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O que a polícia britânica, que atirou 2 vezes em 1 ano, pode ensinar à do RJ

Enterro de um dos cinco jovens baleados em Costa Barros, na zona norte do Rio de Janeiro, pela Polícia Militar fluminense - Reuters
Enterro de um dos cinco jovens baleados em Costa Barros, na zona norte do Rio de Janeiro, pela Polícia Militar fluminense Imagem: Reuters

Luiza Bandeira

Em Londres

04/12/2015 14h58

Enquanto no Rio de Janeiro a Polícia Militar disparou mais de 60 vezes contra um único carro, matando cinco jovens em Costa Barros, a polícia britânica atirou apenas em duas ocasiões em um ano inteiro, entre 2013 e 2014 --e sem matar ninguém.

O baixo número de disparos das polícias da Inglaterra e do País de Gales pode ser explicado por um rígido controle sobre armas de fogo, agentes desarmados e condições sociais diferentes das do Brasil, de acordo com especialistas. Mas eles dizem também que, apesar das diferenças de contexto social, a polícia fluminense poderia aprender diversas lições com a britânica.

No último sábado, PMs do Rio atiraram diversas vezes na direção de um veículo em que estavam cinco jovens negros com idades entre 16 e 25 anos. Segundo a "TV Globo", foram 111 tiros, dos quais 63 atingiram o carro. Testemunhas e parentes das vítimas dizem que os policiais confundiram o veículo com o de um grupo de assaltantes que estaria escoltando uma carga roubada.

Depois disso, os PMs teriam tentado incriminar os jovens forjando uma cena de enfrentamento. Quatro policiais foram presos em flagrante --três sob as acusações de homicídio doloso (com intenção de matar) e fraude processual, e o outro acusado apenas do último crime.

Os 111 tiros são uma pequena fração do total de balas disparadas neste ano. Segundo levantamento da Polícia Militar publicado pelo jornal "O Globo", só em 2015 os PMs do Rio dispararam cerca de 85 mil vezes. A corporação não confirmou os números à "BBC Brasil", dizendo tratar-se de "informação estratégica".

Apenas neste ano, de acordo com dados do ISP (Instituto de Segurança Pública, ligado ao governo estadual), 569 pessoas foram mortas por policiais --a estatística se refere aos chamados "autos de resistência", uma espécie de legítima defesa, e não consideram mortes por policiais de folga.

"A polícia do Rio é a que mais usa força em excesso, e é um abuso permanente e sistemático. Em um contexto como o do Rio, não poderíamos esperar os mesmos números da Grã-Bretanha, mas mesmo considerando o nosso contexto a polícia atira demais", diz o sociólogo Ignácio Cano, do Laboratório de Análise da Violência da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro).

Silvia Ramos, coordenadora do CESeC (Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes), diz que os números indicam que a polícia precisa mudar. "Se você disser isso para um policial, ele vai rebater dizendo: 'Põe um cara desarmado na favela para ver o que acontece.' Mas isso é uma resposta defensiva, que procura valorizar problemas para justificar a 'não mudança', e com isso estamos não mudando a polícia há 30 anos", afirma.

Já Paulo Storani, ex-capitão do Bope (tropa de elite da PM do Rio) e consultor de segurança pública, diz que o número é de fato muito alto e também defende mudança, mas lembra que "os traficantes atiram ainda mais".

Polícia desarmada

Na Inglaterra e no País de Gales, dados oficiais mostram que, entre abril de 2013 e março de 2014 (último dado disponível), os policiais atiraram apenas em duas ocasiões. O número exato de tiros dado em cada uma delas não foi divulgado.

Segundo o IPCC (Independent Police Complaint Commission, uma espécie de corregedoria da polícia), não houve mortes causadas pela polícia no período. Já no ano fiscal seguinte (entre abril de 2014 e março de 2015), houve uma morte durante operação policial, após três anos sem registros do tipo.

