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Psiquiatra leva pacientes em barco para expedição terapêutica na floresta amazônica

"Barco hotel" do psiquiatra Wilson Gonzaga, adquirido para levar pacientes à Amazônia para uma proposta diferente de tratamento contra a dependência  - Divulgação
"Barco hotel" do psiquiatra Wilson Gonzaga, adquirido para levar pacientes à Amazônia para uma proposta diferente de tratamento contra a dependência Imagem: Divulgação

Carlos Minuano

Do UOL, em São Paulo

26/02/2013 07h00

“Seu filho foi atacado pelo curupira?!”, indaga o experiente psiquiatra Wilson Gonzaga, sem disfarçar a enorme interrogação estampada em seu semblante. “Esse animal que você descreveu não poderia ser um macaco?”, sugere o médico, descrente da história fantástica que acabava de ouvir. O caso singular foi contado por um casal de ribeirinhos que o procurou em uma Unidade Básica de Saúde (UBS), localizada na distante Manicoré, a 434 km de Manaus.

O problema insólito envolvia um garoto que apresentava sintomas de distúrbios mentais, segundo os pais, após o suposto encontro com o ser mitológico, que de acordo com a lenda, adora assustar criancinhas. “Doutor, toda a minha família é do mato, eu também cresci no meio da mata, a gente sabe o que é um macaco”, respondeu o pai do menino, indignado com o questionamento do médico, que havia acabado de chegar à comunidade.

Desde 2008, Wilson Gonzaga presta atendimento psiquiátrico na rede municipal de saúde de três municípios da calha do rio Madeira, Nova Olinda do Norte, Borba e Manicoré, além de comunidades ribeirinhas da região. Ele garante que na Amazônia é mesmo assim, cultura, folclore e magia se fundem à realidade local.

Atualmente, além de buscar recursos para a construção de uma clinica para dependentes químicos na mata, o psiquiatra acaba de adquirir um simpático barco hotel, no qual pretende levar pacientes à Amazônia para experimentar uma proposta diferente de tratamento: a cura através de um mergulho na natureza e nas medicinas tradicionais, indígena e cabocla.

Uma das ferramentas utilizadas será a ayahuasca, bebida psicoativa utilizada por quase uma centena de etnias indígenas amazônicas e, desde o início do século passado, incorporada a cultos religiosos sincréticos brasileiros, entre os principais estão o Santo Daime e a União do Vegetal (UDV).

"Ribeirinho também sofre de ansiedade", diz psiquiatra

  • Apesar da riqueza exuberante expressa na enorme biodiversidade, beleza e lendas da Amazônia, a população sofre com inúmeras carências, sobretudo na área de saúde mental. E os problemas que o psiquiatra relata encontrar em seu cotidiano de trabalho não diferem das patologias ‘urbanas’ com as quais estava acostumado a lidar em São Paulo. É uma ilusão achar que viver no meio da floresta é garantia de equilíbrio emocional, diz. “Ribeirinho também sofre de ansiedade e depressão”, constata. “Muda a linguagem, a cultura, mas o sofrimento é muito parecido, seja ele índio ou ribeirinho”.

    Mas a situação já esteve pior, ressalta o médico, que também atua como orientador da coordenação de saúde mental dos municípios do interior do Estado do Amazonas. “Estamos avançando, mas a maioria dos médicos ainda não quer ir para essas áreas mais distantes, só malucos como eu”, diz. Entretanto, acrescenta que o débito com a população local ainda é grande.

    “Estamos devendo muito, a demanda é maior do que o atendimento oferecido, sobretudo no campo das drogas”, observa. Apesar dos muitos problemas, ele se diz otimista, e não dispensa o bom humor. “Vejo melhorias promovidas pela atual administração, mas a velocidade das coisas aqui é tipo ‘jabuti com câimbra’”.

    Foi esse cenário repleto de contradições e encantamentos que levou o médico psiquiatra a deixar pra trás a vida segura e sólida em São Paulo, fruto de décadas de trabalho, para transferir seu consultório para Manaus e se embrenhar nas matas amazônicas ao lado da companheira Nísia Maria.

    Gonzaga explica que vida em meio ao conhecimento popular da cultura local, reforçou sua crença de que é possível incorporar à medicina ortodoxa, ferramentas legítimas como as que ele vem descobrindo na sabedoria milenar de pajés e caboclos. "Estou vivendo uma verdadeira pororoca, isto é, o encontro da floresta de tecnologia com a tecnologia da floresta", compara.

O psiquiatra Wilson Gonzaga dirige um desses grupos, o Rosa de Luz, uma vertente não oficial da UDV. Ele conhece a substância há cerca de três décadas e participa constantemente do debate em torno do chá amazônico e seus usos.

Gonzaga integrou o grupo multidisciplinar do Conad (Conselho Nacional Antidrogas) que reavaliou a bebida em diferentes enfoques e contextos. O trabalho resultou em uma regulamentação sancionada pelo então presidente Lula em 2010, documento que garante o direito do uso religioso do chá.

O assunto é controverso. Mesmo após anos de pesquisas e embates jurídicos, especialistas ainda parecem longe de um consenso. “Falta literatura científica que descreva quantos pacientes tem uma boa resposta”, rebate o psiquiatra Marcelo Niel, do Proad (Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes) da Unifesp.

Gonzaga ressalta, entretanto, que “o uso da ayahuasca feito na viagem de barco pela Amazônia será dentro do contexto ritualístico, permitido pela regulamentação do Conad”.

Outros aspectos do rico caldeirão cultural da selva amazônica serão também conhecidos através dos vários personagens locais, detentores desse conhecimento, como a curandeira Dona Zuzuca, que vive e atende em Nova Olinda do Norte. “Ela não trabalha com psicoativos, apenas com rezas e ervas”, comenta Gonzaga.

A simpática senhora já foi entrevistada várias vezes no programa de TV que o médico apresenta em um canal local, sobre a cultura amazônica e o uso de plantas medicinais. A longa lista de histórias curiosas da curandeira inclui até ‘incorporação de entidades malignas’. Mas Zuzuca não se intimida. Com muito bom humor, ela diz como resolve as ‘possessões’ que aparecem: “Com licença da palavra feia, eu sento o cacete com galho de ‘pinhão-roxo”. Depois de uma longa e saborosa gargalhada ela completa, “não tem encosto que resista”.

A primeira viagem

A primeira expedição terapêutica pela floresta amazônica deve acontecer no início do próximo mês com um grupo (ainda não fechado) de até 12 pessoas. “Vamos navegar pela região, conhecendo a medicina tradicional, a vida dos ribeirinhos, com direito a passeios na mata e até observação de jacarés”, conta.

Durante três semanas, a viagem (que deve ocorrer todos os meses) seguirá o roteiro de trabalho de Gonzaga, passando pelas cidades onde ele presta atendimento psiquiátrico nos centros de atenção psicossocial (Caps) da região e às populações ribeirinhas.

A ideia, segundo ele, é de aproveitar esse percurso que faz em três cidades da calha do Madeira para desenvolver outras atividades como passeios, cursos e vivências para desintoxicação de drogas. “É um pacote que mistura tratamento, educação ambiental e aventura neste lindo jardim do planeta”, completa.

O projeto não possui nenhum apoio ou patrocínio, explica Nísia Maria, companheira e parceira de trabalho de Gonzaga, além de terapeuta e administradora da empresa do casal, o Instituto Hermes, de consultoria e treinamento na área de desenvolvimento humano.

“Como o Wilson trabalha em várias cidades, somos obrigados a manter várias casas, por isso também que decidimos trocar quase todas por uma que anda”. O custo da viagem que cada participante terá que desembolsar ainda não está definido, mas segundo ela, deve ser bem mais barato que passar uns dias em algum centro terapêutico da região.

“Temos ainda um sítio que serve de apoio em terra, onde receberemos futuramente qualquer pessoa que queira fazer tratamentos de desintoxicação ou trabalhos de desenvolvimento pessoal, sejam usuários de drogas químicas pesadas, como cocaína e crack, ou das outras droguinhas cotidianas que todos consumimos, como a mentira, raiva, orgulho e apegos”, finaliza o psiquiatra.