
espécie recursal consiste em fazer prevalecer, no rejulgamento da causa –
30limitado, topicamente, ao objeto da divergência –, a solução preconizada
pela corrente minoritária.
É de indagar?se, neste ponto, para efeito de utilização dos embargos
infringentes contra acórdão não unânime do Supremo Tribunal Federal, na
hipótese prevista no art. 333, inciso I, do RISTF, se a corrente minoritária
deve compor?se de 04 (quatro) votos vencidos ou,então, se se revela suficiente
a existência de apenas 01 (um) voto divergente.
O eminente Ministro GILMAR MENDES formulou indagação
relevante a propósito da questão pertinente aos votos vencidos.
Por que 4 (quatro) votos vencidos e não 3 (três), 2 (dois) ou apenas 1 (um)?
Entendo que essa questão mereceu adequada análise pelo eminente
Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE, que, em julgamento nesta Corte, de
que foi Relator (HC 71.124/RJ), após haver destacado o descabimento de
embargos infringentes criminais contra decisão condenatória não
unânime, nos processos de competência originária dos Tribunais em geral,
“salvo no Supremo Tribunal Federal”, bem justificou a razão de ser da
exigência mínima de 04 (quatro) votos vencidos, salientando que esse
número – bastante expressivo em um Tribunal com apenas 11 (onze)
integrantes (tanto que quatro votos, nas Turmas, compõem a maioria) –
revela?se apto a evidenciar, sem qualquer dúvida, a plausibilidade jurídica
da pretensão deduzida pela parte embargante:
“Resta a invocada analogia da hipótese com as tratadas no
Regimento Interno do Supremo Tribunal, que tanto admite os
embargos infringentes contra a decisão que ‘julgar improcedente a
revisão criminal’ (art. 333, III), quanto contra aquela que ‘julgar
procedente a ação penal’ (art. 333, I), atualmente, desde que haja
quatro votos vencidos (a ressalva do art. 333, parág. único,
quando se tratasse de julgamento criminal em sessão secreta, que se
contentava em que a decisão não fosse unânime, perdeu o objeto com o
art. 93,IX, da Constituição).
É curioso observar que a admissão dos embargos infringentes
contra decisão das ações penais originárias, no âmbito do Supremo
31Tribunal, desde o art. 194 do velho Regimento (CORDEIRO DE
MELLO, ‘ob. cit.’, II/832): muito anterior, portanto, a que a
EC 16/65 e as cartas constitucionais subsequentes outorgassem
hierarquia delei ordinária ao regimento interno da Corte.
Não obstante, estou em que a singularidade se explica pela
posição do Supremo Tribunal na cúpula da estrutura judiciária
nacional(...).
Em contraposição, os acórdãos em processos originários do
Supremo Tribunal são de única e última instância, não apenas no
acertamento dos fatos, mas também na aplicação do direito: donde, a
construção da abertura da via dos embargos, ao menos para as
hipóteses em que o número de votos divergentes no seio da Corte
emprestar probabilidade significativa de êxito à súplica do
reexame do caso.
Nessa linha de raciocínio, é significativo que a L. 8.038/90 ?
que cuidou das ações penais originárias, de competência do Supremo e
do Superior Tribunal deJustiça ? não haja cogitado de transportar,
para o último, a regra de admissibilidade dos embargos infringentes,
que, porforça do regimento, aqui subsiste. (...).
Finalmente, impressiona o argumento das informações de que,
suposto ser o caso de aplicação analógica, a exigência de quatro
votos vencidos, de grande peso no conjunto de onze juízes do STF,
não poderia sertransplantada para o âmbito de colegiados muito mais
numerosos (...) sem que antes se procedesse à devida adequação da
proporcionalidade.” (grifei)
Concluo o meu voto, Senhor Presidente. E, ao fazê?lo, peço vênia para
dar provimento ao presente “agravo regimental”, admitindo, em consequência,
a possibilidade de utilização, no caso, dos embargos infringentes (RISTF,
art. 333, inciso I), desde que existentes, pelo menos, 04 (quatro) votos
vencidos, acompanhando, por tal razão, a divergência iniciada pelo
eminente Ministro LUÍS ROBERTO BARROSO.
É o meu voto.
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