A polícia britânica praticamente não usa armas. Apenas policiais com treinamento específico --atualmente, cerca de 5% do total-- podem usar armas de fogo. Isso é possível porque a Grã-Bretanha tem uma das legislações mais restritivas em relação a posse de armas no mundo. Com isso, mesmo desarmados, os policiais não ficam vulneráveis, já que os criminosos também não têm acesso a armas de fogo.

No dia a dia, policiais usam armas menos letais para conter suspeitos, como a Taser (que produzem choques elétricos). Analistas lembram, porém, que a polícia britânica não é perfeita: há suspeitas de excessos no uso de armas de choque, acusações de preconceito e houve descrédito após a morte do brasileiro Jean Charles de Menezes, confundido com terroristas após os atentados no metrô de Londres em 2005.

Os ataques que deixaram 130 mortos em Paris no mês passado também trouxeram uma nova discussão ao país: uma polícia majoritariamente desarmada conseguiria reagir tão rápido quanto a francesa?

Mesmo assim, os números de policiais e operações armadas continuam diminuindo. Isso ocorre porque o policiamento britânico está pautado na ideia de polícia comunitária e na prevenção a crimes.

Além disso, estudiosos de segurança pública lembram que o Reino Unido tem bem menos violência que o Brasil --em 2014, foram 526 homicídios na Inglaterra e no País de Gales. De acordo com analistas, haver menos pobreza e desigualdade social gera um contexto menos violento que o do Brasil, por exemplo.

Inspiração

Os especialistas ouvidos pela reportagem concordam que, atualmente, não seria possível adotar no Brasil um modelo de polícia desarmada. Mas, apesar das diferenças, dizem que o exemplo britânico poderia servir de inspiração para o Brasil em pelo menos quatro fatores: a legislação mais restritiva em acesso a armas, a valorização do policial, o policiamento comunitário e o foco no uso progressivo da força.

"A difusão das armas é um dos fatores de risco no Brasil, mais de 80% dos homicídios são cometidos por armas de fogo", diz Cano, lembrando que o país é um grande produtor de armas.

Storani, que é também professor do Instituto de Políticas Públicas e Ciências Policiais da Universidade Candido Mendes, lembra que grande parte das armas legais brasileiras vão parar nas mãos de criminosos. "Armas da polícia e das Forças Armadas são desviadas para os traficantes", afirma. Ele destaca ainda que muitas armas são trazidas de países vizinhos, o que demanda um aumento do controle nas fronteiras.

Outro bom exemplo britânico, para o ex-comandante do Bope, é a valorização do policial. "Em Londres o policial tem um bom salário e é admirado pela sociedade. A polícia do Rio está em crise. A profissão não é atrativa pelo salário, a formação é muito precária, os policiais trabalham demais e vivem sob tensão o tempo todo. Estamos falando de seres humanos submetido a condições desumanas", afirma.

Já Silvia Ramos cita o policiamento comunitário e o uso progressivo da força --duas estratégias que, segundo ela, estavam presentes nas UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora). "A filosofia das UPPs era de polícia de proximidade. Deu certo no início e em algumas favelas ainda dá, exatamente porque a polícia nas favelas deixou de usar armas longas, de guerra, e passou a utilizar armamento menos letal, como spray de pimenta, arma Taser etc. O policial passou a se relacionar com as pessoas", diz ela.

A especialista afirma também que, com isso, o treinamento passou a propor o "uso gradual da força", ou seja, recorrer primeiro a outras ações e, só em último caso, atirar. "Havia esse treinamento na academia de polícia, mas na prática não existia. O policial saía com colete e fuzil e, diante da primeira ameaça, ele atirava. O número de mortes pela polícia caiu muito depois das UPPs, mas ainda é muito alto. É inadmissível."

A PM do Rio foi consultada pela "BBC Brasil", mas não respondeu às críticas até a publicação desta reportagem. Segundo o jornal "O Globo", os policiais militares que mais atiram estão passando por uma espécie de curso de reciclagem.