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Mitos sobre o autismo dificultam convívio com quem sofre do transtorno

Bruna Linzmeyer interpreta a jovem autista Linda na novela "Amor à Vida"; personagem sofre preconceito - Divulgação/TV Globo
Bruna Linzmeyer interpreta a jovem autista Linda na novela "Amor à Vida"; personagem sofre preconceito Imagem: Divulgação/TV Globo

Rosana Faria de Freitas e Cármen Guaresemin

Do UOL, em São Paulo

02/08/2013 07h00Atualizada em 24/04/2015 12h59

O autismo, um dos temas abordados na novela global "Amor à Vida", com a personagem Linda (interpretada pela atriz Bruna Linzmeyer), é um transtorno bem mais comum do que se imagina. Estudo divulgado em 2012 pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), nos Estados Unidos, mostrou que ele afeta uma em cada 88 crianças. Este ano, a instituição revisou a proporção para uma em cada 50 crianças. A estimativa dá uma ideia de como existem casos sem diagnóstico, especialmente no Brasil. 

Apesar da frequência, ainda há pouca informação sobre o transtorno, o que cerca o assunto de mitos, que, muitas vezes, prejudicam não apenas o diagnóstico, como também o tratamento e o convívio com os autistas. Para piorar, até os especialistas divergem em muitos pontos. E as abordagens são diferentes para cada paciente, porque cada caso é um caso - enquanto alguns autistas vivem com relativa independência, outros precisam de cuidados especiais permanentemente. 

Mundo próprio

Quem trabalha com esse transtorno do desenvolvimento costuma dizer que há uma série de mitos a serem derrubados, como o de que o autista vive em um mundo próprio, não gosta de afeto, nem da convivência com os outros. “Na maioria das vezes, não negam afeto e buscam contato físico para dar e receber carinho de pessoas conhecidas”, comenta a  psicoterapeuta infantil Lygia Teresa Dorigon,  especializada em autismo.

Para o neurologista Leandro Teles, especialista em neurologia com residência médica no Hospital das Clínicas da USP, tal característica é inata do ser humano, o que muda é a forma de o sujeito manifestar e receber tal estima. “Alguns não se sentem bem se são surpreendidos, e também se mostram sensíveis a estímulos externos intensos".

A falta de domínio da linguagem e a redução do contato visual também podem gerar essa percepção incorreta. “É preciso conhecer alguns sinais sutis, e estabelecer um canal de interação alternativo e personalizado, para otimizar as relações e as trocas pessoais”, recomenda o neurologista.

O fato é que alguns indivíduos que sofrem com o transtorno se incomodam com interações prolongadas e contextos sociais muito caóticos e barulhentos. “Porém, muitos apresentam interesse em se relacionar socialmente, mesmo não possuindo as habilidades necessárias para fazê-lo”, pondera a psicoterapeuta.

“Não são poucos os que buscam convívio social e se ressentem quando não são bem-sucedidos”, complementa o psicólogo Daniel Del Rey, professor do Núcleo Paradigma. Teles concorda: “Eles apreciam a companhia alheia. Se o ambiente for harmonioso, tranquilo e conhecido, certamente se sentirão bem no convívio com os demais”.

Sintomas

Entre os principais sinais do autismo está o fato de a criança não apontar, não falar palavras soltas aos 16 meses e nem palavras-frases aos dois anos. É importante frisar que, em muitos casos, a criança se desenvolve normalmente até 1 ou 2 anos, começa a falar as primeiras palavras e, de repente, começa a regredir.

Há vários outros sintomas possíveis, como: não responder quando chamado pelo nome; fazer pouco ou nenhum contato com o olhar; repetir movimentos (balançar de corpo e de mãos); não brincar com símbolos como bonecos/bonecas e casinhas; demonstrar pouco interesse em fazer amizades; ter dificuldade de manter a atenção;  ter crises de birra intensas; ter fixação em certos objetos, como ventiladores rodando; ter resistência a mudanças na rotina e hipersensibilidade a certos sons, texturas e odores.

Alimentação e autismo

  • Existem especialistas que defendem que uma dieta sem glúten (elemento presente no trigo, na cevada, no centeio e na aveia) e caseína (proteína encontrada no leite) ajuda a amenizar certos sintomas em autistas. A tese é que, por uma alteração na permeabilidade da parede do intestino, essas substâncias gerariam não só problemas digestivos, mas também um efeito tóxico para o cérebro.

    Mas o tema é polêmico: enquanto especialistas dizem que não há evidência científica suficiente para sustentar a teoria, algumas mães relatam melhoras expressivas no comportamento dos filhos após a mudança na dieta. Em outras palavras, excluir o glúten e a caseína virou uma espécie de tratamento complementar no autismo - surte efeito para algumas, mas não para todas as crianças.

    O psiquiatra Guilherme Polanczyk comenta que é comum algumas crianças autistas terem alergia ao glúten e à caseína. Porém, isso não provoca a doença: "Sem dúvida, os alimentos têm muitos efeitos sobre todos nós. No caso dos autistas, o glúten pode provocar agitação em alguns. Mas achar que a alimentação possa provocar a doença é bobagem. Também não tratamos o autismo por meio de uma dieta".

    Já Estevão Vadasz diz que essa intolerância não é universal, mas há um subgrupo de autistas que realmente não se dá bem com esses alimentos. "Quando se nota que há esta intolerânca, basta tomar alguns cuidados como trocar leite de vaca pelo de soja e a farinha de trigo pela de milho, por exemplo".

    Ele lembra que há muitos pais que confundem as situações, achando que a doença é causada pela alimentação e já tiram alguns itens do cardápio: "Os alimentos não são a causa do transtorno. Se a criança não apresenta nenhum problema, não se deve mudar a dieta".

    Sobre a alimentação, a psicóloga Cristiane de Paula lembra outro ponto: "A criança autista costuma ficar obcecada com algum alimento e só quer aquilo. Ou então diz que não vai comer nada branco, por exemplo. É uma grande luta. É preciso que uma nutricionista ajude a balancear isso, pois a criança costuma ter problemas como prisão de ventre, por exemplo".

Vale deixar claro que, até hoje, há dúvidas sobre o que causa o autismo - a cada dia surgem novas descobertas. Estudos apontam principalmente para determinantes genéticos, provavelmente pela presença de um conjunto amplo e complexo de genes de susceptibilidade, e também para alguns fatores ambientais.

O psiquiatra Guilherme Polanczyk, coordenador do núcleo de pesquisa de neurodesenvolvimento inicial de crianças da Faculdade de Medicina da USP conta que o autismo é uma das doenças psiquiátricas com maior particularidade genética. "Pode ser transmitida pelos pais ou por mutações espontâneas, que acontecem no momento da divisão celular".

Segundo a psicóloga e professora adjunta do Programa de Pós-Graduação em Distúrbios do Desenvolvimento na Universidade Presbiteriana Mackenzie, Cristiane Silvestre de Paula, este é um assunto que assusta as pessoas. "Realmente, se já há um filho autista na família, as chances de outro nascer com o problema são grandes. Trata-se de uma doença neurobiológica com componentes hereditários. Em gêmeos monozigóticos é ainda mais comum a ocorrência".

Fatores ambientais

A exposição a agentes ambientais, tais como os infecciosos (rubéola da mãe, ou o citomegalovírus - vírus parecido com o do herpes que pode ficar por muito tempo inativo no organismo), ou a químicos como talidomida (substância que pode gerar problemas em fetos) ou valproato (antiepilético) durante a gravidez podem causar o autismo, segundo estudos.

Estevão Vadasz, coordenador do Programa de Transtornos do Espectro Autista do IPq - Instituto de Psiquiatria do HC, conta que os fatores ambientais são responsáveis por aproximadamente 30% dos casos de autismo: "A maioria deles decorrentes de problemas referentes ao período de gestação, como infecções e o uso de alguns medicamentos".

Diagnóstico

O transtorno é quatro ou cinco vezes mais prevalente em meninos do que em meninas. E, como não existem exames médicos para confirmá-lo, o diagnóstico é baseado na observação. O médico deve ter a percepção aguçada para tirar suas conclusões sobre a comunicação do indivíduo, seu comportamento e níveis de desenvolvimento.

“A descoberta dos sinais precoces e consequente início do tratamento antes dos dois anos de idade contribuem muito para a evolução da criança. Aprender um novo repertório comportamental desde cedo muda o rumo de aprimoramento do pequeno”, considera a psicóloga Cássia Leal da Hora, professora do Núcleo Paradigma.

A habilidade médica é importantíssima porque, a princípio, vários outros transtornos são comumente confundidos com o autismo, inclusive problemas de comportamento e de audição. “O diagnóstico preciso e precoce é fundamental. A partir dele, dá para se construir uma educação adequada e um programa de tratamento eficaz”, reforça Del Rey. “Começando cedo, é possível trabalhar as habilidades deficitárias de forma a permitir melhor autonomia e adaptação social.”

Polanczyk conta que é comum os pais chegarem com a criança já na faixa dos cinco anos para começar o tratamento: "Eles dizem que o filho estava sendo acompanhado por um ou dois anos por um médico que dizia para esperar, porque ainda era precoce diagnosticar a criança como autista. Às vezes, ficam aguardando o professor falar alguma coisa. Quanto antes começar o tratamento melhor. "

“A participação dos pais é essencial para o prognóstico. Não devem esconder, negar e ficar nesta situação por anos, mas procurar ajuda especializada ao perceber os primeiros sinais. Isso é essencial”, conta Cristiane de Paula, que também é vice-presidente do Conselho Científico da ONG Autismo & Realidade, criada em 2010 pelo empresário Hermelindo Ruete de Oliveira, pai de uma menina com autismo.

Para a psicóloga, o papel do profissional não é só tratar, mas conscientizar a sociedade sobre o autismo. “Se a criança está com a mãe num supermercado e começa a gritar, por exemplo, quem está ao redor pensa ‘esta mulher não sabe educar seu filho’. As mães, principalmente, sofrem muito preconceito. Divulgando mais, as pessoas vão conhecer e, quem sabe, passar a respeitar mais o assunto”.

Superinteligentes?

Como formam um grupo muito heterogêneo, cada autista é de um jeito. Todos mostram similaridade na dificuldade social, mas, do ponto de vista intelectual, podem apresentar performances distintas.

A psicóloga conta que, depois do lançamento de Rain Man, em 1988, muitas mães ficaram frustradas, pois achavam que seus filhos seriam brilhantes como o rapaz autista do filme. Isso porque o personagem Raymond Babbitt, que rendeu Oscar de melhor ator a Dustin Hoffman, era brilhante em matemática. “Na verdade, apenas 10% dos autistas seriam muito inteligentes. É o que chamamos de ilhas do conhecimento, ou seja, nichos de conhecimento específicos. Estes estão acima da média”.

Outro personagem de ficção que as pessoas relacionam ao autismo é o cientista Sheldon Cooper, do seriado The Big Bang Theory. A psicóloga conta que, apesar de adorável, na verdade ele é uma caricatura de alguém com síndrome de Asperger (um transtorno do espectro autista, diferente do clássico). “Há um tipo de autista que não vai falar nem se desenvolver muito. No outro extremo, há esse mais inteligente em alguns aspectos, mas que não entende algumas pistas sociais, como a ironia".

Não raro, os 10% acima da média mostram habilidades intelectuais globalmente aumentadas ou têm uma capacidade mental específica mais desenvolvida (a ilha do conhecimento) – como a matemática, a memória, o domínio de tecnologia, a pintura, a música. “Alguns gênios da humanidade podem ter sido autistas não diagnosticados”, arrisca Teles.