Por que o que aconteceu em 1964 foi um golpe?
Em meio à crise política pela qual o país passa, os governistas têm citado o golpe de 1964 para explicar o processo de impeachment sofrido pela presidente Dilma Rousseff.
Com a ajuda de historiadores e cientistas políticos, o UOL resgatou o que aconteceu com João Goulart para avaliar os pontos-chave daquele momento histórico e mostrar por que o que aconteceu pode ser chamado de golpe.
Vice reeleito
O movimento que levou ao golpe civil-militar que interrompeu a democracia no Brasil por 21 anos começou anos antes de 1964. Em agosto de 1961, Jânio Quadros (PDC, Partido Democrata Cristão) renunciou à Presidência. Ele fora eleito em uma coalizão articulada pela UDN, que contou ainda com PTN, PL e PR. Seu vice era João Goulart (PTB), de um partido de oposição. Isso era possível porque, na época, os eleitores escolhiam, separadamente, tanto o presidente quanto o vice. Jango, como era conhecido, fora inclusive reeleito para o cargo. Ele também foi escolhido como vice para a Presidência anterior, de Juscelino Kubitschek.
Jango não era bem quisto por setores da sociedade brasileira porque era favorável a medidas que beneficiavam os trabalhadores, como já havia demonstrado quando fora ministro do Trabalho do governo Getúlio Vargas, entre os anos de 1953 e 1954. No período, ele foi responsável, por exemplo, por dobrar o valor do salário mínimo.
Essas medidas, em um momento em que o mundo se dividia na Guerra Fria, ajudaram a colocar nele a marca de "esquerdista" e de "comunista". “O governo João Goulart possuía projetos de reformas amplas, que eram perturbadoras para a sociedade dominante naquela época. Tudo dentro do capitalismo, mas sofria com a pecha de ser comunista”, avalia o professor do Departamento de História da USP (Universidade de São Paulo) Marcos Antonio da Silva.
Por essas características, Jango não pôde assumir a Presidência assim que Jânio a abandonou em decorrência da oposição feita pelos ministros militares da época; o cargo, então, foi ocupado interinamente pelo presidente da Câmara, Ranieri Mazzilli. “O governo de João Goulart foi iniciado já em uma situação de crise político-militar em função da tentativa de impedir sua posse, diante da qual se organizou o movimento pela legalidade, encabeçado por Leonel Brizola”, recorda o historiador e professor do departamento de história da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) Fernando Nicolazzi.
No mês seguinte, setembro, em razão do movimento de Brizola, foi feito um acordo entre lideranças militares e parlamentares, e, para Jango assumir, o Congresso mudou o regime político do país de presidencialista para parlamentarista, em que parte dos poderes do presidente eram transferidos para um primeiro-ministro. No caso, o escolhido foi Tancredo Neves.
Com essa condição, Jango assumiu a Presidência em 1961. Em 1963, houve um plebiscito em que a população eleitoral do país (cerca de 18 milhões de pessoas à época) escolheria entre manter o parlamentarismo ou retornar ao presidencialismo. A volta para o regime anterior venceu com 82% dos votos válidos.
De acordo com o site oficial da Presidência da República, Jango possuía uma postura independente quanto à política externa, criticando tanto medidas tomadas pelos EUA quanto pela União Soviética e até pelo regime cubano.
O nervosismo de alguns setores da sociedade cresceu a partir das propostas de reforma de base, ainda na época do regime parlamentarista. “Em função desta perspectiva de mudança social, setores conservadores são mobilizados com o intuito de evitar tais transformações”, diz Nicolazzi. Jango queria fazer modificações nos setores agrário, educacional, fiscal, eleitoral, urbano e bancário, além de nacionalizar alguns setores. Os congressistas barraram o que ficou conhecido como Plano Trienal. "Ele herdou um Congresso udenista, conservador, quando assumiu", lembra a professora de ciência política da PUC (Pontifícia Universidade Católica) de São Paulo Vera Chaia.
Ao longo de 1963, Jango também perdia força porque o país vivia uma crise econômica, evidenciada por altos índices de inflação, que terminou o ano em 79,89%. A aprovação de medidas como previdência social para trabalhadores rurais e de outras obrigações trabalhistas, além da criação de algumas taxas também acabou enfurecendo ainda mais o empresariado brasileiro.
Ação militar
Em 1964, a tensão aumentou quando Jango --enfraquecido pelos problemas econômicos e sob pressão de opositores e da opinião pública-- apoiou marinheiros e fuzileiros navais que contrariaram ordens de seus superiores no episódio conhecido com a Revolta dos Marinheiros.
Dias depois, um movimento militar, iniciado em Juiz de Fora (MG), começou o que terminaria com a tomada do poder pelos militares com apoio de parte da sociedade brasileira descontente com o governo Jango e do governo dos Estados Unidos, que reconheceu o novo governo de pronto. “Efetivamente, um presidente foi retirado de seu posto de forma ilegal e, em seu lugar, os militares assumiram”, recorda a doutora em Ciência Política Liliam Furquim, da FGV (Fundação Getúlio Vargas).
Jango não quis reagir para evitar um "derramamento de sangue", segundo os historiadores. “Uma reação a isso foi abafada pela força das armas. A oposição, que apoiava a resistência, durou pouco em função da repressão. As pessoas não podiam se manifestar. E Jango se absteve de se manifestar, por isso a resistência não teve força”, pontua Chaia. “Foi um golpe com cassação, perseguição, tortura institucionalizada e proibição de organização da sociedade. Um golpe onde o atentado contra a democracia e a violação dos direitos humanos era claro”, avalia o professor doutor do Departamento de Ciências Sociais da UFC (Universidade Federal do Ceará) Francisco Uribam Xavier de Holanda.
Sobre quem não concorda sobre o termo golpe a respeito de 1964, o professor da USP faz uma observação: “havia um governo eleito, havia leis em vigor”. “O que justificava a derrubada? Uma insatisfação?”, questiona Silva.
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