Topo

O que há em comum entre o golpe de 1964, o impeachment de Collor e hoje?

Processos sofridos por João Goulart (esquerda) e Fernando Collor voltaram à tona - Arte/UOL
Processos sofridos por João Goulart (esquerda) e Fernando Collor voltaram à tona Imagem: Arte/UOL

Nathan Lopes

Do UOL, em São Paulo

17/04/2016 06h00

Uma das principais discussões sobre o processo de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff refere-se a um termo: golpe. Em 1964, a palavra foi usada quando João Goulart foi retirado do comando do país. Há, porém, quem defenda que o que acontece hoje não é uma ação golpista, mas o legítimo processo de impeachment, tal qual o que Fernando Collor sofreu em 1992.

Com a ajuda de historiadores e cientistas políticos, o UOL resgatou esses dois momentos históricos do país para avaliar seus pontos-chave e tentar entender o momento que vive o Brasil.

Era considerado golpe?

  • Jango - sim, porque o presidente foi retirado de seu posto de forma ilegal, com os militares assumindo o governo em seguida.
  • Collor - não, porque as denúncias de corrupção, a perda de apoio no Congresso e as manifestações das ruas tornaram o governo insustentável.
  • Dilma - o governo chama de golpe por não haver crime de responsabilidade; a oposição considera que o impeachment está previsto em lei e há argumentos para depor a presidente.

O que pesou contra cada governo?

  • Jango - ter a "pecha de comunista", proposta de reformas que desagradavam setores da sociedade, Congresso hostil.
  • Collor - inflação alta, confisco da poupança, denúncias de corrupção envolvendo o governo, falta de apoio político.
  • Dilma - desemprego em alta, inflação fora da meta, pedaladas fiscais, denúncias de corrupção envolvendo membros ligados ao governo.

Como se portaram as forças políticas?

  • Jango - Brizola e aliados quiseram resistir, mas ele temia uma guerra civil e desistiu de reclamar pelo cargo.
  • Collor - PMDB, PT e PSDB se uniram e foram fundamentais na instalação e condução dos trabalhos na CPI que investigou Collor.
  • Dilma - Foi abandonada pelos partidos da base aliada (PMDB, PP, PRB, PSD) e até por seu vice-presidente.

Qual é a principal oposição?

  • Jango - Militares, mídia, empresários, agricultores, movimentos civis.
  • Collor - Movimentos civis, partidos políticos, empresários.
  • Dilma - Movimentos civis, partidos políticos, empresários.

O vice que quase não assumiu

Considerado “esquerdista” e “comunista”, João Goulart foi impedido de assumir a Presidência da República (leia mais aqui) quando Jânio Quadros renunciou ao cargo, em agosto de 1961. 

Para Jango assumir, foi feito um acordo entre lideranças militares e parlamentares, que fizeram o Congresso mudar o regime político do país de presidencialista para parlamentarista, o que foi revertido em referendo em 1963.

Em 1964, a tensão aumentou quando Jango --enfraquecido pelos problemas econômicos e sob pressão de opositores e da opinião pública-- apoiou marinheiros e fuzileiros navais que contrariaram ordens de seus superiores no episódio conhecido como a Revolta dos Marinheiros.

Dias depois, um movimento militar, iniciado em Juiz de Fora (MG), começou o que terminaria com a tomada do poder pelos militares. “Efetivamente, um presidente foi retirado de seu posto de forma ilegal e, em seu lugar, os militares assumiram”, recorda a professora de Ciência Política da FGV (Fundação Getúlio Vargas) Liliam Furquim.

O “novo”

Apresentado aos eleitores brasileiros pela mídia como "caçador de marajás" e "guardião da moralidade", o governador de Alagoas em 1989, Fernando Collor, surgiu como candidato à Presidência da República por um partido nanico (leia mais aqui), o PRN (Partido da Reconstrução Nacional, atual PTC - Partido Trabalhista Cristão).

Até então desconhecido da maior parte da população, Collor foi ganhando cada vez mais a preferência do eleitorado ao proferir discursos contra a corrupção e a alta inflação, que era de 1.782,85%. Mas tudo mudou quando Collor assumiu. Como primeira medida de seu governo, sua equipe econômica anunciou o confisco dos valores nas cadernetas de poupança dos brasileiros.

Perdendo apoio popular, Collor também começava a ficar sem força política dentro do Congresso à medida que apareciam denúncias de corrupção em seu governo. Uma CPI foi instalada e levou ao processo de impeachment. Em 29 de dezembro de 1992, por 76 votos a 3, os senadores afastaram Collor em definitivo da Presidência, deixando-o inelegível por oito anos.

“O impeachment do Collor veio com a sensação de uma grande execução, mas também foi uma prova de maturidade política da sociedade”, analisa Marcos Antonio da Silva, professor do departamento de história da USP. “O processo se deu dentro das regras da Constituição. No entanto, Collor foi absolvido [em 1994 e 2014] das acusações pelo STF”, recorda Lilian.

E hoje?

Se há certeza entre os acadêmicos sobre a realização de um golpe em 1964 e sobre a constitucionalidade do processo de impeachment em 1992, o mesmo não se pode dizer sobre fatos que estão em andamento. "Uma das grandes dificuldades é realizar a seleção daquilo que pode servir de fonte ao analista", explica historiador e professor do departamento de história da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).

Sobre 2016, um dos fatores que explicam a dificuldade para se ter uma definição sobre o momento liga-se a “deficiências reais das leis e da postura do Judiciário, fazendo que as avaliações variem conforme as opiniões polarizadas”, avalia o cientista político Fábio Reis, professor emérito da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). “Os próprios ministros do STF se manifestam agora de maneira divergente sobre o assunto. Alguns simplesmente repetem que o impeachment é previsto na Constituição. Outros destacam que a Constituição fala de crime, o que abre a possibilidade de que, não havendo crime caracterizado com clareza, o impeachment redunde em golpe.”

A professora da FGV Lilian Furquim ressalta que “o direito não é uma ciência exata e está aberto a interpretações”. “Diante disso, temos uma divisão a respeito do que é ou não crime de responsabilidade. A meu ver, temos todos os elementos, inclusive jurídicos, para o impeachment ocorrer.”

Para a professora de Ciência Política Vera Chaia, da PUC (Pontifícia Universidade Católica) de São Paulo, a crise política do país é decorrência das dificuldades encontradas pela presidente desde o início do segundo mandato, em 2015. “Dilma sofre uma oposição enorme desde o período eleitoral. Tem uma oposição que não aceitou perder as eleições, falando de fraude nas urnas. E a composição do Congresso foi muito diferente, um ‘Congresso BBB’, de Bala, Bíblia, e Boi. E a aliança com o PMDB, que já vinha de eleições anteriores, não deu certo. É difícil pensar em um governo funcionando assim.”

Um outro ponto contribui para a crise atual, segundo Lilian Furquim: a Operação Lava Jato, “que passa a revelar um esquema muito bem organizado de uso de recursos públicos para pagamento de propina”. “No epicentro do esquema, está o PT.” Para a professora, as revelações obtidas pela operação acabam deteriorando a imagem do partido e, por consequência, da própria presidente.

‘Sistema moribundo’

Já Nicolazzi, da UFRGS, aponta uma situação caracterizada por um governo de caráter popular, “mas que não quis ou não encontrou os meios para implementar as reformas estruturais que realmente transformariam a sociedade”. Isso teria tornado o governo “refém de um moribundo sistema de coalizão partidária, que modificou radicalmente sua agenda social e o afastou das suas bases políticas históricas”.

Chaia avalia que o julgamento do governo Dilma é político. “Eu acredito nos juristas que dizem que não existe condição para impeachment. Ela não roubou, não esteve envolvida em escândalos. Aí, é um golpe político, que está sendo preparado desde a eleição.”

Além da crise política, o que preocupa os acadêmicos é o futuro. “É um clima de muita radicalidade, que não sei como vai terminar”, avalia a professora da PUC-SP. “E o que ninguém discute é um projeto para o país, não se questionam mecanismos de empoderamento para consolidação da soberania do eleitor”, diz Francisco Uribam Xavier, da UFC (Universidade Federal do Ceará). “A situação é extremamente apavorante para a política do Brasil. Não sei o que vai restar disso. Sem democracia, é o caos”, pontua Marcos Antonio da Silva, da USP.