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Veteranos argentinos das Malvinas relatam torturas que sofreram de seus superiores

02/04/2012 05h38

Pablo de Benedetti teve medo de perder as pernas. Na época, ele era um jovem de 19 anos que participava com o Exército argentino da Guerra das Malvinas (Falklands, para os britânicos). No entanto, não imaginou que seu próprio grupo seria responsável por seus ferimentos.

Benedetti é um dos mais de 100 veteranos da guerra de 1982 com a Grã-Bretanha que afirmam terem sido torturados por seus superiores.

O caso - que reúne dezenas de denúncias de ex-combatentes - está na Corte Suprema de Justiça argentina, que determinará se os atos podem ser classificados como delitos cometidos contra a humanidade, como querem os veteranos.

"Nas Malvinas, fizemos poços de cerca de 1,60 metro de profundidade, que por causa do tempo ficavam cheios de água da chuva. Me colocaram diversas vezes dentro desses poços, que estavam praticamente congelados por causa do frio que fazia, como castigo a supostos erros meus", disse Benedetti à BBC Mundo.

"Passávamos horas ali, até que o sargento decidisse que a punição havia terminado."

Segundo o veterano da guerra das Malvinas, os castigos dos oficiais acontecia pela suposta indisciplina dos soldados em meio às operações.

De acordo com a documentação do Centro de Ex-combatentes das Ilhas Malvinas (CECIM), entre as punições comuns que os soldados sofreram estão a restrição a alimentos e um "estacamento", castigo que consiste em amarrar pés e mãos de uma pessoa em estacas fincadas no solo.

Muitos dos que foram punidos com o "estacamento" teriam sido amarrados no chão completamente nus, em meio às temperaturas baixas do inverno da região.

Dor

Este não foi a única punição sofrida por Benedetti.

Ele foi obrigado a passar por campos minados, onde as minas haviam sido colocadas por ele próprio. Nenhuma das minas explodiu durante a punição, mas ele lembra que o medo era constante.

Os castigos deixaram marcas permanentes em Benedetti.

"Depois de tantas vezes receber o castigo, o médico da companhia me visitou, porque eu estava com os pés inchados e passava muito mal. Me recomendou colocá-los em água quente e me deu uma medicação. Mas quando voltei ao pelotão, o suboficial me tirou o medicamento e mandou que eu voltasse ao poço de água fria, dizendo que era para 'me curar'", lembra o veterano de guerra.

"Em 1º de junho, eu tinha que me arrastar, porque não conseguia caminhar, até o acampamento médico de novo. Tiveram que cortar as minhas meias e botas, porque meus pés estavam tão inchados que eu não conseguia retirá-las. De imediato, me mandaram de volta ao continente. Os médicos achavam que eu perderia os movimentos nas pernas."

Hoje em dia, ele toma remédios por causa das sequelas.

Os pés ficam dormentes com frequência, o que impede que ele dirija veículos, e a temperatura do seu corpo varia bastante.

Tribunais

"Há mais de cem denúncias deste tipo no Tribunal Federal (da Província) de Rio Grande. Isso inclui três mortes por fome e assassinato de um soldado por parte de um suboficial do Exército", disse à BBC o presidente da Cecim, Ernesto Alonso.

Dois tribunais argentinos determinaram que os abusos cometidos podem ser classificados como crimes contra a humanidade, e por isso ainda não prescreveram.

No entanto, os militares acusados apelaram na Justiça, que reverteu a decisão - classificando os delitos como "crimes comuns" e já prescritos.

A questão foi levada adiante por um novo recurso do Ministério Público e do Cecim. Caberá à Suprema Corte do país a palavra final. A Cecim espera uma decisão favorável à sua causa, em especial pelo interesse despertado na Argentina pelo 30º aniversário do conflito.

"A sociedade argentina deve saber o que se passou nas Malvinas com seus soldados por parte de Forças Armadas que não representavam os interesses populares", diz Alonso.

Investigados

Alguns dos militares que participaram da guerra contra a Grã-Bretanha foram posteriormente investigados e até condenados pela Justiça argentina por crimes contra a humanidade durante o período da junta militar, de 1976 a 1983.

Um dos casos é o de Carlos Büsser, que comandou o ataque às Ilhas no dia 2 de abril de 1982. Atualmente, ele é investigado por seu papel como oficial de inteligência em 1977. Alfredo Astiz, conhecido como "Anjo da Morte", também é investigado. Uma força-tarefa à qual ele integrava levou 5 mil pessoas ao prédio da Escola de Mecânica da Armada. A maioria dessas pessoas nunca mais foi vista.

"Agora eu participo deste processo judicial não por vingança, mas sim para que isto não volte a acontecer. Não há nada que justifique a tortura, nem sequer a defesa da soberania", diz Benedetti.

O aniversário do conflito fez com que ele revisitasse seus arquivos do tempo de combatente.

"Novamente estou tendo sonhos com a guerra. O sonho é sempre igual. Eu volto aos lugares onde estive nas Malvinas, mas desta vez não me torturam. Acho que meu inconsciente está tentando me dizer que é assim que deveria ter sido a minha estadia por lá